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Discurso secundário que se concentra num assunto diferente daquele que está a ser tratado; discurso reflexivo-especulativo sobre um tema que suporta um desenvolvimento de ideias pessoais, geralmente reservadas ou particulares em relação ao senso comum. Estas duas definições reportam-se a situações distintas: no primeiro caso, existe uma matéria principal que está a ser tratada de acordo com um guião narrativo e que é cortada ou suspensa, para que seja possível intercalar um discurso normalmente classificado como acessório, sendo, neste caso, próxima do excurso (texto de maior dimensão do que a digressão e com objectivos mais concretos, obedecendo a plano prévio) — a obra Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, ou Tristram Shandy, de Laurence Sterne, contêm diversos tipos de digressão, como adiante exemplificaremos; no segundo caso, podemos considerar o próprio discurso digressivo como um discurso autónomo, o que é o caso de muitos textos filosóficos ou de teoria literária. Enquanto discurso autónomo, a digressão confunde-se com o comentário, o ensaio, a dissertação, etc., porque pressupõe o desenvolvimento de uma argumentação. A diferença reside no facto de a digressão enquanto texto autónomo não estar obrigatoriamente  sujeita a regras de coesão e coerência textuais.

Servir-nos-emos das digressões de Tristram Shandy e Viagens na Minha Terra para caracterizar o primeiro tipo de digressão que definimos e que constitui o caso mais comum em textos literários, geralmente concretizada em forma de anedota, comentário, comparação, memórias, evocações, monólogos, apartes, relatos exemplares, descrições particulares, etc. Naquelas obras, as digressões são descrições de acontecimentos que pertencem à narrativa e dela não devem ser dissociados como subtextos dispensáveis. As digressões de ambos os textos funcionam como meio de interrogação do acto de narrar, cuja temporalidade é insignificante para o desenvolvimento da intriga. Pertencem à narrativa e escondem-se no meio da intriga, mas não integram a sequência de acontecimentos descritos segundo uma determinada temporalidade e causualidade. É a condição de reflexividade narrativa que faz das digressões discursos especiais, circunstância que serve de justificação às teorias pós-modernas para o estabelecimento da categoria de metaficção.

A digressão enquanto discurso auto-reflexivo (por exemplo, ao serviço da paródia, da sátira e da demonstração retórica) foi uma categoria desprezada na construção de uma narrativa, segundo a doutrina dos formalistas russos continuada pelos estruturalistas franceses, com o pretexto de desviar o bom curso da acção. Mas hoje reconhecemos na digressão uma função muito especial que está já insinuada nas obras de Sterne e Garrett, mesmo sabendo que, nesta técnica, ambos são aprendizes de Cervantes. Se o prefixo grego hiper significa “sobre”, “por cima”, então o conceito electrónico de hipertexto serve-nos para descrever a técnica de construção narrativa de Tristram Shandy e Viagens na Minha Terra, no que respeita às digressões. Como não há, em ambos os casos, um registo linear da matéria narrada, o conceito de hipertexto aplica-se a todos os subtextos que escapam ao plano elementar da obra ou à narração da história principal. As digressões funcionam como hipertextos, o que permite ao leitor vaguear por entre todos esses subtextos pela ordem que quiser e destacá-los como entender. E é esta liberdade de navegação que define a rigor a hipertextualidade de qualquer texto, pois a não-linearidade é apenas uma qualidade formal que diríamos inata no processo exacto da construção do texto, ao passo que a possibilidade de determinar que texto queremos ler ou que texto queremos sobrepor a outro já existente é algo que se adquire ou se premedita.

A identificação da escrita do romance com o género da conversação é também essencial para compreendermos o significado das digressões reflexivas.

Sterne resumiu assim a questão: “Writing (…) is but a different name for conversation (…) no author, who understood the just boundaries of decorum and good breeding, would presume to think all: The truest respect which you can pay to the reader’s understanding is to halve the matter amicably, and leave him something to imagine, in his turn, as well as yourself.” (vol.II, §xi) Garrett também confessa algo semelhante, no fim do capítulo IV: “Sou sujeito a estas distracções, a este sonhar acordado. Que lhe hei-de eu fazer? Andando, falando, escrevendo, sonho e ando, sonho e falo, sonho e escrevo.”

Se no caso de Sterne a história completa não chega a ser contada, quer no plano da escrita quer no plano da conversação digressiva, no caso de Garrett a indeterminação e a procrastinação do sentido não vão tão longe, pois as digressões não são suficientes para apagar a importância da novela da “menina dos rouxinóis”. Sterne deixa a história por contar-se e por contar, porque entende ser também da responsabilidade do leitor intrometer-se no processo de busca de um sentido para o romance. O objectivo do estilo conversacional é precisamente, como lembra Sterne, o de manter a imaginação do leitor tão ocupada quanto a do autor-criador. A escrita não é uma responsabilidade exclusiva do autor, porque as inúmeras interrupções, reticências e espaços em branco estão lá para que o leitor também escreva com a imaginação. Talvez porque confessa detestar a imaginação crua, Garrett não convoca o leitor a participar da sua escrita do mesmo modo disruptivo que vemos em Sterne. O que é comum a ambos é a certeza da necessária participação do leitor, de outra forma o processo de transformação da escrita da viagem em conversação digressiva falhará. Garrett aprendeu bem a lição de Tristram — “the mind should be accustomed to make wise reflections, and draw curious conclusions as it goes along” (I, §xx) — quando desenvolveu uma forma particular de dialogismo com o leitor. O que ambos não querem é leitores passivos, cujas expectativas não chegam a interferir no texto. O leitor deve abandonar a sua crença nas estruturas tradicionais do romance de viagens e entrar no jogo meta-narrativo.

bibliografia

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