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Composição datada e escrita por um indivíduo ou em nome de um grupo com o objectivo de ser recebida por um destinatário. O termo tem uso antigo e constitui modo literário importante, a partir do conjunto de textos do Novo Testamento que ficaram conhecidos por epístolas. Neste sentido, distingue-se uma epístola de uma carta comum, pois não se destina à simples comunicação de factos de natureza pessoal ou familiar, aproximando-se mais da crónica histórica que procura relatar acontecimentos do passado. A utilização do termo alarga-se, depois, a todo o tipo de correspondência privada ou oficial, literária ou filosófica, religiosa ou política, pelo que a partir desta generalização se torna difícil estabelecer com rigor a diferença entre uma epístola e uma carta. À arte de escrever epístolas ou formas registadas de correspondência escrita entre indivíduos dá-se o nome de epistolografia; à teoria e prática da escrita de cartas ficcionais, convém chamar-se epistolaridade. De notar que alguns epistológrafos não incluem as epístolas poéticas no espaço de investigação deste tipo de textos, porém sendo o ponto de partida de uma epístola poética a forma e a função pragmática da carta, parece-nos fazer sentido incluir no modo epistolar o estudo das formas poéticas, mesmo que estas partilhem também as características do modo lírico.

Na literatura latina, são referências obrigatórias do modo epistolar as Epístolas, de Horácio, as cartas de Varrão, Plínio, Ovídio e, sobretudo, de Cícero, cujas Epistolarum ad Quintum fratrem (Cartas aos seus Amigos) fixaram um modelo largamente imitado. O primeiro livro das Epístolas de Horácio, com 19 cartas, foi publicado em 20, sendo um dos pontos altos da poesia autobiográfica da Antiguidade clássica. O livro II contém a célebre epístola aos Pisões (ao cônsul romano Lúcio Pisão e seus filhos, uma família de literatos), que Quintiliano passaria a designar por Ars poetica embora também possa ser acompanhada do título paralelo: Epistula ad Pisones. Trata-se na realidade de uma obra híbrida entre a epístola e o tratado técnico, apesar de alguns estudiosos a classificarem como obra de carácter isagógico ou propedêutico e outros como uma mera selecção arbitrária de assuntos vários sobre poesia. São ainda referência obrigatória os textos epistolares de Séneca, cuja coloquialidade pode já decidir que o estilo que convém a uma carta não deve ser enciclopedista ou empolado: “Tens-te queixado de receberes cartas minhas escritas sem grandes pruridos de estilo. Mas quem é que escreve com pruridos se não aqueles cuja pretensão se limita a uma eloquência empolada? Se nós nos sentássemos a conversar, se discutíssemos passeando de um lado para o outro, o meu estilo seria coloquial e pouco elaborado; pois é assim mesmo que eu pretendo sejam as minhas cartas, que nada tenham de artificial, de fingido!” (Cartas a Lucílio, Carta 75, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991, p.305). De notar que entre os romanos, a carta era um meio de comunicação privilegiado, existindo carteiros especiais (tabellari) que garantiam que as missivas não literárias chegassem ao seu destino. A Idade Média distinguirá uma arte subsidiária da Retórica, a ars dictandi, que sistematizará as regras de redacção de uma carta. Petrarca será um dos mestres da epistolografia medieval, com as suas Familiarum rerum libri XXIV. Nesta época, devemos destacar também a carta-prefácio, que funcionava como um autêntico ensaio propedêutico à obra que introduzia, estabelecendo os princípios que regeram a escrita da obra prefaciada. O “Prólogo de Garcia de Resende dirigido ao príncipe nosso senhor”, destinado a D. João, é uma carta-prólogo desse tipo. Por esta altura, o modelo de carta tradicional obedecia ainda ao cânone greco-latino, cuja estrutura é: 1) salutatio (saudação do destinatário); 2) exordium ou captatio beneuolentiae (prender a atenção do leitor e conquistar a sua benevolência); 3) narratio (apresentação do assunto); petitio (súplica ao leitor para cumprir o que lhe é solicitado; conclusio (recapitulação e conclusão).

Na literatura, o recurso a epístolas para construir um único discurso, como um romance, por exemplo, Cartas a Sandra (1996), de Vergílio Ferreira permite estabelecer o modo epistolar. Outras forma de expressão é a simples colecção de cartas pessoais de escritores de interesse nacional. É comum reunir-se em livro tais textos, sob o título Correspondência, e editados com prefácios, notas e comentários textuais. Estas colectâneas, que se multiplicaram a partir do triunfo da crítica literária, realista, naturalista e impressionista do século XIX, têm um valor documental importante para o estudo dos autores que se corresponderam. Estão neste caso, entre muitos exemplos, as cartas de Eça de Queirós a Oliveira Martins, de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro ou de Jorge de Sena a António Sérgio. O objectivo era (e é ainda) o de revelar o indivíduo que se esconde por detrás da máscara do autor literário. O epistolário biográfico torna-se assim um meio privilegiado de especulação sobre a época e os costumes dos escritores.

Podemos distinguir diversos aspectos numa carta. Trata-se de 1) um acto de comunicação bidireccional, 2) um acto de escrita pragmática, 3) um acto de comunicação escrita diferida no tempo, 4) um acto de comunicação escrita produzida entre espaços distintos, 5) um acto de comunicação escrita direccionada e interpelativa, exigindo uma resposta do destinatário para completar o seu ciclo de sentido. O recurso à carta é hoje, curiosamente, mais literário do que social. Até ao aparecimento da imprensa escrita regular, a carta desempenhou o mesmo papel que hoje tem por exemplo um noticiário. Era a carta que informava um destinatário privilegiado sobre os factos que ocorriam no mundo. Neste tempo, a carta não se detinha nesse destinatário, porque, sendo carta-notícia, convidava à sua divulgação entre vários indivíduos, que de outra forma não podiam aceder à informação comunicada. Até ao aparecimento da imprensa escrita regular, a carta também desempenhou um outro papel social importante: era o meio por excelência de formar a opinião pública (lembremos as Cartas Familiares, de Francisco Manuel de Melo), de instruir os espíritos em determinadas crenças (por exemplo, nos primórdios da era cristã, as epístolas eram verdadeiros guias espirituais ou manuais de fé; no século XVII português, Frei António das Chagas seguiu o mesmo caminho com as suas Cartas Espirituais). Na história da literatura portuguesa, registamos ainda uma importante função didáctica da carta: António Ferreira utilizou o modo para fazer teoria da literatura, Francisco Rodrigues Lobo dedicou os diálogos II (“Da polícia e estilo das cartas missivas”) e III (Da maneira de escrever e da diferença das cartas missivas”) da sua Corte na Aldeia a uma primeira tentativa de sistematização estilística da epistolografia, Correia Garção legou-nos epístolas poéticas, como a “Epístola a Olindo”, para traçar as bases literárias do neoclassismo, etc. Uma carta também pode ser um meio de fazer nascer polémicas ideológicas e ao mesmo tempo reflectir sobre a sociedade e o mundo. Por exemplo, uma das mais famosas polémicas de sempre na literatura portuguesa, a Questão Coimbrã (1865-66), que se desenvolveu com a troca de cartas, destacando-se Bom Senso e Bom Gosto, a carta de Antero que também deu nome à polémica, Teocracias Literárias, de Teófilo Braga ou A Literatura de Hoje, de Ramalho Ortigão. O modo epistolar pode ser ainda uma criação ficcional completa, incluindo texto e autor. É o caso de Correspondência de Fradique Mendes, resultado do empenhamento crítico de Eça de Queirós. O projecto é criar um autor virtualmente superior ao próprio crítico, para o que Eça estudará não exactamente uma obra que nunca chegou a existir nem um autor-por-ser, mas a forma de o autor real se poder afirmar numa originalidade artística ideal que ele sabe só poder atingir pela via poemática. Sirva de exemplo a carta que Fradique “envia” a Guerra Junqueiro: “Meu caro amigo: a sua carta transborda de ilusão poética. Supor, como você candidamente supõe, que traspassando com versos (ainda mesmo seus e mais rutilantes que as flechas de Apolo) a Igreja, o padre, a liturgia, as sacristias, o jejum da sexta-feira e os ossos dos mártires, se pode ‘desentulhar Deus da aluvião sacerdotal’, e elevar o povo (no povo você decerto inclui os conselheiros de Estado) a uma compreensão toda pura e abstracta da religião – a uma religião que consista apenas numa moral apoiada numa fé — é ter da religião, da sua essência e do seu objecto uma sonhadora ideia de sonhador teimoso em sonhos!” (Correspondência de Fradique Mendes, Círculo de Leitores, Lisboa, 1981, p.117).

Para o modo epistolar puramente ficcional, pode não importar o destino de uma carta, porque o que importa é apenas o pretexto ou o exercício da escrita em si mesma, como bem se observa num romance epistolar pós-moderno como Novas Cartas Portuguesas (1998, 1ª ed., 1972), de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa: “Pois que toda a literatura é uma longa carta a um interlocutor invisível, presente, possível ou futura paixão que liquidamos, alimentamos ou procuramos. E já foi dito que não interessa tanto o objecto, apenas pretexto, mas antes a paixão; e eu acrescento que não interessa tanto a paixão, apenas pretexto, mas antes o seu exercício.” (p.11). Este revolucionário livro epistolar é um pastiche criativo de uma famosa colectânea do século XVII, Lettres portugaises (1669), que se atribui a Soror Mariana Alcoforado, embora escrito por Guilleragues talvez a partir de cartas verdadeiras enviadas pela freira portuguesa ao cavaleiro de Chamilly, oficial francês em missão em Portugal. Estas cartas de amor são um marco na literatura europeia, fixando um certo modo de escrita que ficou então conhecido por escrita “a la Portugaise”, isto é, texto essencialmente notado pelo domínio das paixões sobre a razão e por uma certa irracionalidade do discurso. Como comenta Linda Kauffman, “The letters had such a phenomenal impact on both sides of the English Channel that to write ‘à la Portugaise’ became a veritable code for a certain style of writing-to-the-moment, at the height of passion and distress.” (1992, p.105). Ao contrário da estética defendida em Novas Cartas Portuguesas, as cartas da freira portuguesa são do tipo que exige algo mais do que o exercício puro da escrita epistolar, pois sem a referência do destino não há verdadeiramente carta amorosa. O que as une como modos epistolares de referência é um facto universal: podemos dizer, que as Novas Cartas Portuguesas e Lettres portugaises ilustram o tipo de epístola que Derrida analisa em La Carte postale (1980): uma carta é sempre escrita “em rasura”, quer nos refiramos a censuras internas (não sabemos quem escreve a quem em Novas Cartas Portuguesas e temos dificuldade de confirmação da autoria de Lettres portugaises) quer nos refiramos a censuras externas (o livro foi efectivamente censurado pelo Governo português de então), quer no refiramos ainda à simples ineficácia do serviço postal que pode condicionar o destino da carta. Derrida defende a tese de que uma carta pode sempre falhar o seu destino. A tese está defendida no famoso ensaio “Le facteur de la vérité” (Poétique, 21, 1975), que é um comentário do ensaio de Lacan “Le séminaire sur ‘La lettre volée’ ” (Écrits I, 1966), a propósito do conto “The Purloined Letter”, de Edgar Allan Poe. O título de Derrida joga com a ambiguidade do termo “facteur”, que em francês tem o duplo sentido de “carteiro” e “termo de uma operação matemática ou produto”, ambos servindo o objectivo do ensaio: questionar o postulado lacaniano de que uma carta chega sempre ao seu destino e, consequentemente, analisar o problema da destinação da verdade em psicanálise. Derrida acredita que o tempo presente dissipou a existência fundamental da epistolaridade, face ao triunfo das novas tecnologias.

No final do século XX, a epistolografia parece ser inconsequente quando está a desaparecer cada vez mais a prática da escrita de uma carta tradicional, face ao pragmatismo do fax, do telefax, do e-mail, da vídeoconferência, do chat, etc. Um romance epistolar curioso como O Defunto Elegante (1996), de Luísa Costa Gomes e Abel Barros Baptista, que se constrói como um troca ficcional de faxes e cartas entre dois emissores-receptores, abre precisamente com um mal de fim de século: a ansiedade das telecomunicações, que se sobrepõe à ansiedade da comunicação manuscrita: “Querida X.: Se falámos há pouco pelo telefone, vejo mal que razões tão «ponderosas» possam existir para que te escreva. A insistência com que tens alimentado esta correspondência deixa-me perplexo, e estou à espera, aliás, do momento em que confirmarei que não passa de mais um capricho, um desses traços do teu whimisical behaviour, como dizes, e a que me foste habituando de ano para ano. A distância ou a separação, creio eu, são factores irrisórios, pelo menos no mundo actual, moderno ou pós-moderno, como queiras, em que se comunica tele e tudo é móvel (…). Confesso, ou protesto mais uma vez, que escrever cartas me chateia, ou melhor, já que escrevo, me entedia: é assim uma espécie de logografia, em que se vai dizendo ou escrevendo seja o que for, porque o mais importante é haver carta, a carta em si mesma e por si mesma, dica ela o que disser. Aliás, se calhar, até acabas por ter razão: talvez se justifique escrever cartas quando não precisamos delas para falar com o outro ou com os outros.” (p.9).

bibliografia

A. Crabbé Rocha: A Epistolografia em Portugal (1985); Ana Maria Barrenechea: “La epistola y su naturaleza generica”, Dispositio, 15, 39 (1990); Elizabeth Heckendorn: Epistolary Bodies: Gender and Genre in the Eighteenth-Century Republic of Letters (1996); Jacques Derrida: La Carte postale – De Socrate à Freud et au-delà (1980); Janet Gurkin: Epistolarity: Approaches to a Form (1982); La Correspondence: édition, fonctions, signification, Actes du colloque franco-italien, Aix-en-provence, 5-6 Octobre 1983 (1983); Laurent Versini: Le Roman épistolaire (1981); M. Luther Stirewalt: Studies in Ancient Greek Epistolography (1993); Shari Benstock: “From Letters to Literature: La carte postale in the epistolary genre”, Genre, 18 (1985).