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A epoché, conceito-chave na fenomenologia contemporânea, deriva de formulação muito antiga, oriunda do ceticismo grego. Na definição de um dos principais céticos, Sexto Empírico, trata-se do estado de repouso mental pelo qual nada afirmamos e nada negamos, explorando o quanto não sabemos para melhor atingirmos a imperturbabilidade. A epoché seria a maneira de olharmos o enigma e o mistério sem resolvê-los – ao contrário, protegendo-os.

Por esse raciocínio, a epoché aproxima-se bastante da própria literatura, na medida em que as narrativas fundamentais põem os enigmas na mesa mas não os resolvem. O enredo de Édipo-Rei, de Sófocles, é emblemático. Aparentemente, o personagem Édipo resolve o enigma relativamente fácil posto pela Esfinge – que animal nasce com quatro patas, na maturidade tem duas e na velhice usa três? –, sem perceber que ali se escondia o enigma principal: o da sua identidade, vale dizer, o da identidade do assassino de seu pai e esposo de sua mãe. Ainda que cumprisse involuntariamente a maldição recebida pelo seu pai, Laio, e portanto não pudesse carregar nenhuma culpa, no sentido cristão do termo, demonstra do mesmo jeito a arrogância humana que justifica, por acréscimo, a punição, a ser efetuada por suas próprias mãos. Sua hybris, isto é, sua arrogância e orgulho desmedidos, revelavam-se nas certezas que sustentava, sempre pressupondo que sabia ou pudesse saber.

Assim como apenas Tirésias, o adivinho, por ser cego via o que os que tinham olhos não viam, Édipo pune-se arrancando os próprios olhos – e assim vê: vê o seu limite essencial. A mesma cegueira é tema central de mínimo conto de Bernardo Carvalho, intitulado Cega: “Uma menina cega quer ser escultora para fazer o mundo ver o que ela vê. Seu projeto é esculpir com as mãos o mundo tal qual ela o conhece, reproduzi-lo em cada detalhe e assim permitir aos que enxergam vê-lo também. Um dia ela pergunta ao professor o que é arte abstrata e ele lhe responde analogicamente: é o mundo sem tato”.

A menina cega de Carvalho lembra dos cegos de Saramago e da única mulher que não era cega e os via. José Saramago, para melhor olhar, cega os personagens no romance que chama de Ensaio sobre a cegueira. A epígrafe do romance, tirada de um hipotético Livro dos conselhos, ordena: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Trata-se de síntese do projeto fenomenológico, epocalmente lembrando que olhar não implica necessariamente ver assim como ver não implica necessariamente reparar. Na narrativa, toda a população sofre de uma contraditória e absurda treva branca, um excesso de luz e de cor, com uma única exceção: a mulher do médico que assistiu o primeiro cego. Ela olha os demais, todos cegos, “olhando-se” nos espelhos, não se vendo mas sabendo que a sua imagem, fantasmagoricamente, os vê. Ela testemunha a sujeira física e moral em que vão todos mergulhando, até concluir que “o mundo está todo aqui dentro”, porque “só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são”, enfatizando a suspeita radical de que o olhar seja mentiroso e de que a percepção humana se nos dê fundamentalmente ilusória. O médico-oftalmologista, seu marido, ao recuperar no final a própria visão, diagnostica, serenamente: “Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem”.

Ao dizer que “o homem é a medida de todas as coisas”, isto é, que todo conhecimento é subjetivo, logo, não há verdade objetiva, Protágoras estabelecera as bases do relativismo que alimentaria os céticos e, em conseqüência, a epoché. O ceticismo como método se estabelece a partir de Pirro, por volta do século iv ac. Para Pirro, o homem em busca da felicidade deveria fazer três perguntas: [1] qual é a natureza real das coisas; [2] quais disposições convém adotar a respeito; [3] que conseqüências resultarão desta atitude. A estas perguntas devem-se dar as seguintes respostas: as coisas são equivalentes e indiscerníveis umas das outras, não se nos revelando nem pelas sensações nem pelos juízos; logo, não se deve confiar nem nos sentidos nem na razão, abstendo-se de emitir qualquer opinião e permanecendo em estado de afasia completa; alcança-se desse modo a ataraxia, ou seja, a atitude de quem não é perturbado por nada. Para Pirro, não existem o belo ou o feio, o justo ou o injusto, uma coisa não é mais isto que aquilo. A afasia, como recusa a se pronunciar, conduz à epoché, isto é, à suspensão do juízo, enquanto que a ataraxia, como ausência de perturbação, conduz à adiaphoria, isto é, à indiferença. A epoché grega encontra forma popular no ditado “aceitar as coisas com filosofia”, que supõe serenidade frente às vicissitudes do mundo. Tal serenidade só se alcança quando se abandona toda pretensão de controle e onisciência, o que de vários modos contradiz o projeto intelectual e científico da Modernidade.

Arcesilau e Carnéades, mais tarde, criticaram a investigação dialética afirmando que o argumento que se invoca em favor de uma tese precisa ser ele próprio demonstrado por outro argumento, que por sua vez precisa ser demonstrado por outro argumento e assim por diante, ad infinitum – logo, seria impossível apresentar qualquer demonstração. A prova sempre requer um critério para confirmá-la e este, por sua vez, requer uma prova para demonstrar sua veracidade. Nem uma prova pode ser fundamentada sem a existência prévia de um critério, nem o critério pode ser verdadeiro sem a confirmação prévia da prova. Nesse sentido, tanto o critério como a prova se envolvem em um processo de raciocínio circular. Não são, portanto, confiáveis, já que cada um deles depende da credibilidade do outro e a falta de credibilidade de um afeta o outro.

O comentário pode ser aplicado a toda argumentação contida na teoria contemporânea, incluída a teoria da literatura. Argumenta-se por acumulação de dados e de formulações para melhor disfarçar a impossibilidade da demonstração final e, portanto, a situação-limite de indecidibilidade. Mesmo que se critiquem os adversários por “cartesianos”, queda-se a teoria presa na contradição em termos do próprio Descartes. O filósofo francês, ao fundar o método moderno, efetuara, é verdade, epoché tão sistemática quanto a dos céticos gregos – mas seu objetivo final era duvidar do ceticismo e suspender a suspeita, para chegar à certeza. Em outras palavras, Descartes metodicamente duvidava de tudo para tentar acabar de uma vez com a dúvida. O seu projeto foi tão bem sucedido que se tornou o paradigma da ciência e da pedagogia modernas.

Seu cogito assim se explicita: dubito ergo sum, vel quod item est, cogito ergo sum – “duvido, logo existo, ou, o que é o mesmo, penso, logo existo”. A partir dele, estabeleceu apenas três certezas: [1] se eu duvido, então eu penso, logo, o pensamento existe; [2] se o pensamento existe, então existe um “eu” que pensa, portanto, penso, logo, existo; [3] se o “eu” existe, então Deus existe. A primeira certeza é caso raro de consenso: não há dúvida de que o pensamento exista, uma vez que o simples ato de duvidar funciona como prova dessa existência. A passagem da primeira certeza à segunda, no entanto, é contestável: de que o pensamento exista não se seguiria necessariamente a existência de algum ente que pensasse o pensamento. Por sua vez, a passagem da segunda certeza à terceira é mais brusca, porque a sua dúvida era antes um truque do que uma atitude.

Descartes descreve minuciosamente os pensamentos que antecederiam o estado de dúvida, mas se mostra evasivo quanto ao estado mesmo da dúvida. A dúvida seria feita da coexistência antagônica entre sins e nãos. Ao tomar a dúvida como um estado e não como alternância entre momentos antagônicos, Descartes a coisifica e então pode tomá-la por certeza: “não posso duvidar de que duvido no instante em que duvido”. Mais certo seria: ao duvidar, ponho tudo em dúvida, inclusive a dúvida mesma. A dúvida não é um estado, mas sim um não poder estar. Descartes erra porque confunde a dúvida com a negação hipotética. Negando, hipoteticamente, que as coisas sejam como parecem ou que os sentidos dêem a verdade, ainda não se dá uma dúvida radical, tão-somente uma negação hipotética que se pode repetir indefinidamente: não se pode duvidar do próprio saber sem ao mesmo tempo afirmá-lo reiteradamente. Logo, não seria o ato da dúvida que fundaria a certeza do eu mas, ao contrário, a certeza da continuidade do eu que garantiria a vivência da dúvida.

A dúvida metódica assenta-se numa suposição; no poder de conceber que as coisas sejam de um outro modo. Ora, este outro e suposto modo só pode apresentar-se à consciência como obra do sujeito, produto de imaginação ou conjetura. Para saber que duvida, é necessário então que o sujeito se reconheça como sujeito de três atos: o ato de duvidar, o ato de refletir a dúvida e, antes de ambos, o ato de supor ou imaginar. Para duvidar, necessita-se distinguir, na representação, o dado e o construído, o recebido e o inventado, aquilo que vem pronto e aquilo que se propõe. Eis aí pressuposta a consciência da diferença entre o objetivo e o subjetivo e, portanto, a crença na objetividade do objetivo e na subjetividade do subjetivo; eis aí fundado – nesse truque – o pensamento moderno.

Descartes, apoiando-se no instrumento do ceticismo para enfim negá-lo, faz uma espécie de anti-epoché. A epoché propriamente dita retornará com Edmund Husserl, que proporá, com a fenomenologia moderna, a suspensão do mundo natural. Suspender o mundo natural equivale a colocar momentaneamente entre parênteses a crença, primeiro, de que o mundo natural existe, segundo, de que as proposições decorrentes dessa crença sejam verdadeiras. Essa sua epoché, porém, não é uma manifestação cética, uma vez que não nega a realidade do mundo natural. Husserl afirma que não há sujeito mais realista do que o fenomenólogo: tem certeza de que é um homem e tem certeza de que vive em um mundo real, do qual tem experiência efetiva – as evidências indubitáveis é que repõem a experiência como o maior dos enigmas.

O procedimento suspensivo da epoché implica a redução fenomenológica – algo bastante semelhante ao que o romancista fez quando reduziu o mundo visível a um mundo cego. Pela redução, deixamos de dirigir o nosso olhar para os objetos tomados em si mesmos em seu ser inacessível (a mesa, a árvore, a cidade) para dirigir a atenção para os atos da consciência que nos permitem chegar até eles (nossa visão da mesa, nossa lembrança da árvore, nossa imaginação da cidade). Enfatiza-se a perspectiva, da mesma forma que a literatura perspectiviza o mundo para nós. A redução fenomenológica é uma conversão do olhar que nos permite chegar ao objeto vivendo-o segundo seu sentido para nós, segundo o valor que lhe atribuímos e sobre o qual não negamos nossa responsabilidade.

Entretanto, contrariamente à dúvida cartesiana que a inspira, a redução husserliana não é provisória, negando o mundo para depois reconquistá-lo e à certeza; ela procura instalar-nos num regime crítico de pensamento que é seu próprio fim. O que se procura é uma atitude que ofereça um olhar despolarizado dos objetos, liberando-os da reificação ao percebê-los como unidade de sentido. O que se quer é converter todo fato bruto em essência vivida, abrindo campo para a epoché, ou seja, para esta espécie de eclusa reflexiva que bloqueia a atitude ingênua e permite, ao olhar, olhar o próprio olhar.

A consciência natural ignora a si mesma, escondendo a sua participação na doação do mundo; pela aceitação ingênua do mundo existente, dissimula a operação anônima de constituição de um mundo dito real. Faz-se necessário, então, revelar a consciência a si mesma, pondo a descoberto sua vida anônima para assinar a pressuposição do mundo e transformar em juízo consciente o preconceito natural. Duas seriam as condições de possibilidade da epoché fenomenológica, ou seja, duas seriam as maneiras de combater o poder de fascinação e a influência de uma fé: primeiro, tomar consciência da fé através da reflexão que a tematiza e a põe em questão; segundo, operar, por um ato de liberdade, mudança de atitude e suspender, sem negar, a tese geral da existência, a certeza da nossa fé no mundo. O pôr o mundo entre parênteses retiraria o véu que esconde a subjetividade a si mesma, dando-lhe a visão.

Ortega Y Gasset, que desenvolve caminho particular na fenomenologia, entende que o modelo da redução fenomenológica já se encontrava na arte e, em particular, no romance. Como a vida é precisamente cotidiana, o objetivo maior do pensamento não se encontraria no ampliar-se até o horizonte ou galáxia mais distante, mas todo o contrário: reduzir-se à dimensão do interesse e, portanto, do cotidiano. O romancista não pode desejar ampliar o universo do leitor, se nenhum mundo de romance pode ser mais vasto e rico que o mais modesto dos verdadeiros – ele deve procurar contraí-lo, confiná-lo.

Para poder olhar o próprio olhar, Fernando Pessoa, por sua vez, inventará o mestre Caeiro que por sua vez inventa um de seus mais famosos versos: pensar é estar doente dos olhos. É preciso ver sem pensar, sem procurar sentido oculto nas coisas; é preciso ver pela primeira vez, suspendendo exato todo juízo e filosofia. Para Caeiro, o olhar não é instrumento de análise nem ataque armado de conceitos, mas abertura receptiva ao real. Afirmaria: “toda a coisa que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque realmente é a primeira vez que a vemos”. Combina-se postura heraclítica com a pretensão paradoxal da epoché: ver de novo o que ainda não havia sido visto, porque nunca fora visto assim.

{bibliografia}

André Verdan. O ceticismo filosófico (1998). Edmund Husserl. Investigações lógicas. Edmund Husserl. Meditações cartesianas. Fernando Pessoa. Obra poética. José Gil. Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações. José Ortega Y Gasset. A desumanização da arte. José Ortega Y Gasset. Meditaciones del Quijote. José Saramago. Ensaio sobre a cegueira. Renato Lessa. Veneno pirrônico: ensaios sobre o ceticismo (1997). René Descartes. Discurso do método. René Descartes. Princípios da filosofia. Vilém Flusser. A dúvida (1999). Vilém Flusser. Dinge und Undinge: phenomenologische Skizzen (1993). André Dartigues. O que é a fenomenologia? (1992).