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(Do grego epiphainein, ‘manifestar’; raiz em phainein, “mostrar, fazer aparecer”) Termo que antes do Cristianismo designava as aparições dos deuses; veio a designar, posteriormente, a festa que ocorre a 6 de Janeiro, data em que Cristo se manifestou aos Gentios (na pessoa dos Magos) e a sua divindade foi revelada ao mundo. James Joyce apropriou-se do conceito de epifania e secularizou-o, dando-lhe uma conotação essencialmente literária que entretanto se institucionalizou no vocabulário crítico. A definição joyceana é largamente conhecida e frequentemente citada, embora surja apenas em Stephen Hero (edição e introdução de Theodore Spencer, Jonathan Cape, London, 1948), uma primeira versão de A Portrait of the Artist as a Young Man que é consensualmente considerada de inferior qualidade, foi rejeitada pelos editores, e o próprio autor não quis, posteriormente, que fosse publicada. Joyce apresenta o conceito nos seguintes termos: “Por epifania ele referia-se a uma súbita manifestação espiritual, presente quer na banalidade da fala ou do gesto quer num estado memorável da própria mente. Na sua opinião, cabia ao homem de letras registar estas epifanias com um cuidado extremo, visto tratarem-se dos mais delicados e evanescentes dos momentos(…)” [itálicos nossos] (188) Stephen Hero, o protagonista do romance com o mesmo nome, glosa e adapta nesta passagem o terceiro elemento da definição de beleza de S. Tomás de Aquino – claritas. Como ele próprio explica, atribui a este termo um significado metafórico, interpretando-o como quidditas – que traduz por “radiance”. Os primeiros dois elementos – integritas e consonantia – são traduzidos na obra acima referida por “integrity” e “symmetry” (idem, p.189), enquanto no Portrait, os termos preferidos por Joyce são “wholeness” e “harmony”. De qualquer forma, os seus significados não diferem grandemente: no primeiro momento, o objecto destaca-se, definindo inequivocamente as suas fronteiras com o vazio momentâneo que constitui o não-objecto; em seguida, as partes que o constituem são analisadas, sendo percepcionada a simetria que o compõe; finalmente, como resultado de uma clara apreensão da forma do objecto, é operada uma síntese: “a sua alma, a sua materialidade ou essência [whatness] é projectada para fora das vestes da sua aparência, na nossa direcção” (idem,190). É este então o momento da epifania.

Como lembra Aubert (The Aesthetics of James Joyce, The Johns Hopkins University Press, Baltimore & London, 1992), enquanto S. Tomás de Aquino encara o objecto como analogos, i.e, como apresentando na sua forma uma relação com a beleza transcendente, Joyce rejeita esta divisão e funde essência e percepção. Importa destacar, como o autor de Ulisses o faz (op.  cit., p.188), que o objecto da epifania é trivial, não se destacando por si só. A chave para compreender a excepcionalidade do momento está no papel activo da mente: um objecto que faça parte do nosso campo de visão quotidiano pode ser repentinamente resgatado da sua banalidade, através da focagem operada pelo nosso “olho espiritual”, parafraseando Joyce.

O aspecto destacado — a democratização dos temas literários e simultânea “elevação” dos objectos comuns – tem levado os esforços genealógicos em relação à epifania literária a apontarem como momento seminal o Romantismo (destacam-se os nomes de Ashton Nichols e Robert Langbaum). Na poética romântica, a sensibilidade extrema do sujeito conduz a uma percepção da profundidade do mundano, fenómeno que ocorre em momentos privilegiados de enorme intensidade – os “spots of time” de Wordsworth, por exemplo (Prelude, Bk. XII, l.208). Ralph Waldo Emerson, na sua versão transcendentalista do Romantismo continental, chega a aplicar a própria palavra, ainda que num contexto declaradamente religioso: “Um dia arrasta-se após outro, repleto de factos, coisas enfadonhas, estranhas, desprezadas… hoje em dia o intelecto desperto descobre ouro e pedras preciosas num destes factos ignorados, e então apercebe-se …que um facto é uma Epifania de Deus.”(Selections from Waldo Emerson, ed. Stephen E. Whicher, Boston, 1960, p.40). Tanto Langbaum como Nichols identificam na epifania um “instrumento de transição” da poética do séc. XIX para a poesia e prosa do século seguinte. A este propósito, o primeiro fala mesmo de um “modo epifânico” que determina tanto a composição do objecto literário como a forma de pensar a relação entre literatura e o real desde Wordsworth. É necessário ter algumas reservas em relação a este alargamento do conceito. Devemos, por exemplo, distinguir epifania de símbolo: este último, ainda que não dissipe o seu significado literal, aponta fundamentalmente para uma alteridade que ultrapassa as fronteiras do objecto (uma coisa é ela própria e, simultaneamente, símbolo de outra). Na epifania, pelo contrário, é o objecto ele próprio que é revelado. Dito isto, importa reter alguns pontos essenciais da argumentação de Langbaum: primeiro, que o dito “psicologismo” ou subjectividade dos românticos – herdado em parte pelos modernistas – não se opõe necessariamente a um confronto com o real, sendo a epifania um dos pontos de encontro; em segundo lugar, este conceito é um dos marcos na transformação da prosa que ocorreu a partir de finais do século XIX, e sobretudo no primeiro quartel do séc. XX – a procura sistemática de formas de organização alternativas à linearidade do enredo. Neste processo, a poesia foi uma das fontes de “inspiração”, o que levou a que se fale do género “romance lírico”.

Importa demorarmo-nos um pouco mais nas intenções por detrás da experimentação formal dos modernistas e a forma como se relacionam com o conceito de epifania. As narrativas teriam de ser flexíveis o suficiente para apreender as óbvias e constantes metamorfoses do real, mas procuravam também pontos de referência que servissem de contraponto a essa fluidez (e que, em última análise, tornam os romances “legíveis” de alguma forma). Por outras palavras, a “democratização” de que se falou não implica um tecido narrativo indiferenciado. Mesmo uma prosa em muitos aspectos tão oposta à de Joyce como o é a de Virginia Woolf, com um ênfase notório na fluidez dos pontos de vista, apresenta sistematicamente pausas que funcionam quase como chaves de leitura: “iluminações, fósforos que se acendem inesperadamente no escuro” (To the Lighthouse, p. 176). A epifania é um instrumento de revelação, que suspende o devir e se destaca dele. O momento, ainda que efémero, é registado – prende a atenção – e dessa forma prolonga o seu significado, permeia o resto do texto e fornece nós privilegiados de significado ao leitor.

bibliografia

Jacques Aubert, Introduction à l’Esthétique de James Joyce, Librairie Marcel Didier, (1973) [edição utilizada: The Aesthetics of James Joyce, Johns Hopkins University Press (1992)]; James Joyce, Stephen Hero, Jonathan Cape (1948); Ashton Nichols, The Poetics of Epiphany – Nineteenth Century Origins of the Modern Literary Moment (1987); Virginia Woolf, To the Lighthouse (1992).