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É na Traumdeutung, “A interpretação dos sonhos”, que Freud apresenta a noção de deslocamento como um mecanismo essencial, ao lado da condensação, para a elaboração dos sonhos. Mas em seguida, Freud aplica-os à formação de sintomas, de actos falhos, de ironias, de esquecimentos e, claro, da obra literária. Lacan, mais tarde, desenvolverá a equivalência do deslocamento e da metonímia, à condensação e à metáfora.

Este conceito presta-se para esclarecer o leitor sobre a ligação profunda entre a teoria analítica e o trabalho literário. “A teoria do recalcamento é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise” (Freud). É ele que vai, primeiro pelo processo primário, em seguida pelo secundário (o que actua com a linguagem) estruturando a criança no seu corpo e na sua mente. O corpo e a fala da mãe vão criando no corpo da criança, não só uma estrutura das suas energias, ligações entre elas, mas uma vida mental, uma ligação dessas energias não apenas entre si, mas aos signos, aos símbolos, enquanto significantes da cultura. Fala que se por um lado é consciente e materializa em sons, em produções do corpo, o que de incognoscível se passa nesse corpo, por outro lado é inconsciente da ligação a esse incognoscível. De facto os fenómenos linguísticos, os sistemas de significantes, a sua estrutura não surgem à consciência sequer nem sobretudo durante a sua aprendizagem. Não se aprende a língua, aprende-se a falar. Essa ligação faz-se, assim, ao nível das energias somáticas incognoscíveis que se ligam ou desligam. A língua aprende-se vive-se e desenvolve-se como uma elaboração colectiva, numa história inconsciente de processos de ligação dos corpos e entre os corpos que ela estabelece. Mesmo o sábio em linguística não confunde os seus conhecimentos teóricos com a sua experiência de sujeito que fala e esta modifica-se muito pouco em função daquela.

É o recalcamento que permite este trabalho. Mais do que negar a entrada no inconsciente, o recalcamento primário funciona quando o consciente ainda não está estruturado. Mas não se exerce sobre a pulsão, antes sobre o seu representante, ele próprio inconsciente. E Freud lembra que “somos levados a esquecer demasiado depressa o facto de que o recalcamento não impede que o representante da pulsão continue a existir no inconsciente, se organize ainda mais, dê origem a derivados, estabeleça ligações”.

O recalcamento secundário “só se dá quando existe já uma cisão marcante entre actividade mental consciente e inconsciente.” O recalcamento afecta os derivados mentais do representante (da pulsão) reprimido ou associações de pensamento e é feito por esse representante inconsciente. Assim, a cultura é um derivado, uma elaboração distante desse recalcado primitivo. Mas é mais do que isso. Corresponde à criação de uma estrutura que permite: 1. Que o recalcado seja estruturado segundo um modelo social, colectivo e que, assim, os derivados possam ter a ver uns com os outros, ligar-se. 2. Que o recalcamento seja eficaz, duradouro. Ao dirigir-se não à pulsão, mas aos seus representantes, o recalcamento exige um exercício incessante. As regras da cultura – de parentesco, por exemplo – criam uma estrutura no inconsciente ao nível do recalcamento primário que facilita a tarefa posterior de recalcamento. Essa estrutura, por ser “como a de uma linguagem” (Lacan), encontra na fala o seu melhor e mais seguro representante.

A fala produz nos humanos um modo de consciência qualitativamente diferente. Carrega consigo não só o que diz e reconhece no exterior e no interior – o consciente – mas também todas as energias que ela liga e que permanecem inconscientes. Assim “a fala diz muito mais do que pensa ou quer dizer” (Lacan). Ela traz o sujeito. “O que fala no homem vai muito além da sua fala, penetra nos seus sonhos, no seu ser e mesmo no seu organismo” (Lacan).

Podemos agora perceber o que é o deslocamento: operação característica dos processos primários através a qual uma quantidade de afectos se desliga da representação inconsciente à qual estava ligada e vai ligar-se a uma outra que só tem com a precedente laços de associação pouco intensos ou mesmo contingentes. Esta última representação recebe assim uma intensidade de interesse psíquico que excede o que ela deveria receber, enquanto a primeira, desafectada, é assim como que recalcada. Este deslocamento encontra-se em todas as formações do inconsciente. Na Interpretação dos sonhos, encontramos o seguinte exemplo: “Os pensamentos do meu sonho, explica Freud, eram injuriosos para R.; para que eu não o note, são substituídos pelo seu oposto, a ternura”. Dá também exemplos do quotidiano: o apego de uma solteirona por animais, a paixão de um solteirão pelas suas colecções, o ardor do soldado na defesa de um bocado de pano colorido, a bandeira, a fúria de Othelo por um lenço perdido.

Assim, de cada vez que um elemento psíquico está ligado a outro por uma associação chocante ou superficial é porque há entre os dois um laço natural e profundo submetido à censura. Há um deslocamento, uma passagem duma associação normal e séria a uma associação superficial e de aparência absurda.

Bibliografia:

Jacques Lacan: Écrits, (Paris, 1966); Sigmund Freud: Le rêve et son interprétation (1900) (Paris,1950; id.: O recalcamento (1915), R.de J., Imago Editora Ld., livro 15.