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A liturgia parece ser a porta de entrada para todo e qualquer estudo sobre o teatro: sabe-se que o ritual litúrgico está na origem de todas as representações cênicas, perfazendo um teatro “em estado larvar”, do qual as mais conhecidas manifestações são as dos gregos e as dos bizantinos. Estas representações, plenas de ritmo, cores e música, correspondiam às representações mágicas dos povos primitivos e aos mistérios eleusinos. Eram, portanto, ligadas ao sagrado que, no teatro, rapidamente confundiu-se com o religioso, daí seu caráter litúrgico.

Na França, tem-se notícia de dramas litúrgicos escritos em latim desde os séculos X, XI e XII (Quem Quaeretis, Introit de Noël, Ordo Prophetarum). Em língua francesa, vão aparecer, no fim do século XII e no princípio do século XIII, os textos paralitúrgicos de Jeu d’Adam, Jeu de Saint Nicolas, Passion des Jongleurs e Miracle de Théophile. Também a Inglaterra teve o seu drama litúrgico, por volta do século XIV. Da Espanha, na segunda metade do século XII, vem o Auto dos Reis Magos. No século XIII, o rei Afonso X decretou a “Lei das Sete Partidas” que, se proibia aos clérigos os “jogos de escárneo”, ao mesmo tempo autorizava a representação do nascimento e da ressurreição de Jesus Cristo. Este tipo de encenação era restrito, no princípio, ao altar-mor e/ou ao adro das igrejas, e só bem mais tarde alcançou outros espaços. De Portugal, tem-se notícia de um drama litúrgico num breviário do século XIV, do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Entretanto, pela tardia influência francesa e mesmo romana (sabe-se que os romanos levaram seu teatro à Lusitânia), são relativamente escassas as representações litúrgicas nessa época. Está documentada apenas a antífona pastoral “Quem vidistis”, do ciclo de Natal. De mais tarde (século XV) existem registros de encenações para a procissão de Corpus Christi e, no século XVI, já eram comuns o drama da paixão e o da ressurreição, bem como as laudes e cantigas espirituais do beneditino André Dias.

É consenso, pois, que foi na Idade Média que se consolidou o drama litúrgico, pois foi nessa época que ele alcançou o seu padrão, disseminado em mistérios, moralidades e milagres. Estas formas tiveram uma origem comum: as procissões, os autos sacramentais, os corais, as ladainhas, as novenas, as vias-sacras e os cantos natalinos. Ou seja, formas rituais litúrgicas que, na sua evolução, se atualizaram nos mistérios (encenações de narrativas bíblicas, algumas vezes enxertadas com episódios extraídos de Evangelhos apócrifos), nas moralidades (peças alegóricas caudatárias de uma “tendência a coisificar, substantivar, isolar (…) os estados, qualidades, ações – em suma, os processos”), e nos milagres (dramas de caráter educativo, com argumento estruturado sobre “uma situação embrulhada cujo desenlace só pode vir do sobrenatural”).

Entretanto, considerada a evolução do gênero milagre, houve a introdução de um elemento – o cômico – que fez com que a Igreja se manifestasse contrária à representação das peças, uma vez que que o cômico desagregava a unidade simbólica do teatro religioso, abrindo caminho para o drama profano, que passou então a prevalecer na Europa Ocidental.

Bibliografia:

A J. Saraiva: Gil Vicente e o fim do teatro medieval (Lisboa, 1992); A. M. Guerreiro: Teatro Popular Português (Coimbra, 1976); Cleudat: Le Théatre au Moyen Âge; E. Curtius: Literatura Européia e Idade Média Latina. 2.ed. (Brasília, 1979); E. Mâle: L’ Art Religieux du XIIe. Siècle en France; L. M. Mongelli, M. A. T. Maleval, I. F. Vieira: A Literatura Portuguesa em Perspectiva (São Paulo, 1992).