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1. Em termos textuais, aquilo que constitui internamente uma obra. O conceito aproxima-se naturalmente da ideia de assunto e de matéria. O conteúdo de um texto é talvez um conceito mais amplo do que os seus sinónimos próximos: se a ideia é apenas uma, se o assunto é apenas um, se o tema é apenas um, se o argumento é apenas um, o conteúdo de um texto pode ser o conjunto de ideias, temas, argumentos, assuntos que formam um texto. Na teoria literária pós-clássica, o conteúdo de uma obra é o argumento, a fábula, a história contada, o tema, o motivo inspirador, a ideia tratada, a tese demonstrada, a ideologia, a Weltanschauung do artista. Por oposição, a forma é a dispositio e a elocutio, a ordenação estrutural do conteúdo, a sua expressão artística.

Assistimos em vários quadrantes teóricos da primeira metade do século XX a várias condenações da clássica dissociação entre forma e conteúdo na abordagem do texto literário. A prática crítica de I. A. Richards, em Cambridge, foi uma das primeiras.

Num outro quadrante, o italiano Benedetto Croce defende que só a expressão (ou forma) faz nascer o verdadeiro poeta: faltando-lhe a forma, não pode nunca revelar-se. O conteúdo é um conceito suplementar, meramente intelectual, pelo que a arte pode dispensá-lo. Croce preferiu não distinguir forma de conteúdo para afirmar a unidade da obra de arte, distinção que achava meramente convencional. A obra de arte é, no modelo crociano, uma expressão única que é ditada pela intuição. Todo o conteúdo é linguagem, portanto de nada serve disseminá-lo, sob pena de diminuirmos o valor da obra de arte.

A oposição conteúdo/forma serve a analogia entre significado (conteúdo) e significante (forma). Na glossemática de Hjelmslev, a distinção vai mais longe, descrevendo-se o enunciado como a combinação de dois planos (conteúdo e expressão) onde se registam os estratos da substância e da forma. No plano da expressão, a substância é a realidade (não organizada) acústica dos sons e a forma, a massa acústica estruturada em fonemas. No plano do conteúdo, distingue-se entre a substância do conteúdo (pensamentos dispersos, sem nenhum tipo de organização ou realização linguística) e a forma do conteúdo (que determina as diferentes realizações linguísticas para os mesmos significados: “Ser”, “To be”, “être”, “sein”, etc.). Segundo esta perspectiva, o significado seria a forma do conteúdo e o significante, a forma da expressão. Por outras palavras, a expressão é sempre expressão de um conteúdo; e o conteúdo é sempre o conteúdo de uma expressão.

Ferdinand de Saussure propora uma teoria que visava a dissolução do conteúdo, afirmando que na língua só existem diferenças: o signo é desprovido de conteúdo, isto é, só existe enquanto signo porque se diferencia de outros signos contíguos no interior de um paradigma. O formalismo russo também tentou ultrapassar a divisão entre forma e conteúdo, propondo a distinção entre “materiais” que fazem o texto literário (sons, palavras, imagens, motivos, temas, etc. — ou conteúdos materiais) e “procedimentos” estilísticos que conformam a obra de arte literária. Este conjunto de “procedimentos” constituem o conteúdo formal (o conteúdo é parte da forma e a forma é parte do conteúdo), não sendo correcto diferenciar ambos porque tudo é significativo na obra de arte literária. O que prevalece na teoria formalista é a análise da forma do facto literário, negando a importância do conteúdo e do contexto. A teoria formalista não se interessa pela apreciação do conteúdo de uma obra de arte literária, mas apenas a inter-relação dos seus artifícios artísticos; não se interessa pelo tema ou pelo assunto de um texto, mas pela técnica que ele exibe no desenvolvimento de um tema ou de um assunto. A obra de arte literária é, portanto, vista apenas como a soma de um conjunto de artifícios e não como a soma de temas, ideias, argumentos, estilos, contextos, etc.

Noutro plano estético, Lukács opta também pelo privilégio da forma, porque ela é a via para a descrição e identificação das relações entre a obra de arte e a sociedade, onde não entram os conteúdos sociais. A relação sociedade/arte é baseada na analogia de estruturas, perdendo-se a atenção pelos conteúdos.

O Barthes estruturalista afirma que a ciência da literatura é uma ciência das formas e não dos conteúdos (que pertencem à história), identificando assim “sentido vazio” com a forma. Mas a oposição forma/conteúdo é precisamente o que a noção de estrutura pretende superar. Não há aqui diferença substancial em relação ao formalistas russos, para quem o que estava em causa era igualmente o aspecto formal do texto e não o seu conteúdo. A obra de arte era já vista como uma forma, isto é, um sistema em que todos os elementos se integram, não sendo, por isso, possível separar forma e fundo.

2. Foi sobretudo através da sua obra A Interpretação dos Sonhos (1900) que Freud realizou a maior aproximação entre a psicanálise e a criação literária. No seu entender, o sonho é a via mais directa de acesso ao inconsciente. O conteúdo do sonho é a base de trabalho da interpretação. O sonho é desde muito cedo a forma privilegiada de satisfação imaginária do desejo. Os símbolos (conteúdos) que surgem nos sonhos constituem referências importantes para a compreensão das personagens de um romance, por exemplo. A interpretação dos sonhos interessa à compreensão do perfil psicológico das personagens porque se trata de narrações onde se descobrem unidades significantes que formam uma sintaxe. Aquilo a que Freud chama o “trabalho do sonho”, processo que nos permite trazer para o nível da consciência os desejos recalcados, segue as leis do significante. A análise dos sonhos permite-nos ter acesso à linguagem significante do inconsciente. O inconsciente é como um texto, codificado, hermético, mas inteligível, cuja elaboração pressupõe um conteúdo manifesto (o sonho antes de ser sujeito a qualquer análise [=o texto antes de ser interpretado]) e um conteúdo latente (conjunto de sentidos que se depreendem da análise de um sonho, que, uma vez descodificado, não mais é uma narrativa desconexa, mas um conjunto de pensamentos organizados ou um discurso que exprime um ou mais desejos). A interpretação dos (conteúdos dos) sonhos, feita sempre em termos de sexualidade, segundo a discutível tese de Freud, é uma espécie de “processo de tradução às avessas”, pois o seu verdadeiro corpus não é o sonho propriamente dito, mas uma narração construída com as lembranças deixadas por ele.

Freud não aceitava que os símbolos oníricos tivessem uma única interpretação. Reconhecia que, para interpretá-los devidamente, se devia levar em linha de conta o contexto definido pela vida psíquica do sonhante. Na verdade, as pesquisas freudianas embora primordialmente orientadas para singularidades e especificidades do sonho, acabaram por chegar a leis universais como esta: “O mesmo conteúdo onírico em pessoas diferentes, inseridas em relacionamentos diversos, tem sentido diferente.” Daí Freud atribuir à interpretação dos sonhos várias possibilidades, tal como acontece na interpretação de um texto literário.

bibliografia

1. Benedetto Croce: Estetica come scienza dell’espressione e linguistica generale (1902); G. Lukács: Die Seele und die Formen (1911); L. Hjelmslev: Prolegomena to a Theory of Language (1953).

2. Sigmund Freud: A Interpretação dos Sonhos (1900).