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Ferramenta analítica teorizada por Silviano Santiago que determina e equaciona o espaço de diferença, assimilação e reacção que é a literatura brasileira (extensível à literatura hispano-americana), em relação às chamadas literaturas “ocidentais”.

Para a América Latina, a partir do período das independências, o espaço literário surge como espaço do entre-lugar, no sentido em que (Santiago, 1978: 18): “[…] não pode mais fechar suas portas à invasão estrangeira, não pode tampouco reencontrar sua condição de “paraíso”, de isolamento e de inocência, constata-se com cinismo que, sem essa contribuição, seu produto seria mera cópia – silêncio […]”.

A geografia literária latino-americana é uma “geografia de assimilação e de agressividade, de aprendizagem e de reação, de falsa obediência” (idem, ibidem). Não é uma literatura passiva, nem que ocupa um lugar definido ainda na história da cultura – e por isso é tão complexo determinar um sistema que englobe e defina a literatura latino-americana, porque quando esta entra no processo de mundificação da literatura, assume, à partida, o seu lugar de diferença e de assimilação recriadora ou destruidora dos valores antigos (Santiago, 1978: 19): “[…] é no entanto preciso que assinale sua diferença, marque sua presença, uma presença muitas vezes de vanguarda.” Esta presença de vanguarda torna-se evidente, por exemplo, com o modernismo brasileiro, ou os subgéneros narrativos das “novelas de dictador” ou “novelas de la violencia”, entre outras correntes e tipologias que vieram acrescentar e moldar as já existentes. Concomitantemente, impulsiona a abertura dos temas e narrativas literárias para as questões e discursos de poder, dominação cultural, e a variabilidade na noção de espaço e de tempo narrativos. O silêncio, diz-nos Santiago, seria a resposta desejada pela cultura dominadora, algo que, felizmente, não só não acontece como é activamente contrariado (Santiago, 1978: 19): “O silêncio seria a resposta desejada pelo imperialismo cultural, ou ainda o eco sonoro que apenas serve para apertar mais os laços do poder conquistador. Falar, escrever, significa: falar contra, escrever contra.”

Mas como se define o entre-lugar do discurso latino-americano? O entre-lugar não é um conceito, é uma ferramenta de trabalho. Não revaloriza nenhuma parcela em detrimento de outra, pelo contrário, questiona e sopesa as suas diferenças equitativamente. Deverá levar-se em consideração tendo em conta todos os momentos de diferença que levam a uma observação completa sobre determinado fenómeno. O entre-lugar define-se, destarte, como olhar duas coisas simultaneamente, sem assumir periferias, mas sublinhando as diferenças. Em vez de se tornar uma série de afirmações, pretende-se que seja um jogo que, em virtude de um certo autoritarismo, passe pela divisão a fim de recalcar e questionar todas essas formas de autoritarismo, ou seja, o “falar contra, escrever contra” (Santiago, 2019): “Por outras palavras, o entre-lugar conduz ao jogo no qual se deve duvidar da conjunção «ou» para se começar o diálogo a partir da conjunção «e». O entre-lugar formará um conceito de trânsito, no qual não existe nem se pode assumir uma identidade imutável.” Tal vai ao encontro daquilo que Eduardo Coutinho afirma: deixa de haver um texto devedor do outro, mas uma reciprocidade analítica e de leitura (Coutinho, 2001: 322); e coincide também com o que Umberto Eco defende na sua Obra Aberta (1989 [1961]), isto é, o ideal de infinidade e abertura que os novos estudos humanísticos e estéticos devem incorporar como metodologia de base (Eco, 1989 [1961]: 91-92): “A abertura e o dinamismo de uma obra consistem […] em tornar-se disponível para diferentes integrações, para complementos produtivos concretos, canalizando-os a priori no jogo de uma vitalidade estrutural que a obra possui, mesmo que não acabada, e que parece válida também em vista de resultados diferentes e múltiplos.”

O entre-lugar torna o leitor um criador, e, poderíamos dizer, também um participante activo no ofício comparatista: ao ler, compara, sublinha as diferenças, e contesta as formas de autoritarismo presentes no texto. Por exemplo, as obras literárias produzidas num contexto ditatorial, assumem um entre-lugar não apenas em relação à “destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza” (Santiago, 1978:18), mas, acima de tudo, operam uma reescrita a partir do molde da censura e da repressão política. O entre-lugar implica um acto contínuo entre destruição e recriação intersemiótica.

Ao participar na dialéctica comparatista, o entre-lugar transcende a noção de literaturas nacionais. Pressupõe-se que um bom comparatista seja um conhecedor dos textos, dos contextos, dos autores e dos idiomas, para que lhe seja possível participar nesse ofício amplificador que é o comparatismo. No caso do entre-lugar, há que dar primazia àquilo que era outrora considerado periférico, e sobrepor esses textos e discursos ao que se assume como cânone, para, equitativamente, se observarem e determinarem as reacções, assimilações ou desobediências. Ou seja, presume-se que o comparatista seja um hábil manejador daquilo que é a mente literária e exerça o seu sentido crítico e reflexivo com o intuito de fazer os textos dialogar entre si, provocar acções e reacções; pois, se o não fizer, incorre na repetição acéfala de convenções.

Podemos assim concluir que o entre-lugar participa na infinita abertura, espacial, temporal, multicultural e plurilinguística, da literatura como tessitura base do imaginário humano – uma abertura que possibilita a capacidade de criticar e activamente pensar, dialecticamente, comparativamente, sobre a circunstância humana em qualquer período ou lugar.

 

bibliografia

Eduardo E. Coutinho: “Reconfigurando Identidades: Literatura Comparada em Tempos Pós-coloniais na América Latina” em Floresta Encantada: Novos Caminhos da Literatura Comparada (Lisboa, 2001). pp. 315-331; Silvano Santiago: Uma Literatura nos Trópicos – ensaios de dependência cultural (São Paulo, 1978); Id.: Aula-conferência “Diálogos Culturais sobre a América Latina”, que teve lugar no dia 25 de Novembro de 2019, na NOVA FCSH, em Lisboa, pelas 16h, organizada pelo Professor Pedro Santa María de Abreu no âmbito do seminário “Culturas contemporâneas de Espanha e América Latina”; Umberto Eco: A Obra Aberta, Trad. de João Rodrigo Narciso Furtado. (Lisboa, 1989 [1962]).