Select Page
A B C D É F G H Í J K L M N O P Q R S T Ü V W Z

Qualquer análise geralmente encetada dos fenómenos culturais é escorada por imagens cristalizadas, por produtos acabados, os quais, permitindo embora ao observador esboçar mentalmente as coerências da realidade social, toldam‑lhe a percepção de todo um conjunto de intrincados processos dinâmicos dificilmente enclausuráveis nos registos materiais do período em que ocorrem. Raymond Williams, teórico dos estudos culturais, alertara-nos para tal facto em The Long Revolution (1961) e posteriormente em Marxism and Literature (1977) viria a dedicar‑lhe todo um capítulo.

O raciocínio do Autor constrói‑se em termos dicotómicos, procurando estabelecer uma cisão entre aquilo que considera ser a esfera do social—ou seja, as instituições, as relações e as formações cujos contornos o passado já definiu e que reconhecemos na sua forma acabada, fixa, generalizada—e a da experiência do presente, fluída nas suas inconstâncias, na qual os objectos culturais, ainda despidos da solidez imutável com que as gerações futuras os julgarão, são vividos em termos do domínio subjectivo e pessoal. Baseando‑se numa leitura de Marx, Williams crê que constitui um erro básico a tentação de ler o social, em particular uma determinada ideologia ou cosmovisão, como algo redutível a formas fixas ou substâncias. Por esse motivo, o Autor propõe o conceito em análise, de maneira a melhor compreender o processo vivencial imediato.

É no presente, aqui entendido como algo mais do que o simples instante temporal, que se dilui a finitude das formas, estando o carácter perfeito ou explícito destas eternamente adiado. No centro da nossa experiência reside uma estrutura de sensibilidade, um tecido nevrálgico percorrido pelos impulsos intangíveis da cultura em que habitamos. Nessa estrutura, o social não passa de uma imagem em construção, ainda por definir, sendo que não se encontram articulados de modo definitivo os elementos que a compõem. Isso não significa, todavia, que se verifique um divórcio entre o vivido e o pensado, entre a consciência prática e a oficial, entre a estrutura de sensibilidade e o conhecimento sistemático da realidade social. Pelo contrário, a relação revela‑se complexa e em permanente tensão, sendo possível que esta se traduza ora numa tentativa de interpretação do real e de comparação dos seus elementos discretos (aproximando-nos das formas fixas), ora numa inquietude que por vezes não é passível de verbalização (conduzindo‑nos ao intuitivo e ao afectivo).

Williams sustenta ainda que essa estrutura, impossível de ser transmitida de uma geração a outra, não se esgota na interioridade: aflora igualmente nos produtos culturais de uma dada época e deixa a sua marca indelével nos modelos e padrões que nela são valorizados. O simples trajar, os hábitos e as atitudes, os edifícios, os artefactos, a língua e os textos em que um período histórico se materializa estão impregnados de tal sensibilidade. Os resíduos materiais da estrutura de sensibilidade permanecem incrustados nas obras de arte e literárias, objectos privilegiados para a análise da cultura de um dado período. Não obstante, como admite o próprio Autor, ao observador distante no tempo não é facultada senão uma visão lacunar e bastante imprecisa dessa estrutura. Já em The Analysis of Culture, capítulo introdutório de The Long Revolution, Williams considerara três níveis distintos de cultura—a vivida, a registada e a selectiva—que explicavam, em grande medida, uma tal limitação. Somente a experiência imediata permite apreender o “resultado vivo de todos os elementos da organização geral”, enquanto que os registos de uma determinada cultura constituem dela um mero resquício. Tal facto constitui, é certo, uma barreira intransponível a qualquer tentativa de recriação fidedigna de um universo histórico definido, mas deve igualmente ser encarado como um desafio que se coloca a todo o estudioso empenhado em atingir um olhar global sobre o período em causa.

O Autor viria a ilustrar a aplicação deste conceito na análise da evolução da noção de pobreza na literatura britânica ao longo do século XIX, explicando cada uma das fases em função da sucessão das estruturas de sensibilidade. Assim, se em certas obras literárias a destituição e a indigência eram no início da época vitoriana consideradas como desvio social ou fruto do insucesso, só mais tarde é que uma nova ideologia e uma nova consciência prática tentariam explicar o facto em termos da própria ordem social.

O exemplo fornecido por Williams aponta dois percursos metodológicos complementares. Por um lado, é possível partir‑se de vários textos contemporâneos a fim de se verificar como se manifesta a maneira de encarar um qualquer fenómeno social enquanto marca distintiva de uma dada sensibilidade. Por outro, pode‑se atentar nas metamorfoses simbólicas a que o próprio fenómeno se sujeita ao longo de várias décadas para entender o processo pelo qual se encadeiam sucessivas estruturas de sensibilidade e assim melhor definir a sua natureza histórica e generativa. Isto não significa que uma única estrutura caracterize toda uma geração. A emergência e a evolução das subculturas juvenis na Grã‑Bretanha do pós‑guerra, por exemplo, comprovam a profusão de estruturas de sensibilidade, por vezes conflituosas entre si, coexistentes no seio de um mesmo grupo etário.

Em certos aspectos, a proposta do Autor britânico assemelha‑se ao conceito de Zeitgeist, inaugurado por Herder em 1769 e que traduz igualmente a necessidade de insistência no presente enquanto instância modeladora do carácter de qualquer obra de arte. Todavia, quaisquer outras aproximações entre os dois autores pecariam por excesso. Williams, ao operar com um vasto rol de preocupações no campo da teoria marxista, soube definir metodologicamente o campo de aplicação deste valioso instrumento de análise cultural.

{bibliografia}

Williams, Raymond: Marxism and Literature (1977); idem, The Long Revolution (1961).