O conceito mais comum relativamente ao duplo é que este é algo que, tendo sido originário a partir de um indivíduo, adquire qualidade de projecção e posteriormente se vem a consubstanciar numa entidade autónoma que sobrevive ao sujeito no qual fundamentou a sua génese, partilhando com ele uma certa identificação. Nesta perspectiva, o DUPLO é uma entidade que duplica o “eu”, destacando-se dele e autonomizando-se a partir desse desdobramento. Gera-se a partir do “eu” para de imediato, dele se individualizar e adquirir existência própria. A sua coexistência como o “eu” de que é originário, contudo, nem sempre é pacífica. Podem ocorrer duas modalidades: a) o DUPLO apresenta, segundo o julgamento do “eu”, características positivas, sendo resultante de um processo de identificação entre o “eu” e o seu DUPLO; b) o DUPLO apresenta, de acordo com o julgamento do “eu”, características negativas, resultantes de um processo de oposição entre o “eu” e o seu DUPLO, pela constatação de uma não correspondência de traços ou características afins. Desta forma, podemos deparar com um ambiente ou contexto em que o sujeito e o seu DUPLO coexistem em perfeita simbiose, ou então, sujeito e o seu DUPLO afirmam-se e afastam-se pela iminência de uma diferença consagrada.
O DUPLO enquanto extensão do sujeito (DUPLO endógeno) e seu perfeito desdobramento, partilha com estes traços evidentes que exaltam esse seu estatuto de “sombra”. Estabelece-se entre ambos uma relação de harmonia e cumplicidade. O inverso também é possível, se o DUPLO gerado a partir de um sujeito permanece enquanto seu contraste, confirmando-se uma relação bilateral de adversidade e oposição. Em ambos os casos, parece notória a noção de que o DUPLO, tendo tido a sua génese em um sujeito determinado, sendo uma cópia do mesmo, uma mimese, não pode desfrutar do mesmo estatuto ontológico subjacente ao “eu” a partir do qual se originou.
O DUPLO estabelece ainda um compromisso entre a interioridade e a exterioridade do sujeito, do “eu”, reflectindo o seu interior e assumindo-se-lhe exterior, porque autónomo, ele próprio diferente já do “eu” original. A mimese do sujeito, a criação de um DUPLO, obedece ainda a um princípio de self-judgement, onde a auto-consciência possui um papel determinante. Nenhum DUPLO surge do nada. Um DUPLO forma-se a partir de um “eu” original que detém o conhecimento suficiente da sua interioridade, para a exteriorizar através de outra entidade que o imita, duplicando-o. Mas, sendo uma cópia, uma imitação desse “eu”, ele não é exactamente o “eu”. Deixa de poder ser confundido com o “eu”, pois a partir do momento em que é gerado, ganha autonomia e possui já uma outra essência, essência essa que apresenta uma différance relativamente ao “eu” original, passando a assumir-se como o Outro.
Até aqui falámos em DUPLO, entendido como extensão, sombra ou fantasma que assombra e inquieta o “eu”. Não obstante, é também possível que o DUPLO se configure como uma entidade que se formou algures, extrinsecamente a esse “eu”. O DUPLO pode ser mais do que uma parte integrante do “eu” e pode originar-se diferentemente sem que tenha de surgir necessariamente da sua interioridade. É possível alguém vir a reconhecer em outrém o seu DUPLO Esse reconhecimento em que dois “eu(s)” se entendem análogos e partilhando uma identificação anímica, estabelece igualmente o aparecimento do DUPLO (duplo exógeno), desta vez, aplicado a cada um deles.
Cada “eu” é DUPLO do outro, com o qual se identifica. As mesmas representações, as mesmas características essenciais são então reconhecidas em cada um destes sujeitos. Ambos são o espelho de si-mesmos, pois cada “eu” se revê no outro “eu”, como se este outro “eu” fosse um espelho que lhe devolve a sua imagem. Mais uma vez, a perspectiva é subjectiva, pois cabe a cada um destes sujeitos assumir que a imagem que lhe é devolvida pelo outro “eu” é semelhante, analogamente desenhada e configurada como a sua. Só o julgamento tridimensional do “eu” poderá efectuar o reconhecimento do outro “eu” enquanto seu DUPLO, assistindo-se de novo, a um processo de identificação (duplo positivo) ou de oposição (duplo negativo).
Numa outra leitura, o DUPLO corresponde a uma duplicação do “eu”, onde, através da sua génese, se procura obviar a finitude do ser. Assim, a ilusão do DUPLO cedo se transforma num mecanismo astucioso cujo objectivo é o de enganar a morte do próprio sujeito. É então usado pelo “eu”, como preciosa ferramenta impeditiva da sua morte, anulando a possibilidade de se coincidir enquanto si-próprio. Se de facto, perante a morte, o “eu” se constitui como ser uno e indivisível, é ela também que vem eliminar a sombra, o sonho, o fantasma desse “eu”, e por conseguinte, é também a morte que vem aniquilar o Outro, o seu DUPLO. Só a morte faz o “eu” coincidir consigo mesmo e afirmar de novo a sua unicidade enquanto algo irredutível, cessando a ilusão de ser Outro, ou de que esse Outro corresponde ao seu DUPLO. Esta ideia é largamente explorada por Otto Rank, que, na sua obra intitulada Don Juan et le Double, atribui ao DUPLO esse poder específico: o de este concorrer para o impedimento da morte de si-mesmo. Segundo este autor, a crença ancestral na morte está directamente ligada à temática do DUPLO e ao desdobramento da personalidade, pois o D. age como mecanismo privilegiado cuja função é a de inibir a morte do sujeito por ele representado. O D. assume-se pois como um factor inibidor da morte do “eu”, e paralelamente, como um motor da sua longevidade e perenidade enquanto ser. No entanto, esta função traz consigo, por arrastamento, uma dúvida angustiante ao “eu”, se será melhor aceder à sua unicidade e mortalidade, se prevalecer na ilusão da duplicidade e por isso, imortalidade. Novamente se coloca a dúvida quanto ao estatuto ontológico do DUPLO: se a sua pretensa imortalidade o relegará para uma esfera superior, visto que, face ao “eu”, a unidade e originalidade deste último lhe não confere um estatuto paritário.
Parece incontestável a ideia de que o DUPLO nunca deverá ser entendido como algo, ainda que assemelhado, perfeitamente independente e até qualitativamente superior ao seu modelo, isto é, ao “eu” a partir do qual se institui. Jacques Derrida, na sua obra intitulada Dissemination, procura dar-nos a entender a lógica deste raciocínio. De acordo com este autor desconstrucionista, o DUPLO surge a partir de um processo de mimese. Uma vez que o valor essencial adstrito ao DUPLO lhe vem precisamente do seu modelo do “eu”, o DUPLO nada é, nem valor algum possui em si-mesmo. Em si mesmo ele é neutro e transparente e terá apenas o valor que o modelo lhe empresta, ao configurar-se como seu DUPLO Quando em presença do seu modelo, isto é, do “eu”, o DUPLO adquire importância e pode então ser visto como um suplemento, que acrescentado ao modelo, pode substituí-lo mas nunca ser seu igual, pois é em boa verdade, sempre inferior ao modelo em termos de essência, mesmo quando o substitui. Ainda de acordo com Derrida, esta lógica do suplemento, extravasa a simples linearidade das oposições binárias metafísicas, pois em lugar de afirmarmos que o modelo, o “eu” se opõe ao seu DUPLO, deveremos dizer que o DUPLO se acrescenta e substitui o modelo, o “eu”. A situação deixa de se colocar enquanto mera oposição, mas também não será possível construir a ideia que ambos, o “eu” e o seu DUPLO, são de facto equivalentes entre si. De facto, eles são em si-mesmos, a sua própria différance de um, relativamente ao outro.
Também o Real, tal como o “eu”, parece partilhar igualmente uma certa fragilidade ontológica, pois possui o imenso privilégio de ser apenas um (único), mas possui também a fraqueza de ser insubstituível quando confrontado com a sua finitude. Por outro lado, o facto do “eu” conhecer a não existência real do seu DUPLO, é uma instância geradora de uncanniness. É algo estranhamente inquietante que obriga o “eu” a anular metafisicamente o seu DUPLO, isto é, a sua não-existência. Para que tal aconteça, é necessário que esse “eu” renuncie ao seu DUPLO, exorcizando-o. A eliminação do DUPLO significará então o retorno à forma original, ao Real, à unicidade e, concomitantemente, o retorno à mortalidade. A morte surge então como um reencontro de si consigo mesmo, ele-próprio. Sabemos desde já que o DUPLO assenta numa estrutura paradoxal, pois baseia-se na prerrogativa de ser-se a si-mesmo e um Outro ao mesmo tempo e, no entanto, sendo-se Outro, não se deixar de ser si-mesmo.
A problemática do DUPLO, aplicada em tão distintas áreas tais como a literatura, a sociologia, a mitologia, a psicanálise e outras, reitera a sua importância sempre renovada, junto de investigadores e analistas. Em 1914, Otto Rank estabelece a ligação implícita entre o “eu” e a morte. O DUPLO funcionará nessa relação como uma potência que visa contrariar a consciência da efemeridade e finitude do “eu”. Freud, no seu texto datado de 1919, Das Unheimliche, afirma que o DUPLO, apesar de nos parecer algo de estrangeiro, estranho a nós-mesmos, sempre nos acompanhou desde os tempos primordiais do funcionamento psíquico, estando sempre pronto a ressurgir e provocando-nos uma sensação de inquietante estranheza, uncanniness. Nesta perspectiva, o DUPLO assume um importante papel de mediador entre «duas entidades que não são mais que uma». Contudo, de elemento estruturador, que contraria a pulsão da morte, surgindo como um vestígio do Narcisismo primário, passa evolutivamente, a ser um elemento uncanny, pois virá posteriormente atestar e prenunciar a morte do sujeito ele-mesmo.
A natureza do DUPLO assume-se então como especular, alternando e realizando a sua figuração espectral entre a vida e a morte, entre os sexos, entre si e o objectivo, entre o reconhecimento e a negação do Real. O DUPLO é então uma instância geradora de inquietante estranheza, uncanniness, porquanto o “eu” concebe este DUPLO como algo estrangeiro ou estranho a si-mesmo, mas de facto, não sendo nada de novo ou desconhecido, ao ressurgir, se assume como algo familiar e há já muito estruturado na nossa mente, tendo sido alienado o objecto de um processo de repressão ou recalcamento, provocando, no momento do seu ressurgimento uma angustiante sensação de inquietante estranheza/uncanniness.
Na problemática do DUPLO, é frequente o desvanecimento entre os limites do Real e do fantástico. Assim, não é de estranhar que algo que até aí havíamos considerado como imaginário nos surja como real, ou que o DUPLO que representa e simboliza, se aproprie das totais competências e funções do “eu” de que é representação ou símbolo. Analogamente, devemos entender o DUPLO como uma entidade que evolui e se renova, actualizando o seu conteúdo, à medida que o “eu” se vai também desenvolvendo e criando em si-mesmo uma “consciência moral”. Cumpre-nos finalmente concluir que a temática do DUPLO é em si-mesma uma fonte quase inesgotável de acepções, resultando da sua aplicação um fascínio e uma polivalência assertivos.
Annick Le Guen: «« L’inquiétante étrangeté» et le «double»», Le double, 1ª ed., direcção de C. Couvreur, A. Fine e A. Le Guen, col. «Monographies de la Revue Française de Psychanalyse» (Paris, 1995). pp. 83-94; Carla M. M. Roque e Cunha: «A Inquietante Estranheza em A Confissão de Lúcio de Mário de Sá-Carneiro», Dissertação de Mestrado em Estudos Anglo-Portugueses, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (Lisboa, 1996); Clément Rosset: Le Réel et son double essai sur l’illusion, (1ª ed., 1976), edição revista e aumentada, col. «Folio/Essais» (1984); Jacques: Derrida Dissemination, introd., trad. e notas de Barbara Johnson (Londres, 1993); Otto Rank: Don Juan et le double, 2ª ed., (Paris, 1973); Sigmund Freud: «The ‘Uncanny?», (1ª ed., 1919), The Penguin Freud Library, trad. por James Strachey, vol. 14; Id: «L’inquiétante étrangeté», Essais de psychanalyse appliquée, col. «Idées» (Paris, 1980). pp. 163-210.
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