Apresenta‑se, juntamente com o tempo, como a categoria narrativa de maior relevo para a ancoragem de personagens e acções num universo referencial dado. Numa qualquer narrativa, as personagens estabelecem sempre um conjunto de relações físicas e afectivas com os objectos que compõem o espaço fictício, forçosamente distintos daquilo que representam.
Na verdade, da mesma forma como o tempo real não é passível de mera reprodução no tempo narrativo, assim também o espaço literário não deve ser confundido com o espaço real. No início dos anos trinta, Roman Ingarden, ao tentar aplicar ao domínio da literatura as teses fenomenológicas husserlianas, defendia que a unidade concreta original do objecto real não poderia jamais ser apreendida pelo sujeito cognoscente, dado que todo o processo de apreensão implica a discriminação e a separação intencional de somente algumas das determinações que compõem esse objecto. A multiplicidade de tais determinações no mundo real seria infinita pelo que ao sujeito estaria desde logo vedado acesso à totalidade do objecto (Ingarden, 1965: 269‑270). Também Lacan, na década de sessenta, nos chamaria a atenção para o facto de o Real em si não ser assimilável (Lacan, 1994: 53‑55). No entanto, este psicanalista ousa ir mais longe do que Ingarden, afirmando que tal Real está, afinal, para além do automaton, isto é, da insistência dos signos, e que do encontro (tuché) do sujeito com esse Real não resulta senão o trauma. Se Ingarden ainda postula a possibilidade de apreensão, apesar de parcial, do espaço real, Lacan, e mais tarde Althusser e Jameson, admitem, por seu turno, que a representação do Real, e, por extensão, dos objectos constitutivos do espaço real, não é senão operada de forma indirecta — toda a apreensão dele efectuada processa‑se de forma indirecta.
Tal divisão conceptual operada por Ingarden entre o espaço real e o espaço fictício leva a que o acto de leitura passe a ser encarado como o momento em que entra em vigor um contrato entre narrador e leitor através do qual este último reconhece os objectos espaciais apresentados pelo primeiro como possuindo o aspecto de realidade. Isso não significa, porém, que haja identificação desse aspecto de realidade com o carácter ontológico dos objectos reais (cf. Ingarden, 1965: 245). De qualquer forma, esta tentativa intencional de simulação, de veicular algo como se fosse real, é, até certo ponto, bem sucedida porquanto a estrutura do espaço fictício é‑nos apresentada como estando relativamente próxima da do espaço real: não obstante, Ingarden admite que o espaço narrado não é passível de ser integrado no real.
Se este teórico consegue solucionar a questão da distinção entre objecto representado e objecto de representação isso deve‑se não tanto à afirmação do Real enquanto algo que nos está forcluso, como à conclusão de que a finitude e a indeterminação são características exclusivas dos objectos espaciais fictícios. No texto literário o espaço surge‑nos, em consequência, incompleto e sem soluções de continuidade dado que é impossível esgotar todas as suas determinações. Qualquer descrição, por muito exaustiva ou por muito elaborada que seja a nível estilístico, acaba, ainda que involuntariamente, por ignorar a maioria dos elementos constitutivos de uma qualquer paisagem que se queira retratar. Isso deve‑se, em parte, a algo que Ingarden recuperará de Husserl, nomeadamente o conceito de ponto zero da orientação (v. também focalização) centrado num sujeito de enunciação (ora consubstanciado num único narrador, hetero- ou homodiegético, ora disperso por várias personagens). A partir desse ponto é possível ao narrador apropriar‑se do mundo mediante uma percepção mais ou menos clarividente, mais ou menos obscurecida das formas que nele residem. Surgindo‑nos o mundo da narrativa filtrado pela instância do narrador, nada mais natural do que supor que este utilize os seus próprios mecanismos ideológicos para privilegiar esta ou aquela determinação. Como colmatar então o carácter lacunar de toda a descrição? Ingarden crê que o leitor, se bem que não tome consciência desses pontos de indeterminação, transcende o texto e completa, “a vários títulos, as objectividades apresentadas” (Ingarden, 1965: 275).
A questão da localização espacial do narrador e do ponto de partida da enunciação, com as suas consequentes implicações a nível da modelização ideológica, foi também alvo da atenção de outros estudiosos. Greimas e Courtés, por exemplo, à semelhança do fenomenologista atrás citado, consideram a existência de um espaço zero a partir do qual se projecta um além (“espaço enuncivo”) e um aquém (“espaço enunciativo”), definidores das balizas dentro das quais decorre a enunciação, e que constitui o ponto de partida para activar a categoria topológica tridimensional. Dentro dessa categoria, o eixo privilegiado na semiótica narrativa não será tanto o da horizontalidade ou o da verticalidade, mas sim o da prospectividade, uma vez que é ele que permite a exposição linear e articulada de espaços parciais, segmentados, compondo o percurso do sujeito enunciador. Afinal, aquilo que nos é dado a conhecer, enquanto leitores, não é outra coisa senão sectores do espaço delimitados (ora pela incapacidade da linguagem de esgotar o todo, ora pelas ocultações proporcionadas por uma dada perspectiva); sectores esses que se encontram, de certo modo, encadeados pelo continuum textual.
Aquilo com que nos deparamos na literatura não se trata, todavia, de um mundo infinito esquartejado, digamos, pela linguagem, mas sim, como defende Iuri Lotman, de um modelo finito dessa infinitude (Lotman, 1978: 349). Ao reproduzir um certo espaço, tal modelo, enquanto produto artístico, evoca e epitomiza uma determinada imagem do mundo. A estrutura do espaço patente no texto não é senão um modelo do modo como estruturamos espacialmente do universo. Lotman, porém, sustenta algo mais complexo. Dado que a percepção visual do mundo ocupa um lugar preponderante na constituição dos nossos modelos verbais, a “modelização espacial de conceitos, que não têm em si uma natureza espacial” (Lotman, 1978: 361), acaba por contaminar praticamente todos discursos. Se bem que o autor russo se dedique exclusivamente à demonstração de como essa modelização espacial organiza os poemas de Tiutchev e de Zabolotski, não será difícil encontrar outros discursos em que isso suceda. Marx e Freud, por exemplo, só para referir os dois nomes a que Foucault alude quando nos fala dos “fundadores da discursividade”, socorrem‑se de modelos topológicos tripartidos ditstribuidos verticalmente para se referirem, um, à sociedade, o outro, à psique. Também o imaginário religioso se encontra recheado de metáforas espaciais em que os altos e os baixos, no quadro de uma doutrina maniqueísta, apontam ora para a salvação, ora para a perdição. No domínio da política, por sua vez, a preferência actualmente parece recair sobre o eixo da horizontalidade ao longo do qual se distribuem as esquerdas e as direitas, os centros e os extremos. Em termos literários, estas e outras categorias espaciais (baseadas em oposições como ‘aberto‑fechado’, ‘longínquo‑próximo’, ‘exterior‑interior’, ‘móvel‑imóvel’, ‘posterior‑anterior’) ajudam a estruturar ideologicamente o texto. A oposição ‘superior‑inferior’, por exemplo, faz Antero encarnar nas figuras do “Céu” e da “Terra” no seu poema “Tese e Antítese”. No entanto, o sonetista, mais do que expressar o conflito entre a metaphysis e a physis, entre o verbo e a carne, entre a ideia e a matéria, procura realçar a complementaridade e a interacção de ambos os termos, essa sim força motriz de toda a História, pois só quando a “ideia encarna em peitos que palpitam” pode o homem no “remoinhar da luta” fecundar a “terra árida e bruta”.
Por outro lado, os próprios espaços descritos no texto, sejam eles físicos, sociais ou psicológicos, são passíveis de serem ideologicamente sobredeterminados. Onde isso se torna particularmente evidente é no último romance de Eça de Queirós. Em A Cidade e as Serras, onde o escritor joga com o tradicional contraste entre o modus vivendi urbano e o rural, as descrições de cada um destes mundos, das ambiências e dos gestos que os habitam, são permeadas por todo um conjunto de valores que induzem subtilmente o leitor a assumir uma atitude crítica, senão mesmo condenatória, relativamente a uma civilização em manifesta decadência. À exposição sinóptica das comodidades, das maravilhas tecnológicas que evidenciam a sofisticação estéril do 202, espaço contaminado pela ociosidade burguesa e pelo ennui de fin de siècle, contrapõe Eça a singeleza da vida em Tormes, onde tudo floresce e se faz fruto. É aqui que o «príncipe» se reencontra com as suas raízes. A (re)descoberta deste espaço é, mais do que qualquer ensejo de retoma da posse das terras, o retorno a um estado de pureza primeva.
Também a literatura de viagens constitui um exemplo acabado do modo como o espaço se encontra impregnado de investimentos ideológicos. Em Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, a ilha de que o protagonista se apropria é, pela liberdade relativa que lhe oferece e não obstante os perigos vários que se cruzam no seu caminho, o oposto do regime patriarcal que, no conforto imobilizante do universo doméstico, reprime a sua natureza aventureira e a irrestível atracção pelo mar. Mas a ilha não simboliza apenas a expressão de uma vontade de emancipação política; ela também nos surge como território, isto é, enquanto poder espacializado. Robinson assume‑se como um novo monarca, que, procurando construir um projecto político alternativo ao vigente na sua terra‑natal (também ela outra ilha), partilha a sua bem‑aventurança com os seus poucos (mas necessários) súbditos. Como dirá com um certo orgulho, “the whole Country was my mere Property; so that I had an undoubted Right of Dominion. […] My People were perfectly subjected: I was absolute Lord and Law‑giver; they all owed their Lives to me, and were ready to lay down their Lives […] for me”.
Noutros textos também subordinados ao tema das viagens, porém, a ênfase pode recair sobre preocupações distintas. Tanto em The Rhyme of the Ancient Mariner de Samuel T. Coleridge, como em The Narrative of Arthur Gordon Pym of Nantucket, de Edgar Alan Poe, apenas para referir outros casos devedores da narrativa de Defoe, são‑nos oferecidas experiências‑limite em que os sujeitos não só adquirem consciência dos seus erros, das suas faltas, como também assistem ao momento em que o Eu ameaça desintegrar‑se a qualquer instante face à desagregação do espaço circundante. A progressão no espaço físico é, desta forma, paralela à progressão espiritual. Neste caso, a viagem, entendida quer como uma transição entre segmentos do espaço físico, quer como um percurso linear que rasga fronteiras, acaba sempre por traçar uma rota em direcção ao universo interior das personagens. Poder‑se‑á, mais a mais, admitir que a inconstância do espaço físico não é senão a materialização da instabilidade que caracteriza a psique dessas personagens.
Em “The Lady in the Looking‑Glass: A Reflection”, Virginia Woolf , de forma quase imponderável, procede nas passagens descritivas a um curioso investimento semântico do espaço físico (que neste caso também se desvela como um espaço doméstico), subjectivando‑o a ponto de o tornar numa extensão metonímica do espírito da personagem ou numa sua elaborada metáfora. Um espelho, elemento importante do décor, não só reforça o carácter reflexivo deste breve trecho de prosa, como intervém como instância dinamizadora do próprio espaço d’aquém, duplicando‑o e invertendo‑o, tornando‑o num além. É, afinal, desta capacidade que nos fala Robbe‑Grillet: este jogar com diferentes planos; este fragmentar da imagem espacial, apresentando‑a através de um movimento de descrição que, longe de comprometer os objectos a uma perspectiva unívoca, os dilui na descontinuidade de uma percepção pluriforcada, tornou-se numa das características mais notórias da ficção moderna. É que se as diferentes correntes plásticas que caracterizaram a pintura no início do séc. XX se pautaram por um repensar e por um reformular quer dos modos de representação, quer das estratégias de espacialização — um percursor de tais correntes, Paul Cézanne (1839-1906), por exemplo, depurou a natureza representada a ponto de dela extrair apenas os elementos estruturais predominantes (a esfera, o cone, etc.) —, também a literatura soube responder ao desafio, operando uma transformação significativa dos processos de representação ao subverter as normas instituídas pelo realismo; colocava o leitor, portanto, perante novos (e, por vezes, desconcertantes) modos de percepção espacial e temporal.
Se bem que o tempo e o espaço de um mesmo romance possam ser, cada qual, alvo de abordagens distintas, o facto é que ambos se encontram profundamente entrelaçados. Robbe‑Grillet, na análise que faz dos procedimentos de descrição no chamado nouveau roman, frisa a singularidade de tal relação: ‘l’espace détruit le temps, et le temps sabote l’espace. La description piétine, se contredit, tourne en rond. L’instant nie la continuité’ (A. Robbe‑Grillet, 1963: 133). A esta atitude “subversiva” não será de todo estranha a contribuição no presente século dos homens de ciência, sempre vocacionados para questionar velhos paradigmas. Se bem que se possa actualmente alegar, de acordo com C. P. Snow, que existe um divórcio entre as culturas científica e literária, o facto é que o novo olhar que Alfred Einstein lançou sobre o espaço e o tempo transpirou para as letras. A sua teoria da relatividade especial prova que o espaço não pode ser pensado sem o tempo e vice‑versa. O conceito espaço‑tempo, empregue na Física, compreende toda a realidade física e esta só é explicável se se tomar em consideração a relatividade que deriva da inconstância das coordenadas espacio‑temporais dos referenciais A e B.
Como dirá Frank J. Blatt, ‘[the] “when” and “where” of an event are now interrelated and depend on our choice of inertial reference frame’ (F. Blatt, 1992: 38). Espaço e tempo estão, pois, de tal forma intrinsecamente ligados que fenómenos como a contracção do espaço e a dilatação do tempo dependem apenas do facto de o observador se situar em A ou em B. Do mesmo modo, consoante as coordenadas definidoras da posição que o narrador ocupa numa narrativa, assim também se determina a sua capacidade de entender a extensão de certos objectos espaciais e a durabilidade de certos acontecimentos.
F. Blatt: Modern Physics (1992); Degrés, nº 35‑36, Approches de l’espace (1983); A. J. Greimas e J. Courtés: Sémiotique: Dictionnaire raisonné de la théorie du langage (1979); R. Gullón: Espacio y Novela (1980); Ibsch: “Historical changes of the function of spatial description in literary texts” in Poetics today, vol. 3, 4 (1982); R. Ingarden: A Obra de Arte Literária (1965); J. Lacan: The Four Fundamental Concepts of Psycho‑analysis (1994); I. Lotman: A Estrutura do Texto Artístico (1978); E. Muir: The Structure of the Novel (1938); A. Robbe‑Grillet: Pour un nouveau roman (1963).
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