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Termo usado por Paul Ricoeur para caracterizar a dupla motivação — vontade de escuta, atitude de suspeita — que caracteriza a ambiguidade da hermenêutica contemporânea. P. Ricoeur parte do seguinte dado de facto: a relação da interpretação com a linguagem comporta, hoje, depois de Nietszche, Freud e Marx, uma dupla possibilidade que não pode ser esquecida e origina no âmbito da hermenêutica um conflito de interpretações. São fundamentalmente duas, e radicalmente opostas, as possibilidades de interpretação que hoje se fazem da função significativa da linguagem-símbolo: a hermenêutica da confiança acredita no poder prospectivo e revelador dos símbolos; a hermenêutica da suspeita, acentua o seu poder dissimulador, efectuando uma interpretação redutora e arqueológica de toda a simbólica humana. É, por isso, necessário enfrentar a complexidade de um tal conflito, em ordem a dilucidar a dimensão significativa ou hermenêutico-especulativa da própria linguagem falada pelos homens e falada aos homens. A explicitação do nó semântico de toda a hermenêutica, tarefa em que Ricoeur concentra, aliás, o núcleo da sua hermenêutica, exige que se reflicta, nomeadamente, sobre a ambiguidade ou paradoxo constitutivo da própria estrutura significativa da linguagem, que não é pura cópia mas funciona como símbolo. No símbolo, a dupla intencionalidade do sentido literal surge como um enigma, que tanto pode significar um novo modo de referência, como pura dissimulação.

Os signos simbólicos são opacos, lembra-nos, constantemente o autor. Têm um sentido literal e outro existencial ou escondido; uma dimensão semântica e outra não semântica que é absolutamente impossível separar. São os testemunhos mais fidedignos da estrutura de antecipação própria do humano. Exprimem o conflito originário (“desejo de ser na falta do ser”) que dá origem ao próprio acto de significar e interpretar. Mergulham as suas raízes na experiência trágica ou conflitual do existir humano. Representam assim algo poderoso, forte e eficaz, que exige ser dito, embora nunca ingresse completamente na linguagem. Revelam, em suma, a distância em que radica a linguagem. Por isso mesmo, suscitam a interpretação. São o seu verdadeiro espaço de experiência. É justamente na opacidade do sentido que reside a profundidade manifestativa do símbolo. Tudo o que o símbolo dá é que pensar, quer isto dizer, dá-o por meio da interpretação, na transparência opaca de um enigma, que longe de bloquear a compreeensão, provoca, pelo contrário, a sua dimensão excessiva. É aliás esta textura dupla do símbolo, que torna possível todo o trabalho da interpretação. Este, por sua vez, torna manifesto o modo como o acto de significar ou o advento da linguagem pode também querer dizer distância, narcisismo e dissimulação. Necessário é pois encarar o conflito de interpretações a que a função manifestativa do símbolo dá origem, quando realmente se pretende entender a natureza significativa ou hermenêutica da própria linguagem .

À hermenêutica contemporânea cabe, antes de mais, perceber como toda a interpretação singular é finita; é uma apropriação limitada do sentido simbólico, que reduz por definição a determinação múltipla do sentido, traduzindo-a numa grelha de leitura que lhe é própria. Cabe-lhe ainda revelar como reduzir não significa, no entanto, anular todo o significado potencial do símbolo, apenas suspendê-lo, isto é, partir de pressupostos que determinam um ponto de vista específico e a sua coerência. A hermenêutica integra assim o conflito das interpretações que finalmente revela como toda a interpretação é uma leitura limitada e coerente no interior da sua própria perspectiva que, por isso mesmo, pressupõe conceitos operatórios fundamentais que inscrevem ao serem tematizados, numa das interpretações, a linha de sentido desenvolvida pela outra. E isto o que significa é o seguinte: se a coerência de toda a interpretação exige uma certa suspensão do conflito que a suscita, isto é, uma redução da polissemia inicial do símbolo, pela sua tradução para um determinado contexto, esse facto não implica que o conflito tenha sido anulado. Apenas foi perspectivado de acordo com uma determinada opção. Daí que cada uma das interpretações em conflito esteja inscrita, a título potencial, nos conceitos não temáticos da outra. Necessário é, pois, revelar a complementaridade das hermenêuticas rivais como o verdadeiro corolário do seu carácter perspectivista. Tal é o verdadeiro sentido do conflito das interpretações em Ricoeur: a tensão originária não é aquela que existe entre uma interpretação e a outra mas, pelo contrário, aquela que tem raízes no interior de cada uma. Toda a interpretação parte de uma situação de pertença originária à linguagem que é incapaz de, por si mesma, conter. Deve, por isso, apoiar-se na outra perspectiva, em ordem a evitar toda a reificação ideológica e poder assim alargar o seu ponto de vista. A verdade hermenêutica é sempre contextual. Logo, só a solidariedade no conflito permite evitar o narcisismo hermenêutico. Apoiar-se no adversário para poder prosseguir — eis a condição de possibilidade de toda a interpretação, que sabe reconhecer a abertura como corolário essencial do seu carácter irremediavelmente perspectivista. A tensão do símbolo transmite-se à interpretação. Logo, não existe hoje uma hermenêutica geral, apenas teorias diferentes e até contraditórias. O paradoxo é a verdadeira lógica da hermenêutica que, por isso, nunca pode cair em totalizações apressadas. Ora, isto só se consegue quando o conflito das interpretações é levado a sério e se compreende que arbitrá-lo é, antes de mais, salientar as suas diferenças para procurar, em seguida, todo aquele jogo de reenvios pelo qual cada interpretação remete, pelos seus próprios conceitos operatórios, para a outra.

Assim sendo, se de facto, a hermenêutica da suspeita é redutora e arqueológica, porque apenas trabalha a dimensão regressiva do símbolo, o que é preciso é revelar a dialéctica que ela mesma implica enquanto suspende a dimensão prospectiva dos símbolos. A tarefa da hermenêutica consiste em patentear o modo como, no seu princípio, cada método interpretativo comporta, segundo a linha da sua própria coerência, todo um jogo de reenvios que só o encontro com a outra interpretação permite explicitar. São justamente os pontos fracos de uma os pontos fortes da outra, afirma Ricoeur. Neste sentido, arbitrar o conflito é estar atento aos limites de cada interpretação, de modo a notar os pontos possíveis de entrecruzamento. A esta tarefa consagra o autor a sua hermenêutica, lembrando-nos que se a sua particular simpatia e dependência é a da hermenêutica da confiança, a verdadeira confiança só é verdadeiramente douta quando reconhece os seus verdadeiros limites e sabe integrar a crítica, abrindo-se simultaneamente à lógica progressiva e regressiva do símbolo. Nas suas obras, De l´Interprétation. Essai sur Freud. e Le Conflit des interprétations. Essais d‘Herméneutique., o autor dialoga assim, respectivamente, com a psicanálise de Freud, que considera ser o modelo por excelência da hermenêutica da suspeita, e com o estruturalismo linguístico, que desenvolve ao nível da semântica do texto a atitude redutora de explicitação dos símbolos. O objectivo é duplo: pensar, em primeiro lugar, as condições não puramente subjectivas, mas profundamente relacionais ou intersubjectivas da referência simbólica, desde sempre motivo de uma hermenêutica; descentrar, em segundo lugar, a subjectividade do intérprete por meio da lógica progressiva e regressiva do símbolo.

Bibliografia:

M.L. Portocarrero F. Silva: A Hermenêutica do Conflito em P. Ricoeur, (Coimbra, 1992); Idem: “Da fusão de horizontes ao conflito das interpretações: a Hermenêutica entre Gadamer e Ricoeur”, in Revista Filosófica de Coimbra 1, (1992), 127-153; Paul Ricouer: De L´Interprétation. Essai sur Freud (Paris, 1965); Idem: “Du Conflit à la convergence des méthodes en exégèse biblique”, in Exégèse et Herméneutique. Parole de Dieu (Paris, 1971), 35-52; Idem: Du Texte à L’ Action. Essais d ‘Herméneutique II (Paris, 1986); Idem: Le Conflit des Interprétations. Essais d´Herméneutique (Paris, 1969); P. Gisel, “Le conflit des interprétations”, Esprit, 11, (1970), 776-784; Idem: “Paul Ricoeur ou le discours entre la parole et le langage”, Revue de Théologie et de Philosophie, 26, (1976), 98-110.