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Designação de origem grega para o género literário também chamado poesia épica, ou poesia heróica, ou ainda simplesmente épica (como substantivo), que denota um texto poético, predominantemente narrativo, dedicado a fenómenos históricos, lendários ou míticos considerados representativos duma cultura. O vocábulo pode igualmente estender-se a um conjunto de acontecimentos históricos percorridos por um determinado «ambiente» mitificador. O mais completo articulado luso-brasileiro desta segunda concepção foi desenvolvido por Fidelino de Figueiredo, mas ela abrange, de modo mais ou menos próximo e explícito, largas áreas ideológicas da abordagem literária, impulsionadas por um dos fundamentos retóricos do discurso histórico-épico de Camões (já patente na Ásia de Barros), a ideia de que a história nacional deve ser entendida como o florescimento duma epopeia fora do âmbito de qualquer textualização (Larsen e Krueger). É neste sentido que expressões correntes como «a epopeia dos Descobrimentos» ou «a epopeia da expansão portuguesa» manifestam a aderência ideológica, voluntária ou não, a uma estratégia discursiva que converte eventos documentáveis em «feitos». Tal estratégia está nas origens da transformação e substituição da épica primitiva mais simples, assente numa imagem do passado como mito, pela complexa epopeia clássica, onde vigora, acima de tudo, a imagem dum tempo heróico particular, definido como o glorioso passado da nação e como um modelo de emulação para os vindouros (Propp; Meletinski). Devem-se distinguir, consequentemente, os processos semânticos associados à epopeia, dos processos de análise crítica que possibilitam a entrada no seu universo. A epopeia define-se, em termos hoje válidos para os estudos literários, como um género formado a partir da sedimentação, historicamente equacionada, de características semióticas, temáticas, formais e expressivas de textos cuja descrição permite a respectiva inclusão no género.

Embora formulando assim uma resposta às utilizações abusivas do termo, a definição proposta peca naturalmente por ser mais uma versão do círculo vicioso da hermenêutica: como poderemos escolher uma epopeia para definirmos o género a que pertence se não soubermos à partida o que é uma epopeia? Para além disso, a épica confunde-se de tal maneira com as origens literárias da Humanidade e é de tal modo consensualmente tratada como totalizante e híbrida, por excelência a soma de todos os discursos, que parece esvaziar-se das características eventualmente próprias que possa possuir. Por razões culturais evidentes, a definição da epopeia é geralmente produzida em Portugal (como o foi durante muito tempo no Brasil) a partir do texto que assume o maior sentido histórico nacional, Os Lusíadas. No entanto, não se pode afirmar que esta seja uma experiência partilhada com outros universos culturais: é que não somente nenhum poema épico individual é um descritor suficiente da epopeia como género, como nem sequer pode depreender-se hoje, seja de que conjuntura for, qualquer conclusão válida, universalmente aceite, acerca da evolução histórica e artística que a epopeia representa, da sua temática própria e das formas que lhe serão intrínsecas (Etiemble; Colie).

Não obstante, a relativa permanência, durante largos períodos da história literária, de certas componentes, parece tolerar a designação concorde de «epopeia» ou «poesia épica» para determinados textos ou conjuntos de textos. Neste sentido, a crítica e a investigação conceberam algumas tipologias de significativo valor instrumental para o conhecimento do género épico e dos textos individuais nele inseríveis. Proceder-se-á à síntese daquelas classificações que possuem maior valor explicativo, seguindo depois para uma resenha da história da prática e da teoria da epopeia no Ocidente, em que se procura uma síntese da enorme diversidade e riqueza dos textos envolvidos, bem como do seu firme interrelacionamento.

Epopeia oral/primária e epopeia literária/secundária/de imitação (Bowra; Lewis; Saraiva) – O exemplo europeu mais típico é o da diferença entre, por um lado, as fórmulas de base oral, a igual clareza na expressividade das partes (Auerbach) e a impressão de espontaneidade de Homero e, por outro, o cuidado estilístico, o claro-escuro e a imitação literária do mesmo poeta por Virgílio. Não se pode olvidar o facto de que ainda hoje é possível testemunhar práticas do primeiro tipo em várias regiões do mundo (ex-Jugoslávia, África, o heikè japonês etc.), apesar do progressivo alastramento da escrita como veículo de expressão artística. Entretanto, há ligações entre os dois tipos que não podem ser escamoteadas em certas épocas, como veremos.

Cantar épico e épica culta/erudita – Fazem parte do primeiro grupo obras como as chamadas chansons de geste, o Poema de mio Cid castelhano, o cantar germânico dos Nibelungos (Nibelungenlied), o Beowulf britânico e outras de origem jogralesca medieval, incluindo provavelmente um cantar português sobre D. Afonso Henriques (Saraiva). Associados à formação de feudos e nações, e baseados em lendas ou relatos de transmissão oral, os cantares pouco têm a ver com o segundo tipo que reemerge no Humanismo europeu como forma erudita teoricamente assente na prática épica das civilizações antigas grega e romana, especialmente as obras de Homero e Virgílio. Com efeito, as relações entre os dois grupos parecem muito ténues, apesar de ser perceptível uma evolução do cantar para o poema épico culto através das recomposições e adaptações dos temas troianos, carolíngios e bretãos que serviram de matéria aos cantares, prática corrente entre alguns poetas eruditos italianos da era humanista. Novo contacto da produção culta com os cantares ocorreu a partir dos primórdios do Romantismo, com o nascimento do interesse etno-antropológico pela épica tradicional e pelo passado celta, gaélico, eslavo, índio.

Epopeia alexandrina e epopeia encomiástica (Newman) – O primeiro tipo é caracterizado por uma aposta na brevidade do texto, nos elementos polifónicos, imaginativos e didacticamente irónicos, enquanto o segundo prefere vastas proporções, fidelidade historiográfica e uma linguagem monoliticamente elevada. Calímaco, poeta de Alexandria que viveu no século III a.c., é o exemplo primeiro duma abordagem da epopeia como género filiado na prática de Hesíodo (Teogonia e principalmente Os Trabalhos e os Dias), uma vez que a Ilíada e a Odisseia de Homero haviam sido já esvaziadas da sua heterodoxia por críticos como Platão e épicos do segundo tipo como Quérilo de Samos (século V a.c.). A história subsequente do género assentaria nesta dualidade, com oscilação em favor do primeiro tipo nas obras de Catulo, Dante e Ariosto até Proust e Brecht (com o conceito de «teatro épico»), e em favor do segundo, a chamada «roda de Virgílio» dos gramáticos medievais, a Africa de Petrarca, ou as epopeias históricas e religiosas francesas do século XVII. No entanto, na maior parte dos casos, a história literária atesta a fusão de ambas as correntes, quando o fundo histórico-laudativo se confunde com a tradição mais livre da epopeia alexandrina.

Epopeia e romance (Lukács; Bakhtin) – O universo épico pertence ao passado absoluto, é, por natureza, inacessível à experiência pessoal e não admite pontos de vista». Bakhtin contrasta deste modo a epopeia com o dialogismo ou polifonia do romance. Esta teoria, como outras, presume uma evolução diacrónica necessária entre a epopeia, género mais primitivo, e o romance, o género do progresso tecnológico e social. Estas concepções, muito influentes pela força intelectual de quem as formulou, estão hoje largamente postas em causa. A literatura japonesa prova que o romance pode preceder a epopeia (Miner); os estudos mais recentes sobre a poesia épica da Antiguidade levam à conclusão de que «a opinião de Bakhtin sobre a natureza não polifónica da epopeia é simplesmente falsa» (Boyle). O cómico, o fantástico, o plural, o íntimo, o subversivo, podem ser qualidades atinentes também à épica.

Epopeia e drama – O tratado fundacional da teoria literária ocidental, a Poética de Aristóteles, valoriza a epopeia quando esta se serve duma «estrutura dramática». Homero elevar-se-ía acima de todos os outros poetas épicos gregos por ser também um grande poeta trágico na Ilíada e na Odisseia. A questão era definida em termos de configuração estrutural e unidade de acção: os poemas cíclicos, por seguirem uma narrativa histórica e por ser possível extrair deles muitos poemas, eram inferiores aos poemas homéricos, porque destes «não é possível extrair mais do que uma ou duas tragédias» (59 b). A opinião acerca da intrínseca dramaticidade da épica generalizou-se, não sem alguma contestação (p. ex. as cartas sobre o assunto trocadas entre Goethe e Schiller em 1797), todavia insuficiente para a desacreditar no discurso crítico-literário. Estudos mais recentes do fenómeno apontam, contudo, para uma diferença fundamental entre um e outro géneros, na medida em que a epopeia não oferece o conflito intersubjectivo em torno do qual circula a acção dramática, mas antes «apresenta uma dialéctica imobilizada, no sentido em que nenhuma parte do texto oferece uma resolução devida à mediação duma dialéctica posta em movimento» (Conte). Os princípios organizadores da epopeia seriam então os da parataxe e da coexistência paralela de perspectivas independentes, nunca os do entrelaçamento dramático e da orgânica interdependência que Aristóteles teorizou.

Teoria e história (no Ocidente) – O primeiro exemplo conhecido duma epopeia de tipo secundário, na tradição ocidental, é a Argonáutica de Apolónio de Rodes, o discípulo de Calímaco, em 4 livros e quase 6000 hexâmetros gregos, cuja fonte de imitação principal é já a épica de Homero. No entanto, como seria de esperar pela escola alexandrina que representa, o poema de Apolónio opta por qualidades muito diferentes das homéricas, oferecendo, como alternativa à força sobrehumana e superior destreza de Aquiles (Ilíada), ou à inexcedível solércia de Ulisses (Odisseia), um chefe (o mítico capitão dos argonautas, Jasão) diminuído e até criminoso, inferior em relação a outros homens e dominado pelos poderes femininos e mágicos de Medeia. Com Homero (e até certo ponto Hesíodo), a Grécia legou a Roma a cultura épica de Apolónio e, portanto, uma rica e já muito vária interpretação das funções do género, donde não se exclui, por exemplo, a denúncia da futilidade da guerra.

As origens da epopeia na Roma antiga são históricas (a Guerra Púnica de Névio e os Anais de Énio, de que se conhecem apenas fragmentos), depois de terem tomado a forma de uma adaptação de Homero (Odisseia de Lívio Andrónico). Com a Eneida de Públio Virgílio Marão (70-19 a.c.), consagrou-se o padrão do género para o resto da Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna. Uma das causas do domínio do poema de Virgílio foi, sem dúvida, a sua versatilidade poética e ideológica, uma vez que a exploração simultânea de dois ou mais registos discursivos (Wofford) transformou a Eneida numa fonte infinita de recursos e mecanismos para (re)produção futura. Composto em 12 livros, o poema épico de Virgílio baseia a sua primeira metade na Odisseia de Homero, a história da errância de Ulisses tranformada na viagem de Eneias desde Tróia até ao Lácio, enquanto a segunda metade imita a Ilíada, a história da guerra troiana convertida no combate pela posse de Itália entre Eneias e Turno. Para além do sistema compositivo (imitatio, linguagem, estruturas) que legou de modo impositivo aos vindouros, com Virgílio o Mito foi definitivamente apropriado pela História, aliando-se intimamente ao Estado romano na forma imperial e absolutista que lhe deu Augusto (figurado como descendente directo de Eneias) e, portanto, expondo o sentido da existência da epopeia através do vínculo que a prende à realidade socio-política contemporânea.

A prova disto mesmo está nas mais influentes «respostas» à Eneida entre os poemas romanos seus sucessores, as de Lucano na Guerra Civil (mais conhecida como Farsália) e de Estácio na Tebaida. Muito apreciados e imitados na Idade Média e no humanismo renascentista, apesar das vozes críticas que se lhes opunham por razões retóricas e éticas, ambos os poemas oferecem alternativas de contraste violento em relação aos ideais heróicos augustanos, por intermédio de configurações que, apesar de tudo, denunciam a cada passo a intertextualidade com a Eneida. Se Lucano caracteriza Júlio César, a principal figura da Farsália, como um homem capaz dos mais horríveis crimes para satisfazer a sua ambição desmedida, Estácio opta por contar uma guerra pelo poder entre dois irmãos que acabam por matar-se mutuamente. No entanto, outras possibilidades de expressão épica sem compromissos com o modelo da Eneida nasceram em Roma, as mais importantes sendo o Da Natureza das Coisas (De Rerum Natura) de Lucrécio, poema que contribuiu para uma maior assimilação pelo género épico de material cosmológico e didáctico-filosófico, e as Metamorfoses de Ovídio, onde a matéria mitológica, a liberdade de conexão das histórias e a variedade imaginativa destas produziu larga influência na poesia épica medieval e moderna.

Talvez o mais importante dos factores que determinaram a continuação do género durante a Idade Média tenha sido a cristianização da ideologia. Com efeito, os objectos de análise histórica e política que dominaram a épica romana sofriam agora uma conversão religiosa: as preocupações pela vida na terra eram substituídas, na epopeia erudita medieval, pela ênfase sobre as relações do indivíduo com Deus ou, noutra versão, os termos virgilianos de exaltação do império serviam agora para indicar o caminho da salvação. No entanto, é difícil proceder a uma caracterização absoluta do género nesta época, na medida em que, tal como na Antiguidade, se pode discernir uma grande variedade de elementos, desde o profético-messiânico ao laudatório e até ao satírico (Ward). Mesmo a paródia crítica, interna ao género, não é desconhecida: o Anticlaudianus de Alão de Lille (1128?-1203) decalca, por oposição, o In Rufinum de Cláudio Claudiano (c. 370-410). Parece pois de suma importância apreender a complexidade de modos de expressão englobados na tradição épica, especialmente numa era em que profundas transformações estão a ocorrer simultaneamente em vários níveis sociais (do clero aos trovadores e ao povo), possibilitando práticas épicas completamente divergentes. A fusão possível destas práticas é conseguida na Comédia de Dante Alighieri (1265-1321), a qual ficará como paradigma supremo dos cânones épicos do seu tempo: o modelo da viagem heróica e a alegoria religiosa, a gravitas temática conciliada com a vernaculidade às vezes cruamente realista, Virgílio como personagem-guia dos objectivos visionários teocêntricos do autor-personagem; enfim, todos os paradoxos do mundo medieval coexistem neste produto culminante e irrepetível. Entretanto, a linha historicamente mais coerente de evolução da epopeia neste período parece possível menos através das múltiplas realizações a que deu lugar do que ao desenvolvimento da teoria do género através dos escólios dedicados à Eneida e a outros poemas romanos, começando por Sérvio Honorato (século IV) e evoluindo no sentido duma crescente alegorização da Eneida e duma mitificação vática de Virgílio, com consequências não despiciendas sobre a suposta mensagem cristã da sua poesia (ideário a que Dante naturalmente não foi alheio).

Esta tendência foi vigorosamente contestada por Francesco Petrarca (1304-1374), o qual, procurando remontar a significação da épica romana às origens clássicas, marcou assim o início do movimento exegético e literário designado geralmente por “humanismo renascentista”. O sentido do discurso épico voltava aos níveis histórico, ético e político, não sem que ficassem as marcas profundas dos procedimentos da alegorese medieval. O género continuou a fundamentar-se na imitação e na hermenêutica da Eneida, paralelamente às possibilidades abertas por poemas como os de Ovídio, Lucano e Estácio, também eles com os seus escoliastas medievais, e a outras práticas da Antiguidade, algumas descobertas, e todas defendidas e disseminadas, pelos humanistas do Renascimento. Quase paralelamente, a tradição dos cantares de matéria troiana, carolíngia e bretã vai sendo assimilada pelos humanistas, começando por Boccaccio (Teseida, Filostrato), ainda no século XIV, até desembocar no Orlando Furioso de Ariosto no primeiro terço do século XVI, releitura em clave cavaleiresca da Eneida e da épica clássica em geral.

Com o Orlando Furioso, a epopeia procede à primeira das recodificações fundamentais da Idade Moderna. Do poema de Ariosto em diante, a imitação erudita deixou pouco a pouco de ser feita tão estritamente sobre o modelo da Eneida, já que o sucesso estrondoso do poema italiano (mais de cem edições só no século XVI) provocou o reforço de certas componentes da epopeia menos trabalhadas pelos humanistas, como o livre entrelaçamento e sucessividade, sem mais conexões, de quadros narrativos e descritivos maravilhosos (já encontrada parcialmente em Ovídio), a desmontagem dos processos laudatórios através duma generalizada e subtil ironia, a mistura descomplexada de materiais das várias correntes do género (prosopopeias do Silêncio ou da Discórdia, deuses pagãos, magia etc.), um renovado privilégio concedido ao amor e à mulher, e a liberdade de fantasia na criação de personagens, no maravilhoso e, até, nas referências históricas e genealógicas. Depois duma primeira fase em que se desenvolveram continuações, “traduções” e imitações estritas do poema de Ariosto, o Humanismo procurou conciliar a herança clássica com a nova épica, afirmando que, apesar dos diferentes procedimentos de representação narrativa, a intencionalidade que presidia ao Furioso era a mesma que se lia em Virgílio, aquela de que Petrarca tinha sido o arauto nos primórdios do Renascimento. Este movimento teórico provocou uma fase experimental de criação na produção épica europeia, em que se procurou o melhor modo de fazer confluir os modelos clássicos com o padrão ariostesco. As dificuldades e tensões que isto provocou na produção do género são patentes na obra de autores como Bernardo Tasso (L’Amadigi, 1560 e Floridante, 1587, póst.), Alonso de Ercilla (La Araucana em três partes, 1569-1578-1589) e Edmund Spenser (The Faerie Queene, 1590-96). O melhor poema desta fase foi Os Lusíadas de Camões (1572).

A instabilidade na criação epopeica provocada pelo modelo épico-cavaleiresco de Ariosto foi substancialmente dominada a partir da publicação (1581) e consagração europeia da Jerusalém Libertada (Gerusalemme Liberata) de Torquato Tasso e dos textos sobre teoria da epopeia do mesmo autor. Com efeito, a partir da década de 1580 em Itália, logo seguido noutros países, dá-se o declínio da influência de Ariosto na produção e na teoria épicas, substituído pelo padrão agora dominante do poema de Tasso. Com este autor, o Humanismo renascentista conseguiu o produto mais próximo do ideal nutrido ao longo de três séculos e, particularmente, a assimilação mais consagrada da épica ariostesca aos modelos greco-romanos. Atinge-se o maior equilíbrio possível entre as narrações da guerra e da errância (virgilianas), por um lado, e do amor (cavaleiresco), por outro, tudo subordinado ao herói perfeito (Godofredo de Bulhões) e à unidade de acção aristotélica. Esta recodificação foi decisiva e, na generalidade, permanente até ao Romantismo.

Assim, no século XVII é talvez a vertente religiosa (para além da burlesca) que é mais procurada. Torna-se cada vez mais contestado o uso do maravilhoso mitológico até aí aceite com naturalidade, e a magia e o fantástico subordinam-se ao que a doutrina cristã (da Reforma e da Contra-Reforma) permite. «Aussi bien en ce temps, ouir parler des Dieux/ En une poesie est souvent odieux / Tasso (…) certaine preuve en fait» (Vauquelin de la Fresnaye, 1605). De facto, sucedem-se os poemas com maravilhoso cristão, assentes na teoria do «maravilhoso verosímil» que Tasso elaborara a partir da Poética de Aristóteles. Por outro lado, uma experiência com bastante sucesso ainda no século XVI, o poema de Du Bartas, La Semaine (1578), e o tratadito teórico do mesmo autor redigido em 1584, facilita a transferência do núcleo temático histórico-político, até então dominante na epopeia renascentista, para as histórias da religião. Contam-se imensos poemas “bíblicos” em vernáculo no século XVII, entre os quais merecem ser destacados, pela qualidade artística e fortuna crítica, La Christiada de Diego de Hojeda (1611) e El Macabeo do português Miguel da Silveira (1638). Entretanto, o retorno aos valores clássicos que, apesar de tudo, Tasso também estimulou, ajudou a promover a substituição da oitava-rima de Ariosto pelo decassílabo branco, já empregue no século XVI por Giangiorgio Trissino (Italia Liberata dai Goti, 1547), pelo depois prolífico e influente Gabriello Chiabrera, no seu primeiro poema épico (Gotiade, 1582), e por Jerónimo Corte-Real (além de outros dois poemas publicados em 1574 e 1578) no Naufrágio e Perdição de Sepúlveda (1594, póst.), o melhor dos originais épicos em verso solto da Europa quinhentista. O ápice da tendência que relacionava, cada vez mais, a solenidade classicista, avessa à oitava, com a temática bíblica, foi atingido pelo Paraíso Perdido (Paradise Lost) de John Milton (1667), a melhor epopeia de Seiscentos.

É também no seguimento da actividade literária de Tasso, particularmente dos Discorsi del Poema Eroico publicados em 1594, que atinge intensidade inusitada o interesse pela teoria da epopeia. Multiplicam-se os prólogos, avisos, tratados maiores ou menores, debates e polémicas, quer com interesse prescritivo para a produção contemporânea, de que talvez o exemplo mais rico seja o da França entre 1630 e 1700, quer por necessidade de exegese e confronto de poemas com as normas, normas essas que, mais ou menos conscientemente, dependiam do paradigma teórico tassiano. Bom exemplo deste último tipo é o surto de textos de poética da epopeia, centrada na crítica e na polémica sobre Os Lusíadas, que se produziram com particular vigor em torno da cidade de Évora na primeira metade do século XVII. Toda uma redefinição do género épico passa também por esses esforços de racionalização teórica, agora tão frequentes quanto os de produção literária.

Esta proximidade entre teoria e prática foi-se apertando progressivamente de modo que, na França da segunda metade do século XVII, e durante momentos posteriores em outros países, a preceptiva atingia o ponto máximo de regulamentação, sendo talvez o Traité du poème épique de Le Bossu (1675) o mais lídimo representante do absolutismo aristotélico a que se chegara. Todavia, algumas das componentes vitais da teoria continuavam a ser alheias à doutrina poética de Aristóteles, nomeadamente o princípio do efeito didáctico sobre o receptor, princípio este que, apesar das tendências barroquistas em atribuir prioridade ao deleite artístico (manifestado em obras proto-épicas como o Adone de Marino e as Soledades de Gôngora), nunca deixou de vingar na epopeia. A doutrina racionalista, a organicidade na estrutura dos poemas e a ênfase sobre os aspectos morais colocavam como que uma camisa-de-forças sobre uma vasta produção épica que, mesmo com L’Henriade de Voltaire (1723-28), a mais internacionalmente discutida das epopeias do tempo, não conseguiu senão inêxitos quase universalmente reconhecidos. Foi na época neoclássica, no entanto, que a teoria da epopeia de índole dedutiva, concentrada nas estruturas do texto e destinada à aplicação prática, atingiu o seu ponto de maior maturidade. A polémica entre Francisco de Pina e Melo e José Xavier de Valadares e Sousa acerca dos poemas Triunfo da Religião (1756) e Conquista de Goa (1759) do primeiro, é possivelmente o melhor exemplo português da atenção rigorosa e meticulosa do neoclassicismo sobre os vários aspectos individuais da teoria da epopeia, buscados principalmente na Poética de Aristóteles e nos textos de Boileau, Muratori e Luzán. Por seu turno, é agora também que a epopeia atinge o seu ponto máximo de distância em relação ao estilo misto que caracterizara a Comédia de Dante. A hierarquia do neoclassicismo épico tem apenas um nível, quer na linguagem, quer na sociedade: o elevado.

Entretanto, ao mesmo tempo que se íam esgotando as tentativas de racionalização da composição épica, nascia um novo interesse pelos cantares da tradição oral e uma nova preocupação pelas origens espirituais das nações. O caso mais célebre foi o da aceitação generalizada do falso Ossian (o poeta preferido de Napoleão), suposto autor duma epopeia primitiva intitulada Fingal, escrita afinal por Macpherson (1736-1796); mas é também no século XVIII que começam os estudos “antropológicos” sobre as chansons de geste, sobre o herói irlandês Cuchulain etc., processos que se desenvolvem à medida do declínio da poética neoclássica em favor do Romantismo. A crítica normativa e estrutural tornava-se agora deficiente nos objectivos, desadequada em relação ao objecto e insustentável para a liberdade artística. Os teóricos românticos vão abandonando a exegese dos clássicos greco-latinos e renascentistas em favor do estudo das mitologias, das lendas e do substrato genético donde as epopeias teriam nascido.

A epopeia erudita dissemina-se então numa nunca vista pluralidade de formas, que os próprios autores do século XIX, ou eram avessos em classificar, ou classificavam dos modos mais vários. Talvez se possa, contudo, englobar a maioria das produções narrativas oitocentistas no âmbito do retorno ao mito e ao folclore, quer na Europa, quer particularmente nas novas nações em formação das Américas. Entretanto, a epopeia começa também a alastrar para formas de arte como a ópera ou drama musicado de Richard Wagner, o romance de Tolstoi e o cinema de Griffiths ou Eisenstein. Os poemas longos do anglo-americano T. S. Eliot (The Waste Land), do franco-caraíba Saint-John Perse (Anabase; Amers) e do brasileiro Jorge de Lima (Invenção de Orfeu), nos seus estilos completamente diversos, oferecem muito do melhor que a epopeia produziu no século XX, a expressão sincrética mas descontínua da vida contemporânea, centrada no poeta como herói demiurgo. Esta estética ainda fundamentalmente romântica não deixa, no entanto, de recorrer aos textos do passado, buscando neles, talvez, os modos de expressão capazes de definir e compreender uma cultura, afinal o propósito que parece ter estado sempre nas origens da epopeia.

Bibliografia:

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