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A psicanálise deve em parte a sua existência à literatura a qual, segundo Freud, é melhor fonte de formação para a clínica psicanalítica do que os estudos médicos. Por seu lado, Lacan, aberto às novas correntes do seu tempo e para quem sólidos estudos de medicina e de psiquiatria se misturaram com a frequentação dos surrealistas, é recebido em 1964 para o seu seminário na Escola Normal Superior de Paris, deixando de ter como interlocutores maioritários apenas os seus colegas analistas, para interpelar e se deixar interpelar pelos filósofos e homens de letras da então revista Tel Quel. Mais tarde, ao alargar a sua reflexão sobre a psicanálise no confronto com outras disciplinas, da antropologia à lógica, à matemática e à topologia, nunca deixa o domínio que, apesar de médico, foi a base da sua formação cultural inicial: a arte em geral e a literatura em especial.

Freud participa na revisão, que se inicia na sua época, da fronteira que as ciências positivas tinham estabelecido nos séculos anteriores entre o objectivo e o imaginário, entre o que elas julgam controlar e o resto. Michel de Certeau que o relembra defende que a “literatura é o discurso teórico dos processos históricos, o seu discurso lógico, a ficção que a torna pensável”. Ora, não participa a psicanálise por definição dessa lógica da historicidade?

Em 1895, Freud admira-se de que “as suas histórias de doentes se leiam como romances e que, de certo modo, não apresentem o carácter sério da ciência”. Constata que os métodos científicos utilizados em medicina não têm qualquer valor para o estudo da histeria enquanto que uma apresentação aprofundada dos processos psíquicos, seguindo a maneira dos poetas permite uma certa inteligência do desenrolar daquela patologia. Apela aos poetas e romancistas que conhecem tantas coisas que o nosso conhecimento escolar nem sonha e que precedem sempre o cientista. Nunca sairá desta via e o seu último texto, O Homem Moisés, será por ele designado como um romance. Uma ficção teórica.

Aquilo de que se trata é da forma e do conteúdo. Nos escritos freudianos é a ficção que, como o material recalcado, retorna no real do sério científico, não só porque ela é objecto de análise, mas porque lhe dá a forma. Com a psicanálise a maneira do romance torna-se escrita teórica. Repescando as relações que perseguem desde a Bíblia, a ligação do saber ao seu objecto, Freud trai a norma científica e reencontra o género literário que era, na Sagrada Escritura, o discurso teórico dessa relação.

Eis como começa a relação da psicanálise com a literatura. Por uma relação interna. É à literatura que Freud vai buscar o conteúdo e a forma da psicanálise. Ele lê a cura como um romance, ouve os lapsos, ironias, actos falhos e sonhos como um texto literário. Reciprocamente, a escrita da “ficção” analítica ensina a ler a literatura. Em Freud, há uma continuidade entre a maneira de ouvir um analisando, a maneira de ler uma obra literária e a sua maneira de escrever. A obra literária não pode, na crítica psicanalítica, reduzir-se a um modelo imposto por uma cientificidade. Por seu lado, a literatura, ao fornecer os modelos à psicanálise, retira-a do campo médico, neurológico.

Esses modelos são fundamentalmente dois, a tragédia e a retórica. A tragédia oferece a Freud a estrutura teatral que ele aplicará à explicação da estruturação do psiquismo em três instâncias, o isso, eu, o supereu. Por outro lado, Freud inicia o caminho de retorno do romance ao mito, mas para antes que o mito retire o carácter histórico da narrativa. Situada entre o romance e o mito, a psicanálise conserva do primeiro o desenrolar narrativo e do segundo as estruturas explicativas.

Quanto à retórica, encontramos a sua influência no que respeita aos processos de produção. Todos eles se caracterizam por deslocamentos, condensações desfigurações, máscaras, em suma, deformações. Na elaboração dos sonhos, o deslocamento e a condensação aparecem tal como metonímias e metáforas. Mas Freud retira-as do “ghetto” literário em que uma concepção cientista as encerrara, reconhecendo nelas um conjunto de operações que se dirigem ao outro.

Para utilizar uma palavra de Freud, a obra literária torna-se assim uma mina onde investigar as tácticas históricas relativas às circunstâncias e caracterizadas pelas deformações que elas operam num sistema social e linguístico. O texto literário é como que um jogo, um espaço, tão teórico e protegido como um laboratório onde se formulam, se distinguem, se combinam e se experimentam as práticas subtis da relação ao outro. É o campo em que se exerce uma lógica do outro, lógica rejeitada pelas ciências que praticam uma lógica do mesmo. Ao apoiar-se na retórica da literatura, Freud devolve ao texto literário o estatuto de ficção teórica que permite reconhecer e produzir os modelos necessários a qualquer explicação histórica.

Enquanto a crítica científica constrói para si um lugar próprio de onde elimina tudo o que não lhe seja conforme, a análise freudiana assinala a alteridade familiar da apropriação, mostra os jogos contraditórios que se desenrolam no mesmo lugar, entre o que nele se manifesta e nele se esconde, diagnostica o equívoco e a pluralidade do lugar. Para Freud que, como nos lembra Michel de Certeau, destrói os conceitos de indivíduo e de nação, estes são um e outro camuflados de uma luta, de uma divisão interior, de uma deslocação que de cada vez que é recalcada, volta à cena. O romance é o instrumento teórico desta análise: é ele que a faz escondendo-a e ele que permite enunciá-la. A crítica psicanalítica é essa enunciação.

Tal como no texto que redige ou na cura que dirige, o psicanalista tem o cuidado de confessar, dizia Freud, qual a sua relação afectiva face à pessoa ou ao documento que analisa: perturbado por Dora, aterrorizado pelo Moisés da estátua de Miguel Angelo, irritado com o Yaveh da Bíblia… Eis uma regra de ouro de qualquer cura psicanalítica que contradiz frontalmente uma norma constituinte do discurso científico, o qual supõe que a verdade do enunciado é independente do sujeito que enuncia. Freud, pelo contrário, supõe que o lugar do enunciador – aqui a do escritor como a do crítico – é decisivo na rede de conflitos e reacções e é caracterizada pelo afecto. Assim se reintroduz o que o enunciado objectivo esconde: a sua historicidade, a que estruturou as relações e a que as muda. Fazer reaparecer esta historicidade é condição de uma crítica psicanalítica ao mesmo tempo que da operatividade da psicanálise. Enquanto o positivismo rejeita como não científico o discurso que confessa a subjectividade, a psicanálise considera cego e patológico aquele que a esconde.

Confessar o afecto é reaprender uma língua esquecida pela racionalidade científica e reprimida pela normatividade social. Enraizada na diferença sexual e nas cenas da infância, essa língua só aparece já mascarada nos sonhos, nas lendas e nos mitos. E na literatura.

É no estilo que a psicanálise encontra o dizer da literatura. O estilo ao estar ligado à enunciação e não ao enunciado, permite a análise deste através das situações de fala. Wittgenstein escreve: “A maneira como o psicanalista descobre porquê uma pessoa ri é semelhante à investigação estética.” Com A Ironia e as suas Relações com o Inconsciente, de Freud, aprende-se a reflectir sobre o que há de voluntário e involuntário na criação artística, sobre a totalidade da obra e os detalhes que permitem ler no que é dito que alguém diz e o quê.

Assim Kristeva lembra justamente que ao esquema da comunicação linguística, a psicanálise substitui um modelo que postula que qualquer acto de linguagem implica um sujeito falante, mas também desejante. Sujeito que não é, mas que se produz no trabalho discursivo. Nesse sentido a atenção do crítico tem de dirigir-se ao acto de narração e não ao seu objecto. É enquanto narração que se dirige ao outro que o texto literário faz surgir para aquele que o lê as suas próprias emoções enterradas, fazendo dele um sujeito desejante.

A primeira narração data do Édipo, momento em que uma história lógica e cronologicamente formulada vem reformular a experiência passada do sujeito através do desejo actual e em termos de personagens familiares. (É assim que as crianças desde muito pequenas podem ouvir ler ou contar histórias, que em geral se repetem infinitamente e que lhes dão os instrumentos para se dizerem a si próprias pela vida fora). Enquanto sujeitos desejantes e castrados, estamos condenados a abordar a narração, não no sentido evolutivo, mas às avessas, através de estruturas já ordenadas. E se o sujeito não tem acesso à sua história senão pela narração (aprendida e aplicada na infância como aparência) ela é para ele o principal meio de representação (teatral) das suas relações com o mundo e do seu lugar como falante.

Esta noção de desejo inconsciente que produz o texto deu origem a várias teorias de análise do texto baseadas na psicanálise: A textanálise de Jean Bellemin-Noel que busca e se interessa pelo acto de produção do texto; O amor da língua de J.C. Milner que denuncia a crítica que globaliza o texto e evita a qualquer preço a falta, causa do desejo de que nasce o texto; ou a semanálise de Júlia Kristeva.

Bibliografia:

Jacques Lacan: Écrits (Paris, 1966); Id.: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, (Sem.XI,1964) (Rio de Janeiro); Id.: Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce (Lisboa, 1989); Jean Bellemin-Noel: Psychanalyse et litérature, “Que sais-je?” (Paris, 1987); Jean-Claude Milner: L’amour de la langue (Paris, 1978); Júlia Kristeva: (o conjunto da obra sobre crítica literária); Malcom Bowie: Freud, Proust and Lacan, Theory as Fiction (1987); Michel de Certeau: Histoire et psychanalyse entre science et fiction (Paris, 1987); Sigmund Freud: A Interpretação dos sonhos (1900) (Lisboa, 1989); Id.: El chiste y su relacion com lo inconsciente (1905) Obras Completas, vol.I, (Madrid, 1948); Id.: El delirio y los sueños en la Gradiva de W.Jensen,(1907), Obras Completas, vol.I, (Madrid, 1948).