Em sentido lato, é a representação verbal de lugares ou ambientes, animais ou coisas, pessoas ou personagens, estados de espírito, impressões ou sentimentos. Representação, torna presente, re-apresenta, constrói, imitando de forma verosímil; verbal, usa como veículo a palavra dita ou escrita; lugares, coisas, personagens, etc. constituem o referente construído ou a construir. Distingue-se da enumeração semântica por pretender transmitir uma imagem coerente e singular do “objecto” descrito; da definição porque, remetendo-se ao referente, não se debruça, especificamente, sobre a palavra que o representa; da digressão, pois o seu objectivo não é expandir o discurso, saltitando para domínios contextuais adjacentes; da dissertação e do comentário, na medida em que o seu fito imediato não é expressar e defender uma opinião; da narração, uma vez que o referente não é o relato de uma acção ou de acções articuladas, situadas no tempo, não conta uma história. Distingue-se, embora nunca (ou raramente) ganhe autonomia em relação a estes ou a outros tipos de discurso, e marque presença, de maior ou menor relevância, em todos eles.
Toda a descrição pressupõe a captação do perceptível e a selecção subjectiva dos pormenores que, individualizando o “objecto”, interessam ao emissor e pretendem realizar o horizonte de expectativa do receptor, ouvinte ou leitor. São pertinentes, neste sentido, as observações de Adam e Petitjean (82b) cit. por H. Buescu (Incidências do Olhar): “[…] uma descrição é […] sempre o produto de um acto rigoroso de selecção que implica necessariamente uma subjectividade enunciativa e isto por diversas razões: 1) Não nos apercebemos da totalidade do que é perceptível. 2) Não verbalizamos a totalidade daquilo de que nos apercebemos. 3) Descrevemos em função dos nossos conhecimentos (da língua e do mundo) e dos que consideramos partilhados pelo leitor. […]”.
Pode o “objecto” descrito ou a descrever caracterizar-se pela sua natureza fixa, ou, pelo contrário, consistir num processo que implique movimento: a descrição estática, que fornece uma visão de conjunto em que entram a aparência, a forma, a cor, a dimensão, a intensidade, etc., e a descrição dinâmica, a que alguns chamam “exposição narrativa”, devido à sua proximidade da narração, e que regista a indicação clara, por ordem cronológica ou lógica, das diversas fases do processo em causa. A memória descritiva do projecto arquitectónico de um edifício que refere os materiais a utilizar, a sua qualidade, consistência, etc. pode considerar-se como exemplo limite de descrição técnica, muito embora se aproxime mais da catalogação de matéria prima de que fala Harry Shaw (Dicionário de Termos Literários). Por seu turno, o relato das várias fases de uma experiência científica constituirá modelo elucidativo de descrição dinâmica. Estes exemplos apontam para a chamada descrição técnica, que se caracteriza pela precisão do vocabulário, exactidão matemática dos pormenores, linguagem basicamente denotativa, por isso mesmo distinta da descrição literária em que predominam a subjectividade, a intenção estética, a conotação. Parece metodologicamente útil manter esta distinção, não esquecendo, todavia, a necessidade de lhes esbater os contornos, como sugere Helena Buescu (op. cit.), ao considerar a posição de Nelson Goodman que se “recusa a aceitar o tradicional contraste entre científico-objectivo-cognitivo, por um lado e, por outro, o artístico-subjectivo-emotivo”. De facto, não é raro encontrar fragmentos de uma e outra tanto em discursos de natureza intencionalmente literária, como em documentos com a marca de históricos ou científicos. Veja-se este exemplo de descrição técnica extraído do romance de José Saramago, Todos os Nomes: “Por cima da moldura da porta há uma chapa metálica comprida e estreita, revestida de esmalte. Sobre um fundo branco, as letras negras dizem Conservatória Geral do Registo Civil. O esmalte está rachado e esboicelado em alguns pontos. A porta é antiga, a última camada de pintura castanha está a descascar-se, os veios de madeira, à vista, lembram uma pele estriada. Há cinco janelas na fachada. Mal se cruza o limiar, sente-se o cheiro do papel velho”. E este outro, de natureza certamente literária, da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes: “Os montes começaram de se lavar com a multidão das grossas chuvas, e descendo às estradas, seu trigoso escorrimento leva grande torva aos armados que queriam seguir seu caminho; de guisa que dos pobres regatos, hu adur morava uma simples rã, se faziam tão grande ribeiros que punham espanto de se poder passar. E sendo cada vez mor a aspereza de tão esquivo Inverno, parecia que nasciam no céu novas maneiras de chuvas pera soverter o mundo outra vez com mortal dilúvio, assim que os rios crescendo fora da mesura e cobrindo as acostumadas pontes, adur eram os homens ousados de provar seu medroso passamento.” Podendo eleger “objectos” fixos ou dinâmicos, descrição técnica e descrição literária distinguem-se, fundamentalmente, em razão do objectivo e do ponto de vista: a descrição de um parque desportivo que realce a sua localização em espaço aberto, o jogo de cores das bancadas, o comportamento morno ou entusiasmado dos espectadores durante uma competição é, seguramente, diferente daquela que um inspector de segurança fará, se nesse espaço tiver ocorrido um acidente cujas causas é preciso averiguar; como diferente será, num e noutro caso, a escolha do ângulo de visão, dos pormenores considerados mais significativos, da ordem a seguir, do vocabulário a seleccionar tendo em vista o ouvinte ou leitor a quem se destina: “Quanto mais a descrição se tornar técnica, utilizar termos monossémicos […] ou nomes próprios […] e se fizer idiolecto profissional, tanto mais paralelamente se porá o problema da sua legibilidade” (Philippe Hamon, 72). Na expressão de Othon Garcia, que retoma um modo de dizer vindo dos clássicos, a descrição técnica deve “esclarecer convencendo”, enquanto à literária compete “impressionar, agradando” (Comunicação em Prosa Moderna, 78).
Entrando no domínio exclusivo da literatura, e tendo embora em linha de conta que “a descrição é por excelência o fenómeno textual que desafia com insolência os esforços de teorização e de definição” (Henk Kars, cit. por Helena Buescu, op. cit.), pode redefinir-se a noção de descrição, agora em sentido estrito, como “o modo de representação literária de personagens, objectos, lugares, ambientes, etc.” (A. Moniz e O. Paz, Dicionário Breve de Termos Literários). Constituem, de facto, “objecto” recorrente da descrição literária as personagens e os espaços. Em se tratando do texto dramático, o seu uso restringe-se às didascálias, podendo ilustrar uma ou outra réplica: “— MARIA (que parou diante do retrato de D. João de Portugal, volta-se de repente para o pai): Meu pai, este retrato é parecido? — MANUEL: Muito; é raro ver tão perfeita semelhança: o ar, os ademanes, tudo. O pintor copiou fielmente quanto viu. Mas não podia ver, nem lhe cabiam na tela, as nobres qualidades de alma, a grandeza e valentia de coração e a fortaleza daquela vontade, serena mas indomável, que nunca foi vista mudar” (Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa). Tal não costuma, contudo, ser objecto da Crítica Literária. Como o não são as descrições contidas na poesia lírica: “[…] // Que de fruto! E que fresca e temporã, / Nas duas boas quintas bem muradas, / Em que o Sol, nos talhões e nas latadas, / Bate de chapa, logo de manhã! // O laranjal de folhas negrejantes, / (Porque os terrenos são resvaladiços) / Desce em socalcos todos os maciços, / Como uma escadaria de gigantes. // […].” (Cesário Verde, “Nós”). Deve-se, seguramente, à sua frequência no discurso narrativo, o facto de os estudiosos se debruçarem preferencialmente sobre as descrições nele contidas, embora nem aí ganhe estatuto autónomo, nomeadamente em relação ao modo de representação predominante, a narração, que, todavia, não subsiste sem aquela: “[…] a verdade é que pode facilmente encontrar-se uma descrição isenta de elementos narrativos, ao passo que é muito difícil, senão impossível, existir um enunciado narrativo que não ofereça, por mínimo que seja, um conteúdo descritivo” (Aguiar e Silva, Teoria da Literatura). Tais estudos incidem, por sistema, sobre sequências mais ou menos longas, deixando de lado traços descritivos presentes na generalidade dos períodos ou frases. É que há dificuldades “em qualquer estudo do fenómeno descritivo” que “derivam, em primeiro lugar, da falta reconhecida de um critério que possa à partida delimitar e separar, no seu conjunto, o fragmento narrativo do fragmento descritivo. Na generalidade, todos os doutrinadores estão de acordo sobre este facto, apontando a impossibilidade de, em muitos casos concretos, apartar a descrição da narração” (Helena Buescu, op. cit.). Sintetizando os elementos fundamentais da descrição, Ives Reuter (L’Analyse du récit, 97) enumera: “a menção do referente descrito que pode ser implícita ou explícita, situada na abertura ou no fecho da sequência descritiva; a construção / deconstrução do referente através das suas propriedades e das suas partes; a situação do referente no espaço e no tempo; o estabelecimento de relações do referente com outros referentes (através da comparação, metáfora, negação…); a disposição das propriedades e das partes em planos convencionais (espaciais, temporais, enumerativos…) marcados por conectores específicos (antes / depois / em seguida…; à esquerda / à direita…; em frente / mais longe…; em cima / em baixo…) que organizam a descrição e dão a impressão de um movimento (do observador ou do observado), mesmo de uma temporalidade”.
A descrição de personagens, ou retrato, revela, directa ou indirectamente, as suas características físicas ou psicológicas, económico-sociais, culturais ou morais: “João Garcia pareceu-lhe simpático, de modos finos, não seria positivamente o seu tipo de beleza em rapazes — magro de mais, com uma timidez desconcertante, porque era só não sei que falta de jeito naquele todo: a mão esquerda por baixo do joelho da perna direita cruzada, não muito bem vestido, mas com uma gravata de bom gosto e o queixo enclavinhado quando contava partidas de Coimbra e coisas antigas da ilha, das descobertas e dos conventos. Os olhos animavam-se-lhe muito e tinha uma mãos expressivas: se falava de uma coisa redonda unia-as como quem abre um fruto. Um nariz grosso, levemente suado; mas a testa era bonita, o cabelo era forte…”(Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal). A magreza de João Garcia, a posição da mão esquerda e do queixo, o nariz “grosso”, “a testa bonita”, “o cabelo forte” são traços físicos atribuídos directamente à personagem, processo seguido igualmente na caracterização psicológica da “timidez desconcertante”, da animação dos “olhos”, “das mãos expressivas”. Já os “modos finos” e a indumentária indiciam ou revelam indirectamente o seu hipotético estatuto sócio-cultural da classe média.
A descrição dos espaços em que decorre a acção é um dado fundamental para a compreensão cabal da história narrada, independentemente da corrente estética em que a obra se insira, ou clássica: “Três fermosos outeiros se mostravam, / Erguidos com soberba graciosa, / Que de gramíneo esmalte se adornavam, / Na fermosa Ilha, alegre e deleitosa. / Claras fontes e límpidas manavam / Do cume, que a verdura tem viçosa; / Por entre pedras alvas se deriva / a sonorosa linfa fugitiva” (Luís de Camões, Os Lusíadas); ou romântica: “A majestade sombria e solene de um bosque antigo e copado, o silêncio e escuridão de suas moitas mais fechadas, o abrigo solitário de suas clareiras, tudo é grandioso, sublime, inspirador de elevados pensamentos. […] um rochedo em que me eu sente ao pôr do Sol na gandra erma e selvagem, vestida apenas de pastio bravo, baixo e tosquiado rente pela boca do gado — diz-me coisas da terra e do céu que nenhum outro espectáculo me diz na natureza” (Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra); ou realista: “Era um dia já quente, azul-ferrete, com um desses rutilantes sóis de festa que inflamam as pedras da rua, douram a poeirada baça do ar, põem fulgores de espelho pelas vidraças, dão a toda a cidade essa branca faiscação de cal, de um vivo monótono e implacável, que na lentidão das horas de Verão, cansa a alma, e vagamente entristece. No Largo dos Jerónimos, silencioso, e a escaldar na luz, um ónibus esperava, desatrelado, junto ao portal da igreja” (Eça de Queirós, Os Maias). É pertinente distinguir, na descrição literária, o panorama (close up ou visão geral): “O Vale de Santarém é um destes lugares privilegiados da natureza […]. À esquerda do vale, e abrigado do norte pela montanha que ali se corta quase a pique, está um maciço de verdura do mais belo viço e variedade (Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra) e o grande plano: “Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se por entre um claro das árvores a janela meio aberta de uma habitação antiga mas não delapidada — com certo ar de conforto grosseiro, e carregado na cor pelo tempo e pelos vendavais do sul a que está exposta. A janela é larga e baixa; parece mais ornada e também mais antiga que o resto do edifício que todavia mal se vê…” (idem).
O reconhecimento da importância da descrição no discurso narrativo tem vindo a avolumar-se. Assumindo uma posição subalterna relativamente à narração, é considerada a serva ou criada (ancilla narrationis) que ornamenta o discurso, mas, ao retardar a acção (catálise, no dizer de Roland Barthes), obriga o leitor a uma pausa desmotivadora. Esta postura, defendida pelos clássicos, de Horácio a Boileau), tem seguidores em teóricos contemporâneos como Gerard Genette, Jean Ricardou e outros, e é seguramente partilhada por um leitor médio que confronte, por exemplo, Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett com Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco. No entanto, a partir de estética romântica, o papel de descrição altera-se substancialmente, ganhando um estatuto que se pode dizer indissociável da narrativa: “Verifica-se então que o que aparecia como um «luxo» pode afinal ser entendido como o irremediavelmente textual, engendrado pela própria constituição daquele texto enquanto tal, e também irremediavelmente ligado ao modo de representação que o enforma. A descrição deixará então de ser um produto «paratextual» que se pode indiferentemente acrescentar ou retirar do texto, para fazer parte indissolúvel do real criado nele e por ele” (Helena Buescu, op. cit.). A estética contemporânea, nomeadamente do nouveau roman, ao relevar os espaços em detrimento da acção, veio valorizar ainda mais o papel da descrição.
: Buescu, Helena Carvalhão, Incidência do Olhar – Percepção e Representação, Edit. Caminho, Lisboa, 1990. Calderón, Demétrio Estébanez, Diccionario de Términos Literarios, Alianza Editorial, Madrid, 1996. Gabi, Gabriela, “Per una semantica e una pragmática del testo descrittivo”, Língua e Stile, Bolonha, 1981. Garcia, Othon M., Comunicação em Prosa Moderna, Edit. F. Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 1978. Hamon, Philipe, “Qu’est-ce qu’une description?”, Poétique, Paris, 12, 1979. Hamon, Philipe, Introduction à l’Analyse du Desriptif, Hachette, Paris, 1981. Moniz, A. e Paz. O., Dicionário Breve de Termos Literários, Edit. Presença, Lisboa, 1997. Reuter, Yves, L’Analyse du Recit, Dunod, Paris, 1997. Shaw, Harry, Dicionário de Termos Literários, Publ. D. Quixote, 2ª ed., Lisboa, 1982.
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