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1. Esteticização e estética.

Creio que se pode dar a volta a um verbete destes começando com os problemas de que se supõe padecer a coesão social com o multiculturalismo. Vamos, então, a um diagnóstico actual. O da esteticização, presente em quase todos os relatórios sobre a condição pós-moderna, que vão grosso modo da mercadoria como espectáculo ao auspicioso amolecimento dos fundamentos «metafísicos» da modernidade.

Não sem assumir a debilitação intensional da designação «estética», Wolfgang Welsch dá-nos conta do lifting generalizado do espaço vital, o qual assumiria as dimensões de uma compulsão. Fossem as sociedades ocidentais capazes de agir como seria seu desejo, e acabariam transformando os ambientes urbano, industrial e natural num cenário hiperestético. (1997: 2) A realidade é esteticamente mobilada, o hedonismo é a nova matriz cultural, a esteticização é uma estratégia económica (antes da programada obsolescência dos produtos os tornar inusáveis, já eles estão esteticamente out); e a esta esteticização universal, em superfície, junta-se uma esteticização fundamental, em profundidade: a simulação não cumpre funções imitativas mas produtivas que descobrem a realidade como infinitamente maleável (novas tecnologias); a realidade social não é menos virtual e moldável, graças aos media; e surge o homo aestheticus que aperfeiçoa o corpo e espiritualiza a alma: as atitudes face a questões de prática e de orientação moral são esteticizadas por princípio, e integram estilos de vida. Welsch conclui por uma condição geral: Em última instância, a esteticização da consciência significa que não discernimos já primeiros ou últimos fundamentos, mas antes que a realidade para nós assume uma constituição que até agora só conhecíamos da arte – a do ter sido produzido, do ser mudável, do não ser obrigatório, do ser suspendido, e assim por diante. (id.: 8)

Tem o texto de Welsch vários implícitos e explícitos de muito interesse para o verbete.

(i) A esteticização em pauta é introduzida pelos itens do chic, da elegância e da animação. Assim se puseram todas as shopping areas na moda, sem exceptuar subúrbios e áreas residenciais protegidas.

Fica implícito um contraste com o fim de Oitocentos – quer com os «castelos feudais da nouveauté», quer mesmo com zonas destinadas ao divertimento «popular» do tipo do Crystal Palace de Sydenham. (Martins, 1951: 13, 66 e ss) Como acontece com muitos outros, o contraste tem interesse pela existência de um mesmo objecto, porventura diferentemente configurado. No caso, o meu objecto é a mercadoria em destaque estético durante o tempo de exposição. Lembraria, em primeiro lugar, a saturação luminosa das mercadorias apresentadas para venda pelo dono do grand magasin Bon Marché, um dos castelos da nouveauté, ou que o comerciante D’ Avenel (cf. Sennett, 1976) fazia brotar a faísca «metafórica», forçando à proximidade física mercadorias dissimilares: suspendia-lhes assim a utilidade e tornava-as inesperadas e excitantes (sublinho termos que aparecem no texto de Welsch como predicados da estética e da esteticização). Em segundo lugar, cabe-nos ainda a evocação de lugares como o Palácio de Cristal onde se expõe para efeitos de educação e entretenimento a riqueza das nações. Aí, dado o objecto à fruição universal das «massas» sem materialmente se dar, a catedral popular (termo de Oliveira Martins) funciona como um imenso bazar platónico. (de Cauter, 1993:9) Tal como a mercadoria em geral, o exposto reserva a sua presença autêntica e volta para nós o fac-simile.

Nos dois casos, a esteticização é limitada: privilégio de «classes médias» no primeiro; restrição a uma contemplação da «metáfora» da riqueza das nações e num lugar especificamente reservado para tal efeito, no segundo caso, que é o das «massas». Nem toda a superfície, nem toda a profundidade; mas já a mercadoria, a esteticização e o «consumo» (quando uns consumam com a barriga, tiveram todos de consumir com os olhos).

(ii) Welsch deixa meio explícita, como comparticipante na esteticização, a existência de um processo de desclassificação que produz «clássicos» para as «massas», ou seja, para uma audiência heterogénea, que ultrapassa limites de classe e de idade.

A esteticização quotidiana aparece-lhe assim como uma paródia das vanguardas, por isso que as «massas» continuam a não produzir, e que as não toca como arte o que artistas de «vanguarda» se propõem classificar como arte. As «massas» só recebem o que era arte. A esteticização é um agente de perpetuação de «conteúdos» abandonados que foram outrora sinais de arte: «atributos estéticos tradicionais são despejados na realidade, e a vida quotidiana adquire um carácter artístico»; a esteticização «corresponde quando muito aos velhos programas de esteticização à la Schiller, Programa do Idealismo Alemão, Werkbund e similares». Welsch fala mesmo em aprofundamento do Kitsch. (Welsch, id.: 3)

(iii) Welsch deixa explícito que nesta esteticização a estética substitui a moral: «num mundo onde estão a desaparecer as normas morais, maneiras e etiquetas – a correcta escolha do copo e do acompanhamento convenientes a uma dada ocasião – parecem resistir sem esforço e com firmeza. A competência estética –
difundida por revistas de estilo de vida e adquirida em cursos de etiqueta – sublinha a perda de padrões morais». (id.: 6)

(iv) Welsch opõe à esteticização uma objecção legítima, por isso que provém da estética. Seria uma lei básica desta disciplina a impossibilidade de viver e perceber o «belo» de forma permanente. A esteticização universal e fundamental antevê-se anestesia: «onde tudo se torna belo, nada pode ser belo já» – a excitação continuada conduz à indiferença. (id.: 25) Existem, portanto, razões estéticas a favor de uma interrupção da esteticização.

Muito nitidamente se deduz que as razões estéticas são razões humanas e visam mesmo um retorno de «padrões morais». Sem deixarem de ser estéticas. Face a uma completa anestesia futura, Welsch propõe o diferimento e até a anestesia que transparecem nos juízos (um tanto caricaturais) da classe esteticamente
competente (a dominante): como se vê do material de entrevistas que Bourdieu fez desembocar em La Distinction, as classes dominantes – ou seja: educadas -, distinguem-se por uma relação com o «belo» que se atém à «forma» em função do «desinteresse», e que difere o «prazer» até ao prazer nenhum. São, por assim dizer, «kantianas» sem nunca terem lido Kant. (cf. Bourdieu, 1979)

(v) Welsch quer fazer do estético o conatural crítico da relatividade e do pluralismo. Invoca muito precisamente os valores da tolerância. É preciso sensibilidade às diferenças. A sensibilidade é da competência da estética, como a anestesia o é da esteticização. (id.: 26-7)

Welsch espera tão somente efeitos oportunos mas indirectos da estética; mas obviamente sabe que a oportunidade dos efeitos decorre da «educação».

Como se vê, e tendo o relativismo como um dado sem contorno possível, a estética – ou antes a sua presença pedagógica – é chamada a contornar o incontornável (de forma indirecta e diferida, decerto; mas decerto também como se supõe o «belo» receber-se): este suplemento peculiar não elimina o pluralismo; pelo contrário, vai-lhe dando condições de universalidade por isso que o tornaria universalmente aceitável. Não soa aqui uma não muito longínqua campainha? A campainha «kantiana» daquele juízo de gosto que se oferece ao assentimento geral (e que provavelmente se acha no direito de o esperar pelo muito «desinteresse» que ao juízo acompanha)?

Entramos nos domínios, creio, dos melhores Estudos Culturais e adjacências: multiculturalismo e pluralidade de valores ou de regimes de valor. Como se sabe, John Frow propõe-se naturalizar «escolhas» e «juízos» no interior de «regimes de valor». «Regime de valor» é uma expressão que atribui a cada comunidade o
regime holístico e tribal, poético ou estético, que dificilmente poderá ter de facto. O valor torna o sócio da comunidade expressivo da comunidade. Frow pode assim apresentar-nos comunidades tão diferenciadas e auto-sustentadas que peçam mediação por equivalências de valor, por isso que não se produzem meramente «escolhas» ou «juízos». «Juízos» e «escolhas» passam a valer valor. O valor transformou-se numa globalidade comunitariamente articulada – um todo que em outra comunidade encontrará decerto o seu todo equivalente e «contraposto». (cf. Frow, 1995)

Na verdade, o ensaísta que, tendo suposto uma pluralidade de comunidades autofinalizadas, descreve «universais contingentes» de valor, é também a figura do todo social-nacional como «estrutura paradoxal» que as abrange (nestas condições, eu juraria que «estrutura» é um uso paradoxal; e que, justamente, não haveria tal coisa como uma estrutura, e tão positiva que pudesse ser ainda paradoxal). O mesmo é fazer notar a individualidade abrangente do ensaísta, que se supõe habitante de um todo nacional: não sócio de um «regime de valor», mas cidadão de uma «estrutura paradoxal do valor».

Na medida em que estas descrições, desde os «regimes de valor» à «equivalência entre regimes de valor», são de facto moduladas nos territórios da «estética», é interessante que Eduardo Prado Coelho dê um seu assentimento à estrutura paradoxal (que vai até ao incremento do pluralismo dos «regimes de valor»), por
impossibilidade democrática de proceder de outro modo – e encontre uma excepção e uma objecção precisamente no domínio da estética. Cite-se pelo interesse:

«Em democracia (…), depois dos resultados de uma consulta eleitoral, eu devo suspender a paixão das minhas convicções para aceitar provisoriamente as razões dos outros. Provisoriamente. Mas terá isto sentido no plano estético? Poderei adiar e suspender as minhas paixões? A questão é colocada por John Frow (apoiando-se em Steven Connor) nestes termos: «É praticamente possível viver com uma estrutura paradoxal do valor como transcendência imanente, como um sistema de universais contingentes? E, no entanto, será praticamente possível não viver deste modo?». No valor, como no amor, o juízo é eterno enquanto dura. (Coelho, 1998: 8)

O excerto é notável. Obviamente, o que Coelho quer encontrar é um valor absoluto, como se se não pudesse em absoluto viver (e se tem afinal de viver, aceite o argumento) numa estrutura paradoxal de valor. E procura-o na «estética», onde o valor, absoluto por produzido por um regime de valor, não seria absolutamente  relativizado por dezenas de outros valores absolutos. As paixões políticas são diferidas; e tomamos, dir-se-ia, prazer no prazer dos outros, cujas paixões a consulta eleitoral transformou em razões (suspensas, também são razões as minhas). Mas, ao revés, e singularmente, no plano estético sou um indivíduo com «paixões», cujas são inadiáveis e inabrogáveis. E quando o articulista conclui, equiparando «valor» e «amor», descobrimos que o «valor» talvez tenha o seu paradigma no «valor estético», por omissão do adjunto. E o que é mais: o «valor», se tem valor de paixão, é necessariamente «cego» e «vê» segundo a sua «lógica».

Finalmente, se tudo isto, invocada a consulta eleitoral, não era realmente necessário, as eleições e a democracia, estando onde estão, asseguram representação e representatividade suficientes. Adiam as paixões políticas, representadas em diferido como razões; e para sempre adiam as «paixões estéticas» para a inadiabilidade que seria o mais próprio delas. A democracia é, afinal, um garante das «paixões», do valor das «paixões» e do valor passional de todos os «regimes de valor». Possui uma não reconhecida qualidade estética.

A intromissão no cenário do cidadão democrático enquanto esteta, e depois de apurados os resultados da votação, é muito significativa. Mas, a meu ver, ainda mais significativa é a cegueira ao carácter estético (invoquem-se todos os bons autores, Kant incluído) desta «estrutura paradoxal do valor como transcendência imanente, como um sistema de universais contingentes». Assegurado o comum pela consulta, Eduardo Prado Coelho opta pelo individual. A exemplaridade negativa de uma estética de «paixões», suposta irrazoável, mas também ela garantida pela consulta, não se lembra já da sua destinação ao comum. Outrora, lembre-se, a «paixão» em si supunha-se que não fosse mais do que «equivalência de valor». A diferença entre a paixão política e a paixão estética resulta de um efeito de sobrescrita que dá o lustro estético à paixão estética. Provisórias ambas, a segunda é autofinalizada pelo brilho do paradoxo. É a esteticização que faz a estética.

Tornemos agora a Welsch. E não apenas (o revestimento estético é nele uma forma de auto-ilusão, antes de ser um passe de ilusionismo) para lembrar que a tolerância (ou já agora a consulta eleitoral que nos deixaria tranquilamente a sós com as nossas «paixões estéticas») «põe fim à persecução e ao medo, mas não é uma fórmula para a harmonia social». (Walzer, 1997: 98) E fórmula de harmonia social era também, pela inevitabilidade e pelo todo que se lhe imagina, a vida em «estrutura paradoxal de valor».

Welsch exibe uma fé notável nessa estética que faria de cada indivíduo uma representação sensível da diferença do outro indivíduo. Talvez pela esteticização que a atropela, está-se convicto de que a estética existe. Como não divisamos a sua feliz espontaneidade, ou como pôde ela deixar-se atropelar? Devemos educar-nos em estética, mas somos seres estéticos? Paradoxalmente, a estética não seria coisa estética, por isso que não seria coisa feita.

Creio que Welsch responde a uma demanda do mercado (multi)cultural assente na convicção de que todos têm direito não apenas a representação (as consultas eleitorais estão lá para isso, ao menos formalmente), mas também a uma boa representação: a uma representação melhorada. «Espera-se» então da arte que seja estética, i. e.., que nos represente em nativos do nosso «regime de valor», mas que o retrato saia favorecido em termos de outros «regimes de valor». A representação melhorada implica que não há uma pluralidade de «regimes de valor» que ao comprido se estendam num espaço nacional ou equivalente, de forma assaz paratáctica, e equivalentes todos em valor. O «regime de valor», e «a estrutura paradoxal do valor», são eufemismos activamente deceptivos. Designam de facto as comunidades culturais que têm menos valor e para quem faz sentido o que nas outras se percebe como um retrato valorizado. E «regimes» e «estrutura» são já representações de favor. Há assim um todo, concedo que «paradoxal», que resulta de relações de dominação. Supostas em «regime de valor», as comunidades estão afinal «desde sempre» em relação hierárquica com outras comunidades dominantes e dominadas, e «desde sempre» se acham interna e externamente hierarquizadas por regimes de classe, classificação e «representação».

É também por isso que a estética que Welsch encontra é, mutatis mutandis, o programa schilleriano por si tão derrogado em termos de esteticização e reencontrado agora como estética, e, ao que me parece, repetindo uma certa distinção entre necessidade e facto, com uma acrescida cegueira para o facto. O responsável da cegueira é o realismo que do exercício da «faculdade estética» tão-somente espera efeitos moderados e indirectos. Welsch apoia-se assim na «necessidade». Encerra Schiller o Sobre a Educação Estética deste modo:

Existirá porém um tal Estado da bela aparência, e onde poderá ser encontrado? Como necessidade, ele existe em cada alma finamente modelada; como facto, estaríamos inclinados a encontrá-lo (…) apenas em alguns círculos selectos, onde o comportamento é dirigido não pela imitação superficial de costumes alheios mas sim pela beleza de uma natureza própria, etc. (Schiller, 1994: 102)

No «facto», limitativo, volta-se à «necessidade», designada agora por «a beleza de uma natureza própria». É esta necessidade que Welsch postula onde só se veria esteticização. Para produzir efeitos (por opção realista, «indirectos»), a estética teria de existir porque dela temos necessidade.

Na ausência de socialidades específicas, nota-se que, além do mais, a terapêutica proposta contra a esteticização vai imaginando esta como «democracia»: um social desierarquizado e desarticulado em indivíduos-comunidades «diferentes» mas «equivalentes», e apenas com necessidades de apreciação. A apreciação juntá-los-ia.

Analogamente, a atribuição de «regimes de valor» de que decorreriam «equivalências de valor», permite a sua revisitação em termos de com-paixão estética. E, inegavelmente, de uma esteticização apenas moderada pela menor dimensão passada da riqueza das nações.

 

2. Estética clássica e proto-estética.

Quando Terry Eagleton inaugura The Ideology of the Aesthetics com a afirmação de que a «Estética nasceu como um discurso do corpo», (Eagleton, 19978: 13) procura no «corpo» um polo de conveniência para opor à «razão». Mas o que refere como «corpo» é quando muito um domínio menos irrespirável  do que o do «pensamento conceptual». Este «corpo» não é nietzschiano ou bachtiniano. A estética é-nos tão-só apresentada como «corpo» para ser sintoma de umas primeiras resistências do «materialismo primitivo» – i.e., do inconsciente – à «tirania da razão». (id.: ibid.) Ora, em Baumgarten, o pai fundador da disciplina cujo pensamento se interpreta na sequência desta apresentação, essa narratio não colhe, por isso que a estética se apresenta como «ciência da cognição sensitiva»; e se, como nota Welsch, (id.: 40) para o fim da Aesthetica o autor derroga a verdade conceptual, por abstracta e empobrecedora face a uma realidade que é sempre individual, a verdade é que, antes de nos propor a «faculdade estética» como advogada de defesa do individual (ou do «particular»: escreve Eagleton a tirar proveito do equívoco), a apresentou à senhora da corte (a razão) como prestável servidora. (id.: ibid.) E mesmo a derrogação configura uma prestação de serviços.

Estas figuras políticas estão de resto em acordo com outras que dominam o discurso de Eagleton: assim, a estética nasce disciplinada num contexto de absolutismo político; é procurada e inventada por «uma burguesia intelectual constrangida pelas políticas mercantilistas da nobreza» (indústria controlada pelo estado e comércio protegido pelos direitos alfandegários), «esmagada pelo poder das cortes», «alienada das massas populares», e «sem influência como classe na vida nacional». (Eagleton, id.: 14). Em consequência, o «corpo» é um súbdito que faz questão em se afirmar paciente, razoável e fidelíssimo. A sua política é a estética:

Nada receeis pela realidade e verdade se o elevado conceito da aparência estética (…) alguma vez se generalizar. Não se generalizará enquanto o ser humano ainda for suficientemente inculto para poder abusar dele; e se se generalizasse, tal facto só poderia ser ocasionado por uma cultura que impossibilitasse simultaneamente qualquer abuso. Aspirar a uma aparência autónoma exige mais capacidade de abstracção, mais liberdade afectiva e mais energia volitiva do que o ser humano necessita para se limitar à realidade, tendo ele já de ter deixado esta para trás se quiser chegar àquela. (Schiller, 1994: 96)

Tranquilizai-vos: a realidade é pouca coisa para o exercício de uma tal vontade. Ou seja: a aparência autónoma é uma aparência de autonomia. O súbdito (porque não?, o indivíduo) possui «direito soberano unicamente no mundo da aparência» (id.: 94); e a estética é mesmo uma essencialização da aparência, por isso que esta só é estética (quer dizer, aparência absoluta) na medida em que seja sincera (em que renuncie expressamente a qualquer exigência de realidade) e na medida em que seja autónoma (em que dispense qualquer apoio da realidade). (id.: 94)

A esteticização progressiva que conduz(irá) ao reino da bela aparência – essa mesma que Schiller nos conta em estilo «fenomenológico» – é uma história de  domesticação, pela qual «a beleza extrai o prazer livre do ser humano e a forma tranquila apazigua a vida selvagem». (id.: 84) A beleza submete até o mais insubmisso da «arbitrariedade humana»; e se, ao que parece, usa da férula, fá-lo na medida em deve prevenir e que o ser humano tem de aprender (aqui é, sem dúvida, notável o sentido que articula a oposição entre duas entidades muito conspícuas): «tem de aprender a desejar de forma mais nobre, para que não tenha de querer de forma sublime». (id.: ibid.) Creio que o «corpo» será o candidato mais bem situado para querer sublimemente, ser insubmissa arbitrariedade humana e vida selvagem – e, finalmente, para ser domesticado pelo «belo».

Nem sequer um certo leão me parece apresentável como figura do «corpo». Apreciado em seus instantes estéticos (quando excepcionalmente não está submetido à necessidade), vemos que se limita a «encher o deserto ecoante» com os seus rugidos e que a sua «exuberante energia [se] compraz [assim] num dispêndio sem objectivos».(id.: 97) O deserto será «ecoante» para que possamos «ver» o leão; mas o leão que «vemos» em atitude estética, e de resto já uma «força ociosa», (id.: ibid.) só decerto o «vemos» com o proveito desejável apenas quando «cesse o [nosso] contacto directo com o sentimento como força e defront[emos] o entendimento como fenómeno». (id.: 100)

Finalmente, deve atentar-se que com Schiller a estética começa por ser a abjuração de um ethos de classe:

A utilidade é o grande  ídolo do tempo, a que todas as forças devem ser consagradas e que todos os talentos devem homenagear. Nessa grosseira balança, o mérito espiritual da arte não tem qualquer peso e esta, privada de todo o estímulo, desaparece do ruidoso mercado do século. Mesmo o espírito de investigação filosófica arrebata à imaginação uma província após outra, e as fronteiras da arte estreitam-se quanto mais a ciência expande os seus limites. (id.: 30-1)

É pelo que se diagnostica aqui que estas Cartas são ao mesmo tempo a história universal da humanidade como esteticização e um projecto de esteticização. Como não lembrar a posição de Welsch face àquele seu outro diagnóstico? É daquela história universal que Welsch herda a «faculdade estética», para de novo a transformar em narrativa universal. Trata-se de, conhecido já o desfecho, «rapidamente» a repetir como ensinamento. A nova educação em estética (tipo lição das coisas, por ser em contexto e em contacto) é uma nova esteticização que pretende recuperar a moderação da estética original. O realismo concede ao tempo o que tempo exige: efeitos menores e indirectos. Mas há lá algum realismo mais realista do que a estética? Pois não é isto o que a estética «original» exige: formas de desinteresse e prazer nenhum – desejar, enfim, para não se querer?

Acrescente-se agora que este topos afortunado, onde se opõem beleza e utilidade, não é nestas Cartas de todo utilizado em favor do sensível e menos ainda do sensual. A estética recomenda o ascetismo. Assim como, na obra de arte que honra a beleza verdadeira, a forma faz tudo (id.: 80), assim tudo se faz na estética pela forma ou pro forma. A «faculdade estética» é um leão que se propõe pregar no deserto.

Apesar da denúncia do demónio da utilidade (e do estado, e da especialização unilateral do ser humano), apesar do encómio da «pulsão lúdica», não me parece que Schiller vise exactamente uma emancipação do «corpo», ou que faça do «reino da aparência» um bom análogo da sociedade civil reconstruída ao rés-do-chão e não legislada de cima, como pretende Eagleton. (id.: 116) O mesmo Eagleton, apesar de tudo, ressalva a idealização que mais depressa «lança o decoroso véu da estética sobre a não-regenerabilidade crónica» da «vida material» muito mais do que a transfigura; (id.: 117) e, a partir do momento em que o «reino da aparência» não vem disputar a realidade ao Estado, a sua constituição a partir da Natureza, e ao acaso de uma «centelha», submete-se afinal «às ideologias da legalidade de um absolutismo iluminado». (id.: 116) Transforma-se, digamos, num «reino da graciosidade».

Ora bem, na sua timidez manifesta, e mais conforme ao princípio da realidade, o que Welsch deseja – «uma cultura estética capaz de contribuir indirectamente para a cultura política» (id.: 26, eu sublinho) – teve existência discursiva e material de facto. A «cultura estética» foi «cultura política» na Inglaterra de Setecentos e Oitocentos como um discurso político do «corpo». Aí, a estética foi muito empiricamente «simpatia», senso moral ou senso íntimo, gosto, lei natural. Esta especificidade foi motivada pela emergência de uma «sociedade civil»:

o ónus da legitimação transferiu-se para o estabelecimento de uma sociedade civil autónoma na qual o policiamento moral da sociedade pelo estado foi considerado desnecessário para o estabelecimento de «trono, religião, felicidade e paz». (Caygill, 1989: 41)

Esta sociedade, que se considera capaz de autopoliciamento, é a mesma a quem repugna a intervenção do estado no comércio e na indústria; e que pode dar tanto mais peso político a essa repugnância quanto depende da indústria e do comércio a riqueza da nação. É de si uma harmonia, que não necessita de ser legislada ou prescrita de cima pela razão de estado. O «senso moral» permitiria discernir sensivelmente entre o que está bem e o que está mal, assim «lançando os fundamentos de uma coesão social mais profundamente  interiorizados do que alguma vez poderia conseguir uma mera totalidade racional»:

A moralidade vai-se assim decididamente esteticizando, e isto em dois sentidos relacionados entre si. Aproximou-se mais das fontes da sensibilidade, e diz respeito a uma virtude que, tal como o artefacto, é em si mesma um fim.  Em sociedade, a boa vida não se define nem pelo dever nem pela utilidade mas pela agradável realização da nossa natureza. (Eagleton, id.: 34)

Do mesmo modo, é a beleza muito de amar e admirar, por isso que tais sentimentos, considera Shaftesbury, são de extrema «vantagem para a afeição social e de muito auxílio à virtude, a qual em si mesma não é mais do que amar na sociedade a ordem e a beleza». (apud Eagleton, id.: 35) Esta esteticização do social, como já não legislado a priori, é um topos que, remontando a Shaftesbury, passa por muitos outros «moralistas», de Hutcheson a Burke e a Adam Smith. Estamos perante uma espécie de obsessão: «a teoria da sociedade civil», constata Caygill, «foi assombrada pelo gosto». (Caygill, id.: 37) Importa então fazer notar que o dictum schilleriano, segundo o qual o homem esteticizado, como ser interior e uno consigo, tem no estado apenas e somente uma fórmula da sua «legislação interior», se adequa bem melhor a esta tradição do que à tradição germânica, incluindo o pensamento expresso nas Cartas.

Manifestemos a Eagleton e a Caygill toda a deferência como experts na matéria, e passemos adiante.

Os «moralistas ingleses» e o seu discurso da autoprodução do social por uma «estética empírica» encontram alguns problemas que a estética de Schiller muito precisamente evita com a fórmula algo abstracta que os designa e derroga: a utilidade. Comércio, manufactura, mercadoria não podem não ser actividades sócio-estéticas; e a busca egoísta do lucro não pode não ser «altruísta», ou seja, «bela». Como se sabe, foi daqui que nasceu a ciência da economia política. Nasceu como filosofia moral. Mantendo-me nos domínios da deferência, quero apenas explorar a descrição que Adam Smith nos faz da sociedade como um todo estético.

Na Theory of Moral Sentiments, Smith considera a beleza que a utilidade lança sobre «todas as produções da arte». Por assim dizer, a sociabilidade começa com a nossa aprovação admirativa da riqueza dos grandes. Este movimento «simpatético» divisa um todo na garantia teleológica duma «beleza da acomodação». Convence esta da perfeita adequação do objecto à finalidade, como não poderia se em apreço não estivesse um todo assim contextualizado – um «palácio» e uma «economia». Citemos:

Encanta-nos então a beleza dessa acomodação que reina nos palácios e na economia dos grandes; e admiramos como cada coisa se acha adaptada para promover o seu conforto, para prevenir às suas necessidades, para gratificar o seu querer, e para divertir e entreter os seus desejos mais frívolos. Se considerarmos a satisfação real que todas estas coisas são capazes de fornecer por si mesmas e separadas da beleza desse arranjo destinado a promovê-las, não pode não tornar-se evidente que são, no mais alto grau, desprezíveis e triviais. Todavia, raramente as vemos a esta luz abstracta e filosófica. Confundimo-las naturalmente na nossa imaginação com a ordem, com o movimento regular e harmonioso do sistema, a máquina ou a economia por meio da qual foram produzidas. Os prazeres da riqueza e da grandeza, quando desta forma complexa considerados, ferem a nossa imaginação como algo de grande, belo e nobre, cuja posse compensa bem do trabalho e da ansiedade.

E é bom que a natureza se nos imponha dessa maneira. É esta decepção que dá origem e põe em perpétuo movimento a indústria da humanidade. (Smith, 1996: 248)

Assim, Smith é levado a considerar a existência de uma desadequação «moral»: o ser humano acha-se ferido na raiz pela inconveniência inaugural do objecto à finalidade que, todavia, é a responsável pela sua «indústria»; e, na condição de não «filosofarmos», só recuperamos da inconveniência com a «ficção moral» de uma aprovação concedida à beleza, ou seja, à «economia» dos ricos. Admirá-la é amar o «sistema».

Os ricos cumprem uma função de exemplaridade social que é de todo em todo «estética». Na contemplação admirativa e «desinteressada» não tanto da sua riqueza, como da «economia» dela, ficamos, como quem diz, isentos daquela insaciabilidade humana que fere a utilidade do artefacto.

Linhas adiante surgirá a celebérrima «mão invisível»: os ricos seleccionam para si apenas o raro e o melhor, pouco mais consomem do que o pobre, e dividem com este o produto de todos os melhoramentos, movidos apenas pelo seu egoísmo e rapacidade naturais: «São conduzidos por uma mão invisível a fazer uma distribuição dos necessários à vida quase idêntica à que teria sido feita, fora a terra repartida em porções iguais entre todos os seus habitantes; e assim, sem intenção e sem o saber, favoreceram o interesse da sociedade e forneceram os meios da multiplicação das espécies». (idem: 249)

Notamos aqui, pese a Smith, um deslizar da utilidade para o consumo (o qual de resto deve ser também autolegislado) que não pode não ser gravoso para esta «estética da «simpatia», e por isso que desde logo obriga a primeira a tomar vias indirectas e compensatórias, por um lado, e porque, por outro lado, obriga a «sensibilidade» a emigrar não apenas para artefactos, mas para artefactos especiais: grosso modo, as obras de arte, dispostas pelos ricos em sua bela «economia». Digamos que a «estética empírica», já menos paradigmática, se vê obrigada a transferir para esses objectos a sua exemplaridade, que é agora delegada. Refira-se que a Economia Política, e já com Smith, abandonará o plano do consumo e, com ele, também a «filosofia moral».

Ora bem (e muita expertise ficará em suposto), a emigração da estética da sociedade para a arte seguirá aquele sentido que conhecemos como um confronto, na Europa de Oitocentos excepcionalmente bem marcado pelos anos ao redor de 40. De um lado, a arte, lugar legítimo do estético, e do outro a sociedade dominada pelo «monstro frio» da utilidade. (vd. o prefácio à Mlle de Maupin). Algo se destaca do «objecto» como «forma». Implica isto o que Miguel Tamen descreve como «a alteração do estatuto da noção de “forma”» – o seu novo funcionamento tropológico (de natureza prosopopeica):

(…) a forma não é apenas um substituto do homem, mesmo que reconciliado. Como escreve Schiller, a forma é aquilo através do quê o homem se realiza na sua totalidade, o instrumento da schöne Mitteilung. Não se trata portanto apenas da postulação (que tanta importância viria a ter e tem ainda) de uma linguagem das formas, que é por excelência a linguagem das soluções estéticas, como também da postulação de que a linguagem schöne e portanto do todo é necessariamente uma linguagem formal. (Tamen, 1991: 124)

Mais proximamente, implica isto que os «artefactos dos ricos» venham a ser derrogados por Morris como «French and Fine»; que os investimentos sociais em estética venham a ser desprezados pelos pré-rafaelitas como «higiene» – e que estes se proponham remover esse «lixo» com a «linha resistente e flexível da rectidão». (cf. Rose, 1992) Nos dois casos, trata-se de promover forma, forma simples, e forma anacrónica. O inventor das Arts & Crafts esperava, por exemplo, que a arte pudesse repousar do «afã de escravo que arrasta o carro do Comércio», reintegrando às suas «economias» a utilidade enquanto forma (simples senão ascética, autêntica senão camponesa). (cf. Morris, 1983: 85, 98 e passim)

Corrigindo algum tanto Miguel Tamen, tematiza-se a descoberta das artes decorativas, e inventa-se a decoratividade da arte até à «pura forma», ou seja, até à ausência de «assunto»; inventam-se não só «objectos de estudo que não são senão alegorias do formal» (Tamen, id.: ibid.) como artes que não são senão alegorias educativas do formal: arquitectura de Loos à Bahaus e ao international style modernista; dos expressionistas de Greenberg à arte pobre, etc., etc., etc…. A arte pela forma opõe-se à mercadoria e à utilidade, tentando desviar para a felicidade a riqueza das nações. Do mesmo modo, pelos fins de Oitocentos, a sociedade passa a ser prioritariamente percebida como um formigueiro a precisar da «legislação externa» do Estado. E já antes Ruskin procedera a uma curiosa reinflexão da economia (política) para a moral (filosófica). Destemidamente declarará que a Economia Política não é uma ciência, posto que se nos apresente como tal; falta-lhe o que omitiu do seu plano de estudos: o consumo. (Ruskin, 1866: 60) Os ricos deveriam comprar forma, ou seja, forma imperfeita, ou seja forma não-maquinal. Os ricos deveriam ser «góticos»: promover uma sociedade «estética» onde todo o artefacto, sendo «empírico» e inexacto, é resgatado pelo harmonioso todo que a si o integra (como uma catedral, não menos empiricamente produzida). Não deveríamos exultar, como demasiadas vezes fizemos, com os moldes e os polidos perfeitos da madeira e do aço temperado. São signos de escravidão em Inglaterra, mil vezes mais amarga e degradante do que a do Africano ou a do Hilota. (id., 1983: 55) Demos, enfim, um nome falso à grande invenção civilizada da divisão do trabalho, por isso que são os homens a ser divididos e não o trabalho – em segmentos de homem, e fragmentos de vida. (id.: 57)

Dispenso-me de referir evoluções posteriores, como o projecto fascista de esteticização da política.

3. A lei de Stanley Jevons.

Voltemos agora a Smith e à orgânica social, para passarmos ao Oliveira Martins de A Inglaterra de Hoje. O que àquele amiúde permite a descrição desse organismo, como se diz, delicado, é a «máquina»; e a mesma descrição brota de uma perspectiva «desinteressada» (agora esteticamente interessada), por isso que seria feita à luz da filosofia e da abstracção:

Quando contemplamos [a sociedade humana] a uma certa luz abstracta e filosófica, ela aparece como uma grande, imensa máquina, cujos movimentos regulares e harmoniosos produzem milhares de agradáveis efeitos. Como noutra máquina qualquer, bela e nobre, que seja produto da arte humana, tudo o que tenda a tornar os seus movimentos mais fáceis e suaves, extrairá beleza desse efeito, e, pelo contrário, desagradará tudo o que tenda a obstruí-los: assim, a virtude, a qual é o fino polimento das rodas da sociedade, necessariamente agradará: enquanto o vício, que, como a ferrugem vil, as emperrará e as fará ranger umas contra as outras, é necessariamente ofensivo. (apud Eagleton, id.: 37)

Em Martins, viajante em Londres na última década do século, oscila a máquina social entre o grotesco e o sublime terrível, sem ganhos morais que se vejam. A máquina produz trabalho útil, mas também usura: «as suas cinzas e desperdícios são o milhão de desgraçados que os condensadores resfolegam constantemente no mar imenso e negro da miséria, da bebedeira e do crime. E os seus fracassos são os acidentes e as perdas que todos os dias ocorrem». (Martins, id.. 42-3)

A ventura é feita de artifícios e esteriliza o génio de um povo. Eis aqui a «economia» dos ricos, exposta de forma a não suscitar admiração aprovativa: «as banheiras complicadas, as retretes sábias, as cozinhas que são laboratórios, os vestuários arrevesados; os lavatórios vergando ao peso das escovas, navalhas, tesouras, espelhos, escovas, perfumes, cremes; os armários carregados de botas de infinitas espécies, para cada um dos momentos da existência; as bengalas várias para cada género de passeio; os sacos, as malas, os estojos, os waterproofs, as mantas, os rolos, os binóculos». (id.: 75-6)

A «estética empírica» manifestamente adoeceu em esteticização (e a parataxe manifesta a figura da proliferação cancerosa a que Martins muito recorre para caracterizar a sociedade inglesa).

Transferindo a «lei de Stanley Jevons» para estes domínios, dir-nos-á ele de um spleen (uma anestesia) que necessariamente advém de colocarmos o desejo em objectos possuíveis, sejam eles mulher ou milhão. Não tardaríamos, com a posse (ou, justamente, tardaríamos) a reconhecermo-nos vítimas de uma ficção. Assim, crematismo e doença cultural andam a compas«o mesmo que sucede com o gozo, sucede com o capital, segundo vemos, e é explicado pela lei de Stanely Jevons». (id.: 266)

A explicação é do ascetismo mais elevado; e produz-se no contexto da mais global das regressões: a do próprio texto de Oliveira Martins às ficções de «estética empírica», fundadoras da Economia Política. A Inglaterra de Hoje é um tratado de economia política como filosofia moral, hoje só possível ao discurso eleitoral dos economistas e ao autor das aventuras de Dick Shade, de quem se lerão com proveito e por exemplo «Os 12 Trabalhos de Dick Shade». (Neves, 1997) A saciedade resulta do desacordo entre o desejo e o uso que, em Adam Smith, a um tempo põe em andamento a máquina económica e a sua ciência; mas a saciedade vem argumentar-nos a extinção do desejo no uso, e a final paragem da máquina, aliás, em Martins-Jevons de novo limitada pela escassez.

E eis-nos de novo prontos a regressar a uma sociedade contida pela norma económica (i. e., pela virtude), que talvez se deva ver como Usbek vê o serralho. Na mesma perspectiva «estética»; na mesma perspectiva moral:

Está preparad[o] mais para a saúde que para os prazeres: é uma vida lisa, que não estraga; tudo ali sente os efeitos da subordinação e do dever: os próprios prazeres ali são graves, e as alegrias severas; e quase nunca são apreciadas sem que seja como sinais de autoridade e de dependência. (Montesquieu, 1989: 69)

A «lei de Stanley Jevons» é, como vimos em Welsch, aquela lei fundamental da estética que condena a presente epidemia de melhoramentos:

A esteticização total resulta no seu oposto. Quando tudo se torna estético, nada o é já; a excitação contínua conduz à indiferença; a esteticização cai na anestesia. Existem, pois, razões de natureza estética que falam a favor da interrupção da espiral esteticizante. São necessárias zonas esteticamente neutras no interior da esteticização. (Welsch, id.: 25)

Devo acrescentar agora o que o leitor descobriu à sua conta e ainda não esqueceu. Welsch encontra a estética na arte, com uma lição por acréscimo: a da moderna diversificação da arte. Não se podem aplicar ao juízo de uma obra critérios que não pertencem à sua concepção de arte; nem a todas as obras um só conjunto de critérios. É metodologia de filisteu. A arte torna-se então o lugar onde a estética faz o que lhe compete: descobrir uma síntese antecipada do social e uma lição. Diz Welsch: «O que é cada vez mais uma auto-evidência no campo da arte deveria ser também elevado a um padrão social». (id.. ibid.) Esta auto-evidência é, como já vimos, a da pluralidade de objectos, critérios e valores; e ela deve transferir-se para a sociedade como uma lição de sensibilidade à diferença.

A arte é o repositório de uma verdade estética. A moderna separação da arte e da sociedade é tão paradoxal que a socialidade orgânica desertou a sociedade e está contida na arte enquanto alegoria educativa do formal. Eis, mutatis mutandis, aquilo a que de Man chamou a ideologia estética. (de Man, 1986) Ao mesmo tempo, permanece a ideia (e o facto) da irrelevância social da arte moderna, aliás, como quer Arthur C. Danto, filosoficamente assujeitada, i. e., investigando a sua essência por sua própria conta. (Danto, 1986)

4. Conclusão.

«Toda» a estética de matriz europeia e continental, como o corrobora o texto de Welsch, tem a ver com esta história da modernidade. De resto, não deve ser por outros motivos que a língua da estética é o valorês.

Rapidamente, a exemplaridade dessa história, balizada por nomes de estudiosos da estética ou de disciplinas afins. O belo foi um dom objectivo do criado que a nossa razão apreende: proporção, regularidade, consenso, unum multum, pondus, mensura… (Morpurgo-Tagliabue, 19932: 14); passaria depois para o domínio do subjectivo com Kant (1992). Mais tarde, Adorno reivindicaria o Belo natural kantiano para a Arte, (1982) e assistir-se-ia, por fim, à recuperação do sublime kantiano e burkiano, por assim dizer como alegoria formal da oposição ao social. Esta, a título de traço fundamental da arte moderna, acha-se hoje em dia extremamente difundida entre o público. (Lyotard, 1989)

Em área norte-americana, a emigração da estética para a arte talvez se possa contar de outro modo. Teria tido, passe a muita imprecisão, o seu equivalente de uma «estética empírica» no pragmatismo de Dewey, de que é aliás o objecto mais exemplar, por isso que os «artefactos» são colocados nos horizontes sociais do «sentimento»; (cf. Alexander, 1987) e a emigração deu origem às discutidas e influentes teorias de Danto e Dickie, tendo o segundo postulado a existência de um mundo da arte que o primeiro tinha apenas como um ambiente de teoria necessário à interpretação constitutiva de uma obra de arte enquanto tal. (Danto, 1981, 1986; Dickie, 1974, 1984). Com Nelson Goodman, termos uma teoria global das linguagens da arte, muito caracteristicamente assestada para a resposta à pergunta «quando é arte?». (Goodman, 19762)

Pós Dewey, a reflexão dos grandes teóricos abandonou aquela crítica (da) relevância social da estética. Encontrámo-la em críticos como Greenberg; e reencontramo-la nalguma crítica aparentada aos estudos literários e culturais, agora redefinidos pela Teoria grosso modo saída do pós-estruturalismo. Todavia, também aqui é Welsch um caso de muito interesse. Não parece, com efeito, que esta crítica (e aquela teoria muito menos) se proponha questionar a «economia política» das nossas sociedades; do mesmo modo, o nosso autor-cicerone aceitou (e, ao que parece, não pode não aceitar) aquela inevitabilidade «económica» da esteticização que produz a realidade por simulação, assim descobrindo a infinita maleabilidade da sua «nudez real». Encerremos aqui – com esta esteticização do processo produtivo, tentada pela «filosofia moral» britânica, desistida pelo Adão da economia política, de novo desejada por esteticistas como Ruskin, e agora inesperadamente acontecida. A estética ganha uma relevância social que não está em nosso poder desejar ou não desejar:

Deste modo, já não pertence a estética meramente à super-estrutura, mas à base. Pode ver-se que a corrente esteticização não é meramente coisa de beaux esprits, ou do pós-moderno devaneio do entretenimento, ou ainda de superficiais estratégias económicas, mas que resulta de mudanças tecnológicas fundamentais, dos factos duros do processo produtivo. (Welsch, id.: 5)

Bibliografia:

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