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A noção de cotexto foi proposta por Bar Hillel para dar conta da intervenção das unidades verbais que fixam a significação das outras formas linguísticas presentes num mesmo texto. O cotexto é, portanto, um dos principais processos de solução das eventuais ambiguidades ou da heterogeneidade de sentido dos enunciados. Distingue-se da noção de contexto, utilizada para designar as instâncias enunciativas e os elementos extra-linguísticos relevantes para a compreensão de um texto ou de um discurso (cfr. Jehoshua Bar-Hillel, Aspects of Language, Jerusalem, The Magnes Press, Hebrew Univ. and Amsterdam, North-Holland, 1970).

Uma das funções mais importantes do cotexto é a criação de efeitos da intra e da intertextualidade, assegurando a produção de isotopias textuais e, deste modo, conferindo a um texto a unidade de sentido indispensável à constituição da obra literária como um todo.

Catherine Kerbrat-Orecchioni distingue duas modalidades de unidades cotextuais: os termos relacionais e os termos representantes (cfr. Catherine Kebrat-Orecchioni, L’Enonciation, Paris, ed. Armand Colin, 1977, página 38 e ss). Os termos relacionais compreendem os termos de parentesco e de localização (pai, filho, amigo, ao lado de, etc.), os termos comparativos (igual, semelhante, tanto, mais, etc.) e certos verbos de movimento (verbos que contêm as unidades sémicas de aproximação ou de afastamento). Trata-se de termos que desempenham funções cotextuais, na medida em que, sendo unidades que possuem, por assim dizer, uma dupla face, é a partir da sua relação que estabelecem com outras unidades verbais, que o seu sentido é definido.

Observemos os seguintes enunciados:

AA.1. «A filha da Helena é engenheira.»

AA.2. «O João mora ao lado da Helena.»

AA.3. «O João já está perto de casa.»

No exemplo 1., a expressão “filha de”, apesar de ter uma significação própria, só adquire uma referência a partir da sua relação com outra expressão: “a Helena”. No exemplo 2., a referência da expressão “ao lado de” depende da sua relação com duas outras unidades verbais presentes no enunciado: “o João” e “a Helena”. No exemplo 2., a referência de “está perto de” depende da sua relação com “casa do João”. Estas expressões desempenham por isso funções cotextuais das expressões relacionais presentes nos enunciados referidos.

Não confundir a função cotextual dos termos relacionais com a função díctica. Assim, por exemplo, no enunciado «O meu pai é engenheiro», o termo “pai” não é um termo relacional, mas díctico, na medida em que a sua referência não depende de outras unidades presentes no enunciado, mas da sua relação com uma instância enunciativa, neste caso, da sua relação com o locutor.

Por seu lado, os representantes são, segundo a definição de Haroche e Pêcheux, «termos ou expressões que recebem a sua significação de outros termos, expressões ou proposições contidos no mesmo texto e que eles representam.» (Claude Haroche e Michel Pêcheux, Manuel pour l’Utilisation de la Méthode d’Analyse Automatique du Discours, in T.A. Informations, 1972-1, página 17.) Segundo outros autores, os representantes são designados por anafóricos, no caso de representarem outras unidades verbais precedentes ou por catafóricos, quando representam outras unidades verbais por antecipação.

Observemos os seguintes enunciados:

AA.4. «Está aqui o livro que tu me deste.»

AA.5 «Encontrei dois amigos que já não via há muito tempo

AA.6 «O João cortou-se com a faca da cozinha.»

AA.7 «O Luís disse que a Sandra tinha viajado, mas isso não é verdade.»

AA.8 «O cão seguia-o para todo o lado, verificou o rapaz quando se voltou.»

Nos enunciados 4. e 5., o termo que é um representante, porque a sua referência é uma unidade verbal que se encontra no enunciado. Nestes dois exemplos, a unidade verbal que o termo que representa antecede-o, pelo que alguns autores dão-lhe também o nome de termo anafórico. Idêntica função de representante com função anafórica têm as unidades verbais se, isso e se, nos enunciados 6. e 7. e 8., respectivamente. Mas, no enunciado 8, a unidade linguística o, na expressão “seguia-o”, refere-se por antecipação a rapaz, que aparece na segunda parte do enunciado. É a este tipo de representantes que alguns autores dão o nome de catafóricos.

Por razões didácticas, demos exemplos de representantes delimitados pela dimensão do enunciado. Mas os representantes podem relacionar expressões verbais que se encontram afastadas, funcionando assim à distância o seu efeito cotextual. As unidades representantes que estão situadas à distância das unidades representadas são detectáveis através da análise textual.

Em todo o caso, seja qual for a distância que separa um representante do representado, as duas modalidades de representantes que distinguimos, a anafórica e a catafórica, estão muitas vezes associadas à produção de dois efeitos de sentido cotextual distintos. Podem produzir aquilo a que alguns autores dão o nome respectivamente de flashback e de flashforward.

Quando estes efeitos jogam com a estrutura narrativa, o flashback pode corresponder à produção de uma presença anamnésica dos acontecimentos actuais com outros ocorridos no passado, gerando uma espécie de profundidade afectiva, ao passado que o flashforward é, em geral, utilizado para provocar efeitos de suspense, guardando em reserva a solução do enigma narrativo até ao desfecho da acção.

Tanto as unidades relacionais como as unidades representantes distinguem-se das unidades referenciais e dícticas. Enquanto as unidades relacionais e as unidades representantes remetem para outras unidades presentes no texto, as unidades referenciais remetem para objectos do mundo, real ou fictício, e as unidades dícticas remetem para as instâncias enunciativas.

bibliografia

A. D. Rodrigues: Dimensões Pragmáticas do Sentido (Lisboa, 1996), pp. 55-77; C. Kebrat-Orecchioni: L’Enonciation (Paris, 1977), pp. 38 e ss; Cl. Haroche & M. Pêcheux: “Manuel pour l’Utilisation de la Méthode d’Analyse Automatique du Discours”, in T.A. Informations, 1972-1, pp. 17; E. Benveniste: Problèmes de Linguistique Générale, 2 vols (Paris, 1966); J. Bar-Hillel: Aspects of Language (Jerusalem, 1970); R. Jakobson: Essais de Linguistique Générale (Paris, 1963).