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No belíssimo conto “Felicidade Clandestina”, que faz parte do livro homônimo, Clarice Lispector (1920-1977) desenha, ironicamente, pela figura do cartão postal da capital de Pernambuco, um exemplo cabal de estereótipo: a antagonista era filha de um “dono de livraria” e presenteava as amigas desta forma: “(…) para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como ‘data natalícia’ e ‘saudade’ “. A escritura precisa de Clarice Lispector traduz o estereótipo como o déjà vu das pontes recifenses e o déjà lu das frases feitas, contrastando com a caligrafia elaborada.

Outro sinônimo gritante para estereótipo são os provérbios, que repetem uma sabedoria popular, uma doxa, um aforismo insistente. Chico Buarque de Holanda compôs uma canção extraordinária – “Mulheres de Atenas” -, que desconstrói, sabiamente, o discurso do provérbio, nocivo no que concerne a uma crítica da cultura:

Mirem-se no exemplo Daquelas mulheres de Atenas Vivem pros seus maridos Orgulho e raça de Atenas Quando amadas se perfumam Se banham com leite, se arrumam Suas melenas Quando fustigadas não choram Se ajoelham, pedem imploram Mais duras penas, cadenas Mirem-se no exemplo Daquelas mulheres de Atenas Sofrem pros seus maridos Poder e força de Atenas Quando eles embarcam soldados Elas tecem longos bordados Mil quarentenas E quando eles voltam, sedentos Querem arrancar, violentos Carícias plenas, obscenas Mirem-se no exemplo Daquelas mulheres de Atenas Despem-se pros maridos Bravos guerreiros de Atenas Quando eles se entopem de vinho Costumam buscar um carinho De outras falenas Mas no fim da noite, aos pedaços Quase sempre voltam pros braços De suas pequenas, Helenas Mirem-se no exemplo Daquelas mulheres de Atenas Geram pros seus maridos Os novos filhos de Atenas Elas não têm gosto ou vontade Nem defeito, nem qualidade Têm medo apenas Não tem sonhos, só tem presságios O seu homem, mares, naufrágios Lindas sirenas, morenas Mirem-se no exemplo Daquelas mulheres de Atenas Temem por seus maridos Heróis e amantes de Atenas As jovens viúvas marcadas E as gestantes abandonadas, não fazem cenas Vestem-se de negro, se encolhem Se conformam e se recolhem As suas novenas Serenas Mirem-se no exemplo Daquelas mulheres de Atenas Secam por seus maridos Orgulho e raça de Atenas

Nessa canção-hino, poema-manifesto, discurso-código, o poeta carioca quebra o espelho grego, onde as mulheres contemporâneas não devem olhar-se: estilhaçam-se o modelo grego, a mímesis aristotélica, o exemplo ateniense; a epopéia tem outro discurso, que prega a liberdade, a independência, a autonomia, não só da mulher, mas, metonimicamente, também do homem.

No Seminário Menor de Mariana-MG, o Padre Antônio da Cruz, português famoso pela disciplina férrea, que impunha os seminaristas do Caraça-MG, mas que, com a idade avançada, tornou-se a mais doce das criaturas, usava, para se referir a um chavão, clichê ou estereótipo, uma expressão que nunca mais ouvi: “nariz-de-cera”, seria uma espécie de máscara, que cada qual podia pôr-se. Para acompanhar a expressão pejorativa, o lazarista fazia um gesto memorável.

A primeira disciplina que cursei, no mestrado em Teoria Literária, na UFRJ, foi “Oficina Literária”, oferecida pelo escritor mineiro Ciro dos Anjos (1906-1994) – a ternura em pessoa -, que, logo na primeira aula, nos estendeu uma longa lista de clichês a serem evitados; consultando, hoje, o elenco proibido pelo romancista de O amanuense Belmiro (1937), dou-me conta de que mudaram os estereótipos e aqueles clichês de outrora caíram literalmente em desuso. Muito outro seria, hoje, o rol dos clichês.

Carlos Ceia, para além de traçar, eruditamente, a história retórica, da Antigüidade à Modernidade, passando pela Idade Média, do “lugar comum” – sinônimo de estereótipo -, chama a atenção do leitor para o sentido valorizado de intertextualidade que o lugar-comum possuía em tempos idos. Afirmando que “a originalidade, que é hoje o contraponto do lugar-comum “, considera arte aquilo que prima por sua originalidade, ao mesmo tempo que valoriza a figura de retórica “repetição”, que pode imprimir poeticidade a um discurso. Não significa “repetição” o significante “verso”, parte estrutural do poema? E o refrão, por exemplo, Never more, do poema The raven (1845), de Poe (1809-1849), não constitui uma redundância que confere ao poema uma alta voltagem significativa? Como ser original, se tudo, como já afirmou a Bíblia, “foi comido e bebido”, ou, como reza o adágio latino: Nihil novi sub sole?; por sua automatização, os provérbios, definitivamente, estão à mão, na ponta da língua, no roçar do teclado e provocam, em quem deseja compor um texto literário, uma meia-trava, um intermezzo, um desejo de desautomatizção, bastante árduo de se realizar em vertiginosos tempos cibernéticos. Talvez a originalidade, marca registrada do estético, resida na metonímia, que faz girar o caleidoscópio dos signos. Será a maniera, propalada pelos renascentistas, um índice de originalidade, contraposta ao previsível estereótipo: o “como” se faz, se relê, se reedita algo já produzido ou o ponto de vista inovador face a um horizonte outrora vislumbrado.

Mas o estereótipo pode servir de base para uma construção poética, como no gracioso enunciado: “Na vida tudo passa, até uva-passa”; ou então, “Na vida tudo é passageiro, exceto o motorista e o trocador”. Debatendo sobre a função ideológica do clichê, do chavão, do estereótipo, pude provocar nos meus alunos de graduação a produção de um objeto estético, todo composto de frases feitas, de imagens conhecidas, de sons repetidos: lançando mão da colagem, (re)criaram o clichê e montaram uma peça estranhamente (re)conhecida. Há uma canção, “Clichê do clichê”, de Gilberto Gil e Vinícius Cantuária, que entoa as possibilidades do clichê, estruturando um grande intertexto semiótico, onde dialogam com a literatura o cinema, o teatro, a televisão, o cotidiano, a cultura brasileira, a cultura francesa, a cultura japonesa, configurando um imenso clichê:

Não vou jogar Meu destino contra o seu Num filme piegas sem sal Não vou chorar Nem fingir que o amor morreu Chega de drama banal Que seja a dor Nosso amor, nossos ardis Teatro japonês Onde o ator É ao mesmo tempo atriz Vestes da mesma nudez Eu, Belmondo Como um Pierrot, le fou Só no cinema francês Você, Bardot Belo anúncio de shampoo Só fica bem nas TVs Melhor viver Nosso papel bem normal Que a vida nos reservou Interpretar Nosso bem e nosso mal Sem texto e sem diretor Chega de representar O que nós não queremos ser Não vamos nos transformar Num casal clichê do clichê

Para o iconoclasta escritor irlandês Oscar Wilde (1844-1900) – célebre por suas frases de efeito, jamais por frases feitas -, foi um gênio o primeiro homem que chamou de rosa a mulher; já os outros que usam essa metáfora são uns cretinos, porque nada fazem senão reduplicar. Podemos dizer que mulher-rosa ou rosa-mulher é uma metáfora esclerosada, gasta, batida, uma catacrese, enfim, como, por exemplo, “céu da boca”, “braço da cadeira”, “manga da camisa”, expressões que de tão desgastadas perderam sua força metafórica. O desafio do escritor consistirá, quem sabe, em evitar o déjà fait.

Usando, sem nenhum pudor, o clichê, mas com a consciência alerta de uma possível significação heterodoxa, pode-se dizer que a semiologia de Roland Barthes (1915-1980) foge do estereótipo como o diabo da cruz, na medida em que combate a ideologia, que mora nas frases feitas. No fundo, a ciência dos signos, segundo o semiólogo francês, seria uma semioclastia, visto que postula, mais que a leitura, a desconstrução do signo, o estilhaçamento dos sistemas de signo, a implosão da estrutura sígnica. Na Aula magna, em 7 de janeiro de 1977, no tradicionalíssimo Collège de France, em Paris, Barthes, fundando a cadeira de Semiologia Literária, faz questão de sublinhar, com este bombástico aforismo, o perigo do estereótipo: “(…) em cada signo dorme este monstro: um estereótipo (…) (BARTHES, s.d., p. 15). No posfácio a esse livro fulcral, gostosamente intitulado “Lição de casa”, a tradutora paulistana, Leyla Perrone-Moisés, tece, precisamente, nos termos infra, comentários ao contundente aforismo barthesiano: “Toda a obra de Barthes, em sua multiplicidade, em sua ‘infidelidade’ a posições anteriormente ocupadas (mas nunca assumidas), persegue obstinadamente este objetivo: a caça (e a fuga) ao estereótipo” (Ib., p. 57). Pergunta-se, no mesmo brilhante ensaio, a professora da USP: “ Por que essa teimosia na perseguição de todo estereótipo, de todo lugar-comum, toda palavra-de-ordem, toda expressão de bom senso e de boa consciência? Porque o trabalho de Barthes, como o de todo escritor, se efetua na linguagem, e para ele transformar o mundo é transformar a linguagem, combater suas escleroses e resistir a seus acomodamentos. Combater os estereótipos é pois uma tarefa essencial, porque neles, sob o manto da naturalidade, a ideologia é veiculada, a inconsciência dos seres falantes com relação a suas verdadeiras condições da fala (de vida) é perpetuada” (IB., p. 58).

Promovendo uma radical rejeição ao estereótipo, a semiologia barthesiana indicia, no universo simbólico, a automatização do ser humano, submetido ao poder.

{bibliografia}

Roland Barthes: Aula, 9ª ed., São Paulo (s.d.); Clarice Lispector: Felicidade Clandestina (1998).