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Quando se pensa em nossa matriz teatral, que remonta à tradição narrativa dramática de cunho greco-romano e judaico-cristão, dramaturgia pode ser entendida como uma noção chave da cultura e da prática teatral no ocidente, tanto do ponto de vista do palco, quanto do ponto de vista da plateia. Juntamente com as noções de espetáculo e representação, a dramaturgia forma uma espécie de tripé estruturante da própria natureza do teatro e das formas narrativas ficcionais dos espetáculos realizados ao vivo diante de um grupo de espectadores. As artes cênicas, incluindo-se aí as artes coreográficas de uma maneira geral, necessitam, em maior ou em menor escala, se estabelecer segundo critérios bastante diversificados expressos segundo esse tripé.

É inevitável que, contemporaneamente, quando práticos da cena ou especialistas dos estudos teatrais ou coreográficos se expressem acerca de seus processos criativos e/ou dramatúrgicos, nem sempre haja uma coincidência de significados. Entretanto, os três termos — dramaturgia, espetáculo, representação — são, sistematicamente, recorrentes, o que reflete uma complexa teia de referências conceituais que problematizam procedimentos criativos distintos. Esses procedimentos estão em permanente atualização com a capacidade cognitiva do tecido social de onde essas mesmas produções se originam e onde, consequentemente serão recepcionadas.

De maneira geral, empregamos o termo dramaturgia para nos referirmos à produção de um autor teatral — a dramaturgia de Ibsen, a dramaturgia de Lope de Vega, a dramaturgia brechtiana, etc. —. Ainda de forma genérica, emprega-se também o termo dramaturgia na tentativa de definir um certo conjunto de obras, seja por uma periodicidade, ainda que arbitrária — dramaturgia clássica, dramaturgia elisabetana, dramaturgia romântica, etc. —, seja por afinidades devidas aos traços formais ou temáticos — uma dramaturgia do absurdo, uma dramaturgia erótica, uma dramaturgia espírita, etc —. Há, ainda hoje, aquela distinção que sempre marcou a atividade teatral — uma dramaturgia amadora e uma dramaturgia profissional — ou também em termos de gênero ou público alvo — uma dramaturgia feminina ou uma dramaturgia para infância e adolescência —. Desta forma, já se estabelece a diferença entre o drama e o theatre conforme a visão dos ingleses. O primeiro é o texto, a composição dramatúrgica, a peça teatral, o outro é a sua realização, a transposição daquele nesse pela operação da encenação.

Uma outra acepção do emprego de dramaturgia pode ser atribuída à G. E. Lessing que, durante os anos de 1767 a 1768, redigiu folhetins semanais que deram origem à sua obra intitulada Dramaturgia de Hamburgo. Nas palavras do próprio autor de Emília Galoti em abril de 1767, “esta dramaturgia tem por objetivo manter um registro crítico de todas as peças levadas à cena e acompanhar todos os passos que a arte, tanto do poeta como do ator irá dar”. (LESSING, 2005, 29). Não sem marcar, de maneira indelével, a prática teatral ocidental, circunscrevendo, inicialmente, a função que depois se vulgarizaria como dramaturg, ou dramaturgista, entre nós, Lessing atribui um sentido outro à sua produção de crítico, comentarista, conselheiro dramatúrgico ou consultor teatral. De toda forma, o foco do trabalho teatral no século XVIII é condicionado pela dramaturgia, pelo repertório de textos. Textos esses que vão inclusive desenhando novas maneiras de atuar junto aos atores e problematizando a condição dos gêneros dramáticos.

No século XIX, essa “arte ou técnica da composição dramatúrgica” forjou a noção de pièce bien faite como sendo o padrão aceitável da dramaturgia perfeita. Essa noção, atribuída em parte à vasta produção de Eugène Scribe, foi o paradigma a ser seguido pelos autores que almejavam o sucesso de um público que ele estimava instruir e divertir. O modelo aí empregado foi aquele herdeiro do século XVII, do teatro clássico francês, que por sua vez reabilitou, em forma de cânone, os parâmetros da dramaturgia antiga, greco-romana. Aliou-se a isso, no caso da França, a presença de um crítico como Francisque Sarcey que através de seus folhetins no jornal Le Temps colaborou de forma indelével para cristalização desta receita. Esta receita visava a produção em série de uma dramaturgia de sucesso. Condicionada aos mecanismos de causa e efeito no interior da ação dramática, a pièce bien faite ajudou a imortalizar esse formato de dramaturgia que ainda hoje é empregado na teledramaturgia luso-brasileira.

Dizia Pirandello que a trama de uma peça era a razão de ser do personagem. O caso é que, hoje, a noção de dramaturgia e conjuntamente aquela de representação extrapolam os limites daquilo que outrora estava delimitado pela “arte ou técnica da composição de peças teatrais”. O fenômeno teatral hoje, depois das experiências dos anos 1960 e 1970, promove uma desestabilização de noções que pareciam inabaláveis e indiscutíveis até então. E no centro dessa turbulência encontra-se justamente a noção de dramaturgia.

Contemporaneamente, encontram-se espetáculos de diversos coletivos teatrais ou de criadores cênicos que reivindicam o desenvolvimento de uma “dramaturgia própria”: seja por meio de uma “dramaturgia corporal” sem necessariamente se ater à “composição de um personagem” no sentido psicológico; seja por conta de trabalhos que repousam sobre uma “dramaturgia do ator” que explora sua própria biografia como resíduo para cena; seja com encenações que são elaboradas segundo uma dramaturgia oriunda de “processos colaborativos”, entre outras denominações. Enfim, o emprego do termo dramaturgia não está mais restrito ao trabalho do autor dramático como agente criativo, e sim dissolvido entre a técnica de composição da própria cena e a concepção do que os atores “falam” sobre o palco em situação de exibição.

Naturalmente, estes são desdobramentos que possuem sua origem histórica e estética no trabalho teatral de um V. Meyerhold, apesar de que, por vezes, essa matriz paradigmática seja atribuída às experiências de B. Brecht, autor e diretor de seus próprios espetáculos. O fato é que, na atualidade, a discussão sobre a construção de uma dramaturgia se afirma por conta de um processo criativo híbrido, onde a noção de autoria não se apresenta tão estável como era no passado. A noção de autoria hoje é, no mínimo, flutuante, diante dos diversos procedimentos e determinismos vivenciados pelos coletivos teatrais ocidentais.

Etimologicamente, drama é oriundo do grego e significa ação. Dramaturgia, em si, seria por definição particular a “arte ou a técnica da composição dramática”. Mas qual composição dramática em tempos, predominantemente, pós-dramáticos? Em primeiro lugar, esta arte da construção ou da desconstrução dramática pressuporia certos elementos integrantes desta mesma composição: personagem; intriga; ação; tempo; espaço; diálogo; etc.

Partindo-se do legado de Aristóteles, e tendo-se o cuidado de ler seu pequeno tratado — A Arte Poética —, como uma obra mais descritiva do que teórica-prescritiva, não se observa nessa poética a definição propriamente de uma dramaturgia, no tocante à tragédia. Ali se apresentam, como se pode constatar à leitura do verbete drama, nesse mesmo Dicionário de Termos Literários, noções observadas acerca da constituição, urdidura e confecção do espetáculo teatral como um todo: do texto, da representação e do próprio espetáculo que constituem uma “poética do drama”, e neste caso específico afeito à tragédia como gênero.

Nesse mesmo sentido, Jacques Scherer, que é autor, nos anos 1950, de uma outra dramaturgia, isto é, La dramaturgie classique en France, estabelece uma clara distinção em seu estudo entre os elementos integrantes da estrutura interna da peça (personagens; exposição; nós dramáticos; obstáculos e peripécias; unidades de ação; tempo e lugar; desenlaces; etc.) e os elementos que compõem a estrutura externa da peça, isto é, a sua transposição espacial ou a encenação, aqueles elementos que constituem, em certa medida, a materialidade dos primeiros dados inerentes ao texto, preto no branco.

Portanto, tradicionalmente, a dramaturgia enquanto “arte ou a técnica da composição dramática”, a serviço da redação de um texto escrito, estabeleceria para esse mesmo texto teatral uma sutil distinção entre a voz do autor e as vozes de seus personagens. Seja no registro do épico ou do dramático, a voz do autor se apresentaria na sua totalidade no texto didascálico, enquanto que essa mesma voz autoral apareceria “mascarada” pela massa de texto atribuída, por esse mesmo autor, aos seus personagens nos diálogos em forma de “falas”. Esse princípio é válido ainda hoje, desde a dramaturgia antiga, passando pela dramaturgia do século XIX e a eclosão do Nouveau Théâtre ou do dito Teatro do Absurdo no pós-guerra.

Ora, então fica claro que aquilo que outrora seria a “arte da composição de textos teatrais”, em tempos modernos se expande para arte da composição de um espetáculo ou de um ato cênico, seja lá o nome que for atribuído para realização dessa experiência narrativa. A noção em si não desaparece, como querem alguns práticos ou assinalam alguns teóricos. A noção de dramaturgia se transforma graças a uma dinâmica natural da cultura da prática teatral. Se outrora, ela estava concentrada no texto teatral, e hoje ela se desloca para uma outra esfera, mais complexa talvez, pois lida com novos paradigmas e com incertezas. Não haveria, portanto uma dramaturgia, mas diversas dramaturgias e procedimentos de composição distintos. E essa diversidade espelha o trabalho de coletivos teatrais contemporâneos — http://www.theatre-contemporain.net/index.html — que na busca por novas convenções e formas de expressões narrativas, acentuam, cada vez mais, em suas produções ficcionais o atrito entre o Real e o Ficcional; a subtração da função do personagem; o desmonte do princípio da ação dramática e física, entre outros procedimentos.

Bibliografia:

Arthur Pougin: Dictionnaire du Théâtre (Paris, 1885); G. E. Lessing: Dramaturgia de Hamburgo (trad; introd e notas de Manuela  Nunes) (Lisboa, 2005); Jacques Scherer: La Dramaturgie Classique en France, (reed. 2001), (Saint-Genouph, 1950).