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Tensão interior característica do herói modernista que está irremediavelmente entregue a si próprio e quase sempre perdido nessa consciência de si próprio; carrega sempre uma “cruz” e a sociedade não consegue perceber que ele carrega essa cruz e sofre, por isso, um drama íntimo. Esse herói culpa a sociedade por o ter colocado nesse drama íntimo: não é já o epónimo herói épico mas sim um anónimo, como diz Lukàcs na sua Teoria do Romance, e por isso um anti-herói. Assim sendo, o drama íntimo é indissociável da “écriture”, do drama da escrita cuja intimidade é um drama por resolver que importa (d)escrever. O drama íntimo caracteriza-se por uma série de factores.

Martin Heidegger, na sua obra Sein und Zeit (1926), Being and Time (tradução de John Macquarrie and Edward Robinson, Blackwell, Oxford, 1ª ed. 1962), explica a análise existencial da estrutura fundamental da noção do “Dasein” – que é “in-der-Welt-sein” ou “ser-no-mundo”. Segundo a filosofia ontológica do autor, “Dasein” é um ente, mas não como os outros: é no seu ser que está o seu ser, i.e., ser, é para o “Dasein” “Mit-Dasein” ou “ser-com”. Enquanto “está-no-mundo”, o “Dasein” age como preocupação (“Besorgen”). O “uno” é como uma degradação do “Dasein” que é descrito como “caído” (“verfallen”) facto que o leva a uma “crítica da existência quotidiana”. Não obstante, a queda do “Dasein” é uma das suas faces ontológicas. Com efeito, para cada uma das formas básicas da estrutura do “Dasein” – a “disposição”, ou o “encontrar-se em” (“Befindlichkeit”) e “compreender” (“Verstehen”) – encontramos dois aspectos: o da autenticidade e o da inautenticidade. Para Heidegger, o “estar-no-mundo” é sempre um estar caído (um ter caído) pois, no fim de contas, “estar-no-mundo” é ter sido retirado do mundo, e este ser retirado é como uma queda, um esquecimento de si.

Num estudo comparativo entre Heidegger e Lukàcs, Lucien Goldmann apresenta Heidegger da seguinte forma : “L´homme n’est pas en face du monde qu’il essaie de comprendre et sur lequel il agit, mais à l’intérieur de ce monde dont il fait partie, et il n’y a pas de rupture radicale entre le sens qu’il essaie de trouver ou d’introduire dans l’univers, et celui qu’il essaie de trouver ou d’introduire dans sa propre existence” (Lukàcs et Heidegger, Éditions Denoël, Paris, 1973, p.65, sublinhado do autor).

Afinal, o drama íntimo que sente o herói modernista, ao invés do “ser no mundo” de Heidegger, é um “ser sem mundo” que segue um caminho que leva ao próprio indivíduo. Mas o romance modernista não termina no indivíduo: acaba sim no social. Os romances modernistas são quase todos teses que pretendem defender a solidão do Homem, a grandeza da falência do Homem. No fundo, os heróis são sempre anti-heróis numa literatura angustiante e sofredora por excelência.

Alguns exemplos de drama íntimo estão patentes em diferentes tipos de drama em Fernando Pessoa, nas obras Nome de Guerra (1925) de Almada-Negreiros, Werther (1774) de Goethe e Cadernos de Malta, de Rainer Maria Rilke, entre outros que são analisados de seguida.

Fernando Pessoa é um autor que exprime ou insinua a solidão interior, a inquietação perante o enigma indecifrável do mundo, o tédio, e mostra-se minado pelo demónio da análise que personifica o que ele chamou “um drama em gente”. O heterónimo Álvaro de Campos é, versando Jacinto do Prado Coelho, “cantor da fúria e das vertigens da civilização mecânica” (Dicionário de Literatura, 2º volume, Figueirinhas, Porto, 1973) da sua sociedade. Este heterónimo conclui que «Toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois se não dá nela. Toda a emoção verdadeira tem portanto uma expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que se não sente». Já Pessoa ortónimo preferiu a expressão indirecta da sinceridade do fingimento («Fingir é conhecer-se»). António Quadros encara Álvaro de Campos como “o futurista, o sensacionista, o cantor da civilização mais moderna e também na memória de mais antiga, o tradutor do ímpeto, do movimento, da energia vital, comunicador de experiências de êxtase, libertador das mais secretas correntes aquáticas torrenciais” (Poesias de Álvaro de Campos, Publicações Europa-América, Mem Martins, s.d., p.61) o alter ego corajoso do ortónimo, sendo capaz de nomear Pessoa-ele próprio com tanto liberdade e ousadia. Na “Ode Marítima”, Álvaro de Campos assume um drama íntimo que representa para Fernando Pessoa uma catarsis através do heterónimo: “Ah, quem sabe, quem sabe,/Se não parti outrora, antes de mim,/Dum cais; se não deixei, navio ao sol,/Oblíquo da madrugada,/Uma outra espécie de porto?/Quem sabe se não deixei, antes de a hora/Do mundo exterior como eu o vejo/Raiar-se para mim,/Um grande cais cheio de pouca gente,/Duma grande cidade meio-desperta,/Duma enorme cidade comercial, crescida, apopléctica,/Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?” (“Ode Marítima” in Poesias de Álvaro de Campos, Publicações Europa-América, Mem Martins, s.d., p.160, sublinhado meu) e na “Ode Triunfal”, “Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!” (Álvaro de Campos, “Ode Triunfal” in Orpheu, nº1, p.107-108).

Mas integram-se todos no mesmo estático «drama em gente» pela sua qualidade de pagãos ou semi-pagãos (no anticristianismo reside uma constante da obra de Fernando Pessoa, não isenta da influência de Nietzsche) e por assumirem posições pragmáticas e mentais diferentes perante os mesmos problemas, como o divórcio inevitável entre viver e pensar ou a impossibilidade de ser feliz. A heteronímia e o próprio ortónimo encimam uma resposta utópica à inquietação metafísica, à dor de ser consciente. Assumem, portanto, uma posição de “ser sem mundo”: “Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. […] Sinto-me a viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada, por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço” (Páginas Íntimas de Auto-Interpretação, Edições Ática, Lisboa, 1966, p.94).

Nome de Guerra (de 1925 mas só publicado em 1938), de José de Almada-Negreiros, é um romance de aprendizagem (segundo Jacinto do Prado Coelho) e distingue-se pelo ângulo de objectividade plástico-discursiva em que o autor (também pintor, além de poeta e prosador) deliberadamente se coloca. Assistimos à psicologia de uma personagem perturbada no drama da escrita que há-de conseguir traduzir um conflito – é o drama íntimo (de Antunes e Judite) e o drama da escrita (de Antunes e autor). Os dramas íntimos estão acompanhados pelos dramas da escrita e são próprios dos romances modernistas: não olvidemos que a “écriture” do drama da escrita é indissociável do drama íntimo. Em Nome de Guerra, “o próprio estilo forte, imponderável, cândido, feito na raiz do português” (palavras de Vitorino Nemésio, “Crítica a Nome de Guerra”, in Revista de Portugal, I, 1938, p.453) serve certeiramente para desnudar os objectos e os seres, numa empresa por vezes muito à maneira de certas ulteriores tentativas do nouveau-roman; e, ao mesmo tempo, incessante se preludia aquela outra tendência, também corrente, para o romance-ensaio visto que no abandono-de-si-próprio inclui-se a questão da auto-análise (do ponto de vista psicanalítico) de que é um esboço Nome de Guerra. “O nosso íntimo pessoal é inatingível por outrem. […] O nosso íntimo pessoal é de ordem humana, estética e sagrada. Serve apenas o próprio. É o seu único caminho. O melhor que se pode fazer em favor de qualquer é ajudá-lo a entregar-se a si mesmo. […] O papel da sociedade é imediatamente mais evidente sobre cada pessoa […] é eliminar esse destino pessoal. A sociedade só tem que ver com todos, não tem nada que cheirar com cada um!” (Almada-Negreiros, Nome de Guerra, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001, p.11).

Werther, protagonista da obra Die Leiden des jungen Werthers (Os Sofrimentos do Jovem Werther, 1774) do escritor alemão J. W. Goethe, chega a provocar uma onda de suicídios «à la Werther». Werther é o símbolo absoluto da sensibilidade romântica: nele, a veemência da tragédia complica-se pelo facto de a sua sensibilidade não só chocar com as leis sociais estabelecidas, como as que definem o matrimónio, mas também com uma outra ligação considerada sagrada, a amizade entre os homens. De facto, Werther enamora-se da noiva (Lotte) do seu amigo mais íntimo, o que o leva ao suicídio. Todavia, o suicídio, mais do que a trágica solução de um caso pessoal, expressa o conflito interior entre a exuberância sentimental e incontrolada do «eu» e a existência de todos os outros – no fundo, o drama íntimo da personagem.

Ainda na literatura alemã, mas já no início do século XX, Rainer Maria Rilke, por ocasião da convivência com a personalidade e a arte de Auguste Rodin em Paris, incute na sua poesia uma vertente mais espiritual. É neste contexto que surge o romance Os Cadernos de Malte Laurids Brigge (1910), que espelha precisamente uma exaltação do amor na adoração não correspondida, na dor nostálgica que a si própria se basta sem buscar recompensa, mas que é a única onde o indivíduo alcança a realização afectiva, vivendo o ser só e “sem mundo”.

Nos textos bíblicos, assistimos também a um drama íntimo traduzido pela angústia vivida pela personagem de Jesus Cristo. O episódio anterior à prisão de Jesus Cristo, relatado nos Evangelhos Sinópticos (S. Mateus, S. Marcos e S. Lucas) como a “Agonia no Jardim no Horto”, o chamado Getsémani (“lagar de azeite” em hebreu, é um lugar situado no vale de Cedron ao pé do monte das Oliveiras e segundo Jo. 18, 2 Jesus já lá tinha ido várias vezes) é importante para entender o drama íntimo da personagem de Jesus Cristo. No Evangelho de S. João, contudo, apresenta-se, no capítulo 17, uma “oração sacerdotal” não inclusa nos Sinópticos de que transcrevo: “Pai, chegou a hora: glorifica o Teu Filho para que também o Teu Filho Te glorifique a Ti, pois que Lhe deste poder sobre toda a criatura, para que dê a vida eterna a todos os que Lhe confiaste. E a vida eterna consiste nisto: que Te conheçam a Ti, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a Quem enviaste” (Jo. 17, 1-3). Jesus Cristo explica então que a sua missão divina se centra nos homens do mundo e não no mundo em si: “Eu rogo por eles [os que Me enviaste e creram em Ti]; não pelo mundo” (Jo. 17, 9). Jesus inclui nesta oração um esclarecimento quanto à sua natureza, revelando assim o seu drama íntimo: “Dei-Lhes a Tua palavra, e o mundo aborrece-os porque não são do mundo, assim como Eu não sou do mundo […] se o mundo não Te [a Deus] conheceu, Eu conheci-Te, e estes conheceram que Tu Me enviaste.” (Jo. 17, 14-25). Trata-se de uma atitude onde o “ser sem mundo” é recorrente. Estas palavras vão em parte contradizer-se com a oração solitária no Getsémani, onde Jesus pede explicitamente ao seu pai – Deus – que afaste dele o sofrimento por que está prestes a passar (Mt. 26, 39 e 42; Mc. 14, 36 e 39; Lc.22, 42): terá de carregar uma cruz, símbolo por excelência de todo o pecado dos “homens do mundo” e ser crucificado pelos mesmos “homens do mundo”.

bibliografia

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http://home.earthlink.net/~kunos/Pessoa/Campos/campcon.html

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http://personales.ciudad.com.ar/M_Heidegger/ser_y_tiempo/13.htm#arriba

http://www.samaelgnosis.com/revista/revista13/htm