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Qualidade própria do indivíduo que se dedica a uma arte de forma ligeira, sem se preocupar com o estudo e a reflexão permanentes, por considerar que a arte deve ser uma forma de puro lazer, onde a vocação e o trabalho não têm lugar. A literatura decadentista de final do século XIX explorou este tema na criação de figuras patéticas que facilmente reproduziam personagens da sociedade burguesa. Os retratos mais conseguidos deste tipo de atitude podem ser encontrados na ficção de Eça de Queirós. Em particular, a personagem Fradique Mendes, uma figura de ficção que se apresenta com pretensões de personalidade forte e completa. Fradique podia ser o filósofo que Eça não foi, mas a própria figura de pensador original que Eça reclamava para a sua personagem embate de caras com o testemunho do próprio candidato que confessa não ser sábio nem filósofo. Não se trata daquela atitude de humildade intelectual que geralmente encontramos nos grandes pensadores, de facto, mas tão só de puro diletantismo intelectual. É que as qualidades que Eça atribui aqui a Fradique são tão só as que lhe faltaram a ele mesmo na sua vida literária: “Esta independência, esta livre elasticidade de espírito e intensa sinceridade — impedindo que, por sedução, ele se desse todo a um sistema, onde para sempre permanecesse por inércia — eram de resto as qualidades que melhor convinham à função intelectual que, para Fradique, se tornara a mais contínua e preferida. «Não há em mim infelizmente (escrevia ele a Oliveira Martins, em 1882) nem um sábio, nem um filósofo. Quer dizer, não sou um desses homens seguros e úteis, destinados por temperamento às análises secundárias que se chamam ciências e que consistem em reduzir uma multidão de factos esparsos a tipos e leis particulares, por onde se explicam modalidades do universo” (Correspondência de Fradique Mendes, Obras Completas de Eça de Queiroz, vol.XVIII, Círculo de Leitores, Lisboa, 1981, p.59). Antero falhou filosoficamente por não ter encontrado um sistema original; Eça quer fazer Fradique triunfar pela recusa de ter um sistema, pois tal meta conduz à inércia. Ora, se sabemos que esta é precisamente a qualidade mais efectiva de Fradique – o não ser militante, o lutar apenas no plano da idealidade, o comprazer-se na inércia, e este é o melhor retrato de um diletante. Carlos da Maia e João da Ega, de Os Maias, são também diletantes à nascença literária, infectados pelo meio, sem qualquer projecto colectivo que impressione a sociedade, seduzidos por equívocos sentimentais e inabilitados para qualquer obrigação. Fradique era diferente. Se Carlos e Ega tinham as aptidões e se contentavam em “governar os nossos dog-carts e escrever a vida íntima dos átomos”, Fradique tinha que ser superior a este diletantismo: “Aqueles que imperfeitamente o conheciam, classificavam Fradique como um diletante. Não!, essa séria convicção (a que os Ingleses chamam earnestness), com que Fradique se arremessava ao fundo real das coisas, comunicava à sua vida uma valia e eficácia muito superiores às que o diletantismo, a diversão céptica que tantas injúrias arrancou a Carlyle, comunica às naturezas que a ele deliciosamente se abandonam. O diletante, com efeito, corre entre as ideias e os factos como as borboletas (a quem é desde séculos comparado) correm entre as flores, para pousar, retomar logo o voo estouvado, encontrando nessa fugidia mutabilidade o deleite supremo. Fradique, porém, ia como a abelha, de cada planta pacientemente extraindo o seu mel: quero dizer, de cada opinião recolhendo essa “parcela de verdade” que cada uma invariavelmente contém, desde que homens, depois de outros homens, a tenham fomentado com interesse ou paixão” (p.61).