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É uma das noções mais omnipresentes da pragmática e, no entanto, uma das mais difíceis de definir. Todos os autores aceitam hoje que o contexto dos enunciados intervém, de uma maneira ou de outra, na constituição do sentido, mas a natureza desta intervenção é difusa e a sua dimensão é incomensurável, tornando-se, por isso, também difícil dar conta das componentes que o integram.

É importante distinguir duas modalidades distintas de contexto: a que compreende as instâncias que integram a situação enunciativa, por um lado, e o conjunto dos elementos pertencentes ao mundo extra-linguístico que contribuem para a determinação do sentido dos enunciados, por outro. Também não convém confundir o contexto com as unidades verbais que, estando expressas nos próprios enunciados, interferem no processo de desambiguização do sentido das restantes formas verbais que fazem parte de um mesmo discurso, e a que, na sequência da proposta de Bar-Hillel, se convenciona actualmente dar o nome de cotexto. (Cf. Yehoshua Bar-Hillel, Aspects os Language, Jerusalem, The Magnes Press, Hebrew Univ. and Amsterdam, 1970.)

As questões do contexto estão portanto directamente associadas às questões da referencialidade e da indexicalidade. Podemos, por isso, defini-lo, de maneira um pouco mais precisa, dizendo que abrange o conjunto constituído, por um lado, pelas instâncias enunciativas e, por outro lado, pelo mundo extra-linguístico a que um texto se refere.

Podemos dar o nome de contexto indexical ao conjunto das instâncias enunciativas. À primeira vista, poderá parecer que se trata de um conjunto de elementos relativamente preciso, uma vez que é delimitado pelas categorias do locutor, do alocutário, do lugar e do tempo da enunciação e podem portanto ser descritas quer a partir das unidades dícticas dos enunciados, quer através da apreensão por parte dos interlocutores das unidades enunciativas que são manifestas aos interlocutores, no momento em que os enunciados ocorrem. No entanto, esta definição do contexto indexical é demasiado abstracta, visto que nem sempre são claramente determináveis as instâncias que intervêm na enunciação de determinados textos e discursos. Assim, por exemplo, em enunciados documentais nem sempre é possível saber quem é o verdadeiro locutor. Por vezes, o locutor de determinados enunciados não é o seu verdadeiro emissor, como no caso de enunciados relatados directa ou indirectamente. A audiência de um determinado discurso pode não ser o seu verdadeiro destinatário, como no caso de determinados discursos parlamentares, em que um deputado, embora falando directamente para os seus pares, se dirige efectivamente ao público eleitor que, no entanto, está fisicamente ausente do parlamento. No caso de um texto de ficção, o locutor, o alocutário, o lugar e o tempo da enunciação não coincidem habitualmente com autor, o leitor, o lugar e o tempo da leitura, mas com instâncias construídas pela própria estratégia narrativa, sendo o leitor transportado para um espaço e um tempo ficcionais e estabelecendo uma autêntica relação interlocutiva com personagens imaginárias.

A modalidade indexical do contexto pode ser explicitamente referida, através do uso de determinadas categorias formais da linguagem, a que se convencionou dar o nome de embraiadores (em inglês, shifters). Apesar de qualquer categoria formal da linguagem se poder prestar a um uso embraiador, são os pronomes pessoais, as preposições de tempo e lugar, assim como as desinências verbais que assinalam as pessoas e os tempos, que normalmente desempenham estas funções e, deste modo, constituem as instâncias indexicais do contexto.

Damos o nome de referencial à outra modalidade de contexto. É constituída pelas realidades extra-linguísticas referenciadas pelo texto ou pelo discurso. Esta modalidade de contexto é extremamente difusa, na medida em que os enunciados se abrem habitualmente para uma multiplicidade incomensurável de mundos, quer reais quer imaginários. Formalmente, são os determinativos definidos, os nomes próprios e os pronomes demonstrativos que melhor se prestam a esta função referencial.

A natureza prolixa do contexto não constitui uma deficiência da linguagem humana, como as filosofias positivistas da linguagem poderiam levar a pensar. É antes uma das garantias da natureza aberta do texto, da proliferação e da riqueza do sentido.

Podem fazer parte do contexto referencial as crenças, as opiniões, os juízos, as reminiscências, os desejos mutuamente partilhados pelos interlocutores. Estas referências podem ser reais ou ficcionais, presentes ou passadas. (Sobre as diferentes modalidades de contexto ver, por exemplo, Herman Parret, Enunciação e Pragmática, Campinas, ed. da UNICAMP, 1988, pp. 205-219).

Ao contrário das formas significantes, que podem ser analisadas exaustivamente, tanto as instâncias indexicais, como os elementos referenciais do contexto, não podem ser completamente descriminados. Actualmente, a teoria mais consistente para a determinação das unidades contextuais é a teoria da relevância (cf. Dan Sperber e Deirdre Wilson, Relevance. Communication and Cognition, Oxford, Blackwell,1986; tradução francesa: La Pertinence. Communication et Cognition, Paris, ed. de Minuit, 1989; tradução portuguesa: A Relevância. Comunicação e Cognição, Lisboa, F. C. Gulbenkian, 2001) e a melhor maneira de apreendermos o seu funcionamento consiste em fazer intervir a expectativa dos interlocutores, que se situa dentro de fronteiras construídas pelo próprio texto e que delimitam o horizonte ou os quadros de sentido. (Ver, a propósito dos quadros do sentido, o interessante livro de Erving Goffman, Frame Analysis. An Essay of the Organization of Experience, 1974. Tradução francesa: Les Cadres de l’Expérience, Paris, ed. de Minuit, 1991).

Sperber e Wilson propõem uma abordagem do contexto a partir da teoria da relevância. Deste ponto de vista, são contextuais as informações ou as hipóteses interpretativas que os interlocutores consideram relevantes para a constituição do sentido dos enunciados e é relevante qualquer hipótese interpretativa que produza efeitos contextuais. A relevância de uma hipótese interpretativa não é um valor absoluto, mas relativo, na medida em que uma hipótese interpretativa ou uma informação é mais ou menos relevante. Assim, por exemplo, o facto de ouvir um ruído de passos é muito mais relevante do que o facto de saber a data de nascimento do locutor para compreender o que ele quer dizer quando me diz:

«Vai abrir a porta ao teu amigo.»

O ruído de passos constitui sem dúvida, neste exemplo, um elemento contextual do enunciado do locutor, ao passo que não é ou, pelo menos, não é tanto o facto, por exemplo, de eu saber a data do seu aniversário.

Tanto as entidades indexicais que se reportam à situação enunciativa, como os elementos que integram a situação referencial de um texto ou de um discurso podem ser encarados como constitutivos de quadros do sentido. Um texto ou um discurso tem sentido, na medida em que está delimitado por um horizonte, à maneira da moldura de uma tela, do palco em que decorre uma representação teatral, da sala do tribunal em que se desenrola uma audiência ou da sala de aula, das capas de um livro, da sala escura do cinema. Podemos considerar o contexto como a delimitação deste horizonte, confinando nos seus limites ou dentro das suas fronteiras um mundo próprio, no âmbito do qual as formas verbais tomam sentido ou aparecem como razoáveis e fora das quais seriam absurdas ou, pelo menos, estranhas.

A literatura moderna, apostada em refundar o sentido da obra, procura precisamente, através de processos de ruptura dos quadros habituais do sentido, sempre novos efeitos de sentido. Estes processos de ruptura consistem no desvendamento ostensivo dos mecanismos implícitos constitutivos desses quadros. O pintor que prolonga o traço sobre a moldura ou sobre as paredes em que o quadro é exposto, a personagem teatral que se dirige ao público ou ao actor que o representa, o romancista que se dirige ao leitor, o músico que viola as regras da melodia ou da harmonia impostas pelos limites sonoros da escala tonal são alguns exemplos eloquentes destes processos de ruptura ou de violação das regras contextuais, quer enunciativas quer referenciais. Estes processos operam inevitavelmente uma espécie de dessacralização ou de desmitificação da obra e prosseguem uma busca incessante de uma verdade originária, prévia, portanto, à própria organização das formas.

Mais importante do que a noção de contexto é, por conseguinte, a noção de contextualização, que consiste no processo de apelo que os interlocutores fazem para um conjunto de saberes extra-linguísticos, com vista à solução de ambiguidades eventuais do texto, devidas à natureza heterogénea do sentido. (Sobre a heterogeneidade do sentido ver nomeadamente Herman Parret (dir.), Le Sens et ses Hétérogéités, Paris, ed. du CNRS, 1991).

Bibliografia:

D. Sperber & D. Wilson: Relevance. Communication and Cognition (Oxford, 1986). (tradução francesa: La Pertinence. Communication et Cognition, Paris, 1989); E. Goffman: Frame Analysis. An Essay of the Organization of Experience (1974) (tradução francesa: Les Cadres de l’Expérience, Paris, 1991); F. Latraverse: La Pragmatique (Bruxelas, s./d); H. Parret: Enunciação e Pragmática (Campinas, 1988), pp. 205-219; Idem (dir.): Le Sens et ses Hétérogéités (Paris, 1991); Y. Bar-Hillel: Aspects of Language (Jerusalem, 1970).