Neologismo proposto pelo formalista russo Viktor Chklovski em “Iskusstvo kak priem” (“A arte como processo”), ensaio publicado na segunda edição da Poetika (1917). O conceito nasce como oposição à ideia defendida por Aleksander Potebnia de que “as imagens não têm outra função senão permitir agrupar objectos e acções heterogéneas e explicar o desconhecido pelo conhecido” (in “A arte como processo”, por Viktor Chklovski, in Teoria da Literatura I: Textos dos Formalistas Russos apresentados por Tzvetan Todorov, Edições 70, Lisboa, 1999, p.75). Para Chklovski, o contrário é que é válido: “A finalidade da arte é dar uma sensação do objecto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o processo de singularização [ostraniene] dos objectos e o processo que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O acto de percepção em arte é um fim em si e deve ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objecto, aquilo que já se ‘tornou’ não interessa à arte.” (ibid., p.82). O estranhamento seria então esse efeito especial criado pela obra de arte literária para nos distanciar (ou estranhar) em relação ao modo comum como apreendemos o mundo, o que nos permitiria entrar numa dimensão nova, só visível pelo olhar estético ou artístico.
O termo é de difícil tradução: a palavra original, ostraniene, não existe na língua russa (quer como substantivo, ostraniene, quer como verbo, ostranit’; a palavra russa para “estranhar” é otstranit). Uma síntese dos problemas etimológicos que resultam deste neologismo pode ser encontrada na introdução de Gerald L. Burns a Theory of Prose (Dalkey Archive Press, Illinois, 1998). A tradução quer para português quer para inglês tem divergido entre singularização ou desfamiliarização (defamiliarization) e estranhamento (estrangement). No texto citado de Chklovski, a tradutora portuguesa (Isabel Pascoal) opta por “singularização”, que parece a mais limitada das traduções possíveis. De forma pertinente, Burns considera o termo desfamiliarização (introduzido por Lee T. Lemon e Marion J. Reis em Russian Formalist Criticism, 1965) incorrecto, porque a acepção que Chklovski pretendia era precisamente a de um efeito contrário a uma desfamiliarização: “on the contrary, it proceeds from the cognitively known (the language of science), the rules and formulas that arise from a search for an economy of mental effort, to the familiarity known, that is, to real knowledge that expands and ‘complicates’ our perceptual process in rich use of metaphors, similes and a host of other figures of speech.” (ibid., p.xix). Burns apresenta como tradução alternativa para a língua inglesa o neologismo enstrangement, o que fica igualmente intraduzível para português, para além do critério discutível de traduzir um neologismo por outro. A justificação que apresenta para a opção por “enstrangement” parece-nos aceitável para a tradução portuguesa por “estranhamento”.
O termo de Chklovski, próximo do conceito de desautomatização proposto por Mukarovskýy e também não distante do conceito de efeito de alienação (Verfremdungs-Effekt), que mais tarde Brecht vai propor para o texto dramático, não é totalmente novo, pois é conhecida posição idêntica doutrinada já pelos poetas românticos ingleses: por exemplo, Coleridge, em Biographia Literaria (1817), faz o elogio da poesia de Wordsworth chamando a atenção para uma capacidade especial do poeta enquanto criador único de um discurso único, capaz de “to combine the child’s sense of wonder and novelty with the appearances, which every day for perhaps forty years had rendered familiar” (1817/1983, i.81). Shelley segue pelo mesmo caminho doutrinário, acreditando que a poesia “purges from our inward sight the film of familiarity which obscures from us the wonder of our being” (The Defense of Poetry 1840). Em qualquer dos casos, o estranhamento é, então, essa forma singular de ver e apreender o mundo e aquilo que o constitui, visão que a literatura de certa forma alarga – ao nível da linguagem, porque a torna difícil e hermética; ao nível do conteúdo, porque desafia e transforma as ideias pré-concebidas sobre o mundo; e ao nível das formas literárias, porque estranha as convenções literárias, introduzindo novas formas de expressão.
Flávio Kothe: Ostranenie (1977); R. H. Stacy: Defamiliarization in language and literature (1977); Victor Erlich: Russian Formalism: History, Doctrine (4ªed., 1980).
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