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Conceito amplo da psicologia que literalmente significa a perda ou a negação da personalidade. Em literatura, e sobretudo na poesia, é costume apontar aqueles casos de escritores que buscam identidades ficcionais ou se mascaram com um pseudónimo como fenómenos de despersonalização. Contudo, o termo exige algum rigor de definição, porque tais fenómenos são explicados em função de modelos ancestrais ligados a ritos de iniciação e a representações dramáticas de várias personagens por um mesmo actor.

Em primeiro lugar, a despersonalização poética afasta-se por completo da essência original da despersonalização dionisíaca, que não é literária mas psicológica, não é formal mas positivamente espiritual. Na despersonalização dionisíaca, há sempre um sujeito-sombra (em termos jungianos, tudo o que o sujeito recusa reconhecer em si próprio e, contudo, insiste em arremessar sobre si permanentemente), que funciona como a máscara do sujeito-ele-próprio que assume essa sombra como separada de si mesmo. É o facto de o sujeito-sombra não ser reconhecido pelo sujeito que origina a despersonalização, produzindo, por exemplo, o desdobramento da personalidade.

Ainda dentro da questão central da despersonalização, é muito mais dionisíaco aquele poeta que se esconde por detrás de um pseudónimo, assumindo-se como um estranho de si mesmo, ou de heterónimos, adoptando identidades imaginárias, do que aquele que se evade dos grilhões da subjectividade apenas com o pretexto de se anunciar como dionisíaco. O exemplo mais evidente deste tipo de despersonalização é o de Fernando Pessoa, que inclusive teorizou sobre o seu próprio caso: “É extraordinariamente bem-feita a sua [Casais Monteiro] observação sobre a ausência em mim do que possa legitimamente chamar-se uma evolução qualquer. Há poemas meio escritos aos vinte anos, que são iguais em valia – tanto quanto posso apreciar – aos que escrevo hoje. Não escrevo melhor do que então, salvo quanto ao conhecimento da língua portuguesa – caso cultural e não poético. Escrevo diferentemente. Talvez a solução esteja no seguinte. O que sou essencialmente por trás das máscaras involuntárias do poeta, do raciocinador e do que mais haja – é dramaturgo. O fenómeno da minha despersonalização instintiva (…) conduz necessariamente a essa definição. Sendo assim, não evoluo: VIAJO. (…) Vou mudando de personalidade, vou (aqui é que pode haver evolução) enriquecendo-me na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes, de fingir que se pode compreendê-lo. Por isso dei essa marcha em mim como comparável, não a uma evolução, mas a uma viagem: não subi de um andar para outro; segui, em planície, de um para outro lugar. Perdi, é certo, algumas simplezas e ingenuidades, que havia nos poemas de adolescência; isso, porém, não é evolução, mas envelhecimento. (Carta a Casais Monteiro datada de 20-1-1935, in Obras em Prosa, vol.V, Círculo de Leitores, Lisboa, p.330).

Através da máscara que lhe confere a identidade figurativa, Dioniso, que se tornou no séc.VI o deus do teatro porque já era antes o deus do fingimento e do disfarce, certifica a sua natureza litúrgica como uma divindade que continuamente alterna entre a presença e a ausência. Esta é a via do artista dionisíaco que, fundamentalmente, assume a despersonalização como um jogo de identidades, não confundível com a anulação da subjectividade, como pretende Sophia. Dioniso é sempre um estranho, uma forma a identificar, uma face por desvelar, uma máscara que esconde tanto como revela.

No quadro da literatura portuguesa, não faltam exemplos de poetas dionisíacos, senão in extenso pelo menos com obra suficientemente convincente. Tais exemplos começam nos trovadores medievais das cantigas de escárnio e mal dizer; a partir daí, por obra e/ou por vida, encontramos ilustres dionisíacos de Gil Vicente a Fernão Mendes Pinto, de Bocage a Almada Negreiros, do Álvaro de Campos da “Ode Marítima” ao Mário de Sá-Carneiro de “Apoteose”. A estética de Álvaro de Campos, por exemplo, contém os ingredientes mais refinados do espírito dionisíaco, desde o “sentir tudo de todas as maneiras”, até ao que podemos chamar a ekstasis dionisíaca do Eu, como em quaquer passo da “Ode Marítima”, onde encontramos a verdadeira magnificação dionisíaca. A isso chama-se, rigorosamente, ekstasis, que significa “estar-fora-de-si-mesmo”. A ekstasis atinge-se pelo desejo de querer ser “mais que isto o Deus-isto!”, que exige um deslocamento da mente extática para um nível de não-existência, que se pode até aproximar da esquizoidia. O “Deus dum culto ao contrário / Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum panteísmo de sangue” da “Ode Marítima” pode funcionar como um retrato fiel de Dioniso e todas as impressões anotadas no poema revelam um espírito ardentemente dionisíaco que se devota a imagens de cruelty and lust, de uma “fúria imaginativa” capaz de realizar os “desejos de identidade” do Poeta. Ao comentar a “Ode à Alegria” de Schiller, onde encontrou idêntica magnificação dionisíaca, o tipo de despersonalização adoptada por Fernando Pessoa, que tem por objectivo complexo a aniquilação total para poder criar, aproxima-se do estado da ekstasis sob influência dionisíaca: o indivíduo abandonou o bom senso e a conduta regrada para entrar no estado da mania ou delírio místico. A única diferença – e neste sentido qualquer experiência individual é anti-dionisíaca – está no facto de estarmos na presença de uma obra de uma só pessoa física, desdobrada apenas no plano da imaginação literária, o que é contrário à mania colectiva dos devotos de Dioniso. Salvaguarda-se o facto de que tal diferença pode facilmente ser dissolvida se o poeta assumir, como o faz Pessoa-Campos, que a sua loucura profunda não é única nem exclusiva, remetendo para os outros o frémito sentido singularmente: “Ah, não sei quê, não sei quanto queria eu ser de vós!”. Pessoa tem ainda a seu favor o facto de ter explicado teoricamente as raízes e os traços do seu complexo génio apolíneo-dionisíaco, sobretudo nas Páginas Íntimas e de Auto-interpretação.

Seja dito que os devotos do deus da máscara e do fingimento, para além de ser o deus do vinho, das orgias, dos crimes violentos e dos actos desmedidos — perfeita antítese do preceito apolíneo: “Nada em excesso” (meden agan) — convenciam-se de que estavam de facto possuídos pela divindade; ora, Pessoa está analogamente convencido de que está possuído por Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caiero,… O alucinado não pode ser o indivíduo que se sente possuído em virtude dessa influência sem ser de inspiração divina, no caso dos gregos antigos, e de inspiração poética no caso de Pessoa

A possibilidade de realização do fenómeno da despersonalização depende da capacidade do sujeito para a carnavalização. Na tragédia grega, tal como na embriaguez extática das Bacantes tebanas, o actor representa o seu papel como se estivesse fora de si mesmo. Os espectadores estavam familiarizados com a fantástica fusão dos actores com a divindade, cuja expressão ritual era feita geralmente em danças e procissões de tochas ao longo dos sopés e das encostas das montanhas. Era esta a força da despersonalização: na tragédia, o actor e o espectador estavam ligados espiritualmente e ambos se deixavam levar para fora de si mesmos, assumindo uma personalidade alheia, que era afinal um poder próximo dos outros poderes de Dioniso: o êxtase místico das Ménades, as epifanias surpreendentes e o efeito tóxico do vinho (o grego toxikón deixa subentender o phármakon, literalmente: “veneno que convém ao arco ou à flecha”, uma droga que provocava um sentimento de euforia e fazia esquecer as amarguras da vida).