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Tudo o que no texto dramático não se destina a ser dito pelas personagens e que, na representação cénica, desaparece enquanto discurso e surge diante dos espectadores como acção ou presença física (objectos, guarda-roupa, cenário …).

As didascálias, que são a voz directa do dramaturgo, difrenciam-se visualmente do resto do texto por estarem escritas entre parêntesis ou por estarem impressas em itálico, ou de qualquer outra forma que marque bem que se trata de um texto à margem das falas das personagens. Tais indicações cumprem uma dupla função: situam o diálogo, a acção, num contexto imaginário, a nível do acontecimentos ficcional (aproximando-se do papel da descrição no género narrativo) e, a nível da representação, fornecem instruções àqueles que transformam o texto em espectáculo (encenadores, actores, cenógrafo …). A segunda função evoca o significado da palavra grega que está na origem do termo “didascália” – “didaskália” (“instrução”) e do verbo “didáskein” (“ensinar”).

As didascálias incluem as indicações espácio-temporais, as indicações cénicas “Julieta aparece a uma janela”, Shakespeare Romeu e Julieta, II 2; “Inverno. Cinco horas. Anoitece”, Raúl Brandão: O Gebo e a Sombra, I), as de movimento, de acção (“O general começa a passear, de mãos atrás das costas, enquanto repete de novo a sua cantilena”, Ivette K. Centeno: O General, 1), as de expressão facial (“Com ódio ateado nos olhos”, Bernardo Santareno: O Judeu, I), também as tom de voz e de atitude (“Fala como um alucinado, com frequentes pausas, que dão a entender não ser esta a primeira vez que no assunto”, Luís Sttau Monteiro, Felizmente há Luar, I); o nome das personagens à esquerda das suas falas, tudo o que permite determinar as condições em que o diálogo é enunciado.

As didascálias podem também aparecer no interior dos diálogos, denominando-se “didascálias internas”, sempre que, ao proferir a sua fala, uma personagens dê indicações no âmbito da própria representação (instruções de espaço, de lugar, postura, acção …). Tal é o que acontece, por exemplo, neste caso: “Telmo: (chegando ao pé de Madalena, que o não sentiu entrar). A minha senhora está a ler? …” (Almeida Garrett: Frei Luís de Sousa, I, 2).

Sendo as didascálias actos de fala directivos, que visam o “cumprimento” de instruções, pressupõe-se que tudo tenha de ser entendido no modo imperativo, mesmo que as indicações estejam escritas no presente do indicativo (“chama um pagem e diz”, Almeida Garrett: Um Auto de Gil Vicente, II, 10), no gerúndio, quer sejam formadas por adjectivos, por um advérbio (“Selvagemente”, Shakespeare, Hamlet, III, 2), dentre outros casos. Assim, por exemplo, a didascália “ameaçando-o com o dedo”, referente à atitude de Maria ao falar para Telmo (Almeida Garrett: Frei Luís de Sousa, II, 1), deve ser entendida pelo leitor como: “imagine Maria a ameaçar Telmo com o dedo”, pelo encenador como: ponha Maria a ameaçar Telmo com o dedo”.

O uso das didascálias varia ao longo da história do teatro, passando-se de situações de total inexistência de indicações a outras de invasão do texto por elas.

Assim, no teatro grego não havia necessidade de escrever didascálias, pois o dramaturgo era também o encenador. No classicismo, as didascálias eram recusadas, defendendo-se que tudo o que fosse necessário à compreensão do texto deveria fazer parte dos diálogos, evitando-se a existência de um texto exterior às falas das personagens. Porém, dramaturgos como Corneille diziam que os autores deviam escrever as didascálias à margem do texto, para não prejudicar a perfeição dos diálogos, sobrecarregando-os com indicações exteriores a eles.

É nos séculos XVIII-XIX que as didascálias adquirem importância, nomeadamente, a partir do teatro naturalista, pois as personagens individualizam-se e, para que a sua irredutibilidade seja marcada, contribui muito a presença de elementos caracterizadores, quer a nível exterior (aspecto físico, postura, movimento …), quer a nível interior (traços de personalidade, pensamentos …), conduzindo-nos à densidade psicológica das personagens.

No nosso século, o uso de didascálias é muito abundante, culminando em situações extremas, nas quais o texto dramático é constituído apenas de uma didascália, que, como não parece na representação, “dá origem”, a Actes Sans Paroles (Samuel Beckett). Nesse caso, o autor dá apenas as condições da acção: indica o cenário, o vestuário, as movimentações das personagens, não havendo quaisquer palavras.

O estatuto das didascálias varia: por um lado, esse texto secundário, segundo a terminologia de Roman Ingarden, pode ser visto como um metatexto, no qual o dramaturgo fornece a explicação do texto principal (diálogos), limitando-se o encenador a “obedecer” às instruções do autor.

Contudo, as didascálias podem ser entendidas como sugestões, pistas para a representação e não a sua “chave” e, então, o encenador pode ignorá-las ou optar por as usar como mais uma forma de questionar o texto, como mais um elemento interveniente na construção da sua própria representação/encenação da obra.

bibliografia

A. Ubersfeld: Lire le Théâtre (1977); J- Laillou: “La didascalie comme acte de parole”, in Théâtralité, écriture et mise en scène (1985); J. M. Thomasseau: “Pour une analyse du para-texte théatre”, Littérature, 53 (1984); M. Issachoroff: Le Spectacle du discours (1985); R. M. Levitt: A Structural Approach to the Analysis of Brama (1971).