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Estruturalismo Checo”, “Escola de Praga” ou “Círculo (Linguístico) de Praga” designa um movimento de estudo da linguagem e da literatura que tem (convencionalmente) o seu início em 1926. Num primeiro momento, os textos dos autores que irão configurar o Estruturalismo Checo surgem pela dinâmica intelectual criada nos contactos intensos entre investigadores russos e checos durante os anos Vinte e Trinta, e onde a figura de R. Jakobson desempenhou um papel extraordinariamente relevante. A insistência do Formalismo Russo* (ou do Círculo Linguístico de Moscovo) na aliança indissolúvel da linguística e da poética é enriquecida em Praga pela adopção de uma perspectiva semiótica geral para o estudo científico da literatura.

Os membros da Escola de Praga partilham com os formalistas russos a assunção de que a literatura é um fenómeno específico de linguagem. Contudo, a sua consideração dos fenómenos linguísticos não apresenta esses fenómenos como aspectos isolados mas como partes de um sistema. Este, por sua vez, deveria ser estudado no âmbito de um contexto temporal, espacial e social mais vasto. A insistência na dependência mútua de todos os elementos da linguagem, ou na ideia de que nenhum fenómeno numa estrutura de linguagem pode ser devidamente avaliado se for isolado dessa mesma estrutura de que fazem parte, traça o perfil estrutural do movimento, e com ele também inevitavelmente um método de compreensão da literatura não como facto isolado, mas como parte de um todo mais vasto.

Esta abordagem estrutural é complementada por uma abordagem funcional da linguagem e da literatura. Tal como as partes individuais de uma língua dependem umas das outras, assim cada elemento dessa língua existe somente em articulação com condições extra-linguísticas específicas, e cumpre uma determinada função consoante essas condições. Por exemplo, no Manifesto redigido por Roman Jakobson, Vilém Mathesius, Bohuslav Havránek, Jan Mukarovský e Bohumil Trnka, apresentado em 1929 ao Primeiro Congresso dos Filólogos Eslavos em Praga, é colocada uma ênfase muito particular na função dos idiomas individuais da linguagem num contexto social e nas suas relações com a realidade extra-linguística (cf. Marta K. Johnson (org.): 1-31). Num outro texto importante publicado em 1935, intitulado Em Jeito de Introdução e da autoria (da quase totalidade) dos mesmos autores do Manifesto, aquela ênfase é deslocada para as questões levantadas pela natureza verbal do texto literário: “Queremos expressar a nossa convicção de que a análise da linguagem sem atenção à poesia é tão incompleta como uma análise da poesia sem atenção às palavras. (…) Qualquer estudo da linguagem poética e da poesia implica, por definição, a consideração da sociedade e da sua organização. O signo, pela sua essência, é um fenómeno social.(…) Se bem que uma obra de arte seja um mundo em si mesmo (ou talvez mesmo porque o é tão somente), ela não pode ser entendida e avaliada de qualquer outro modo que não seja na sua relação com o sistema de valores válido num colectivo específico” (in Marta K. Johnson (org.): 39-40).

Esta relação semiótica que a obra literária estabelece com um sistema de valores operativo num determinado colectivo vai conduzir tanto Felix Vodicka como Jan Mukarovský não só a negar que o valor estético tenha uma validade absoluta, mas também a articular os conceitos de função estética e norma estética com a própria mutabilidade da recepção do texto literário: “A mutabilidade [da recepção ou «da compreensão estética de uma obra»] não tem a sua origem unicamente no receptor, mas também na própria natureza da obra de arte. A obra de arte tem as propriedades de uma estrutura, mas é, ao mesmo tempo, um conjunto de signos cuja nitidez comunicativa é tão desfeita pela função estética que pode evocar muitas associações semânticas diferentes. Portanto, a recepção de uma obra conduz a várias interpretações estéticas e semânticas, sendo, em princípio, cada uma delas válida e convincente, se bem que, é claro, em certa medida limitada temporalmente, socialmente e mesmo individualmente”(F. Vodicka, 1941, in Peter Steiner (org.), 1982: 109).

Fica claro, portanto, que um dos aspectos que mais substancialmente distingue o quadro teórico checo da conceptualização estruturalista dos formalistas russos reside na preocupação exaustiva com os domínios sociais mais vastos da história literária. Quando comparada com o Formalismo Russo, a visão estruturalista checa acerca da obra literária decorre de uma noção mais dinâmica de estrutura, a qual não se resume a uma mera realidade empírica mas é, antes, um modelo fenomenológico implantado na consciência de uma colectividade. Consequentemente, a estrutura literária sofre mudanças importantes de todas as vezes que se operam mudanças significativas na consciência social.

Num texto escrito em 1944, este problema é equacionado lapidarmente por Jan Mukarovský, o mais brilhante continuador do pensamento dos formalistas russos e um dos patronos incontestados (juntamente com Felix Vodicka) da estética da recepção alemã –e ainda, como é amplamente reconhecido, mas não muitas vezes divulgado, uma das figuras tutelares do inconsciente teórico do estruturalismo francês (veja-se J.P.Faye, 1972, e J. G. Merquior, 1986): “A unidade interna do estruturalismo na teoria literária assenta na sua concepção de estrutura –isto é, um conjunto de forças equilibrando-se mutuamente em tensões dialécticas– como sendo não meramente a construção de uma única obra poética, mas também as relações da obra com tudo aquilo que a rodeia e com que ela entra em contacto, na medida em que para o estruturalismo uma sequência de obras no tempo surge como sendo uma estrutura em movimento. Os elos da literatura com as outras artes –e mesmo com os domínios mais distantes da cultura como a ciência, a religião, a política, etc.– e a relação da literatura com a sociedade são compreendidos como uma tensão recíproca entre estruturas. A individualidade de um poeta é uma estrutura; e o grupo de poetas que vivem numa determinada época constitui também uma estrutura na qual indivíduos representam partes dinâmicas cuja eficácia está condicionada não só pelas suas disposições individuais (o grau de talento, propensões especiais), mas também, até certo ponto, pela relação de cada poeta com outros e com o grupo como um todo. Na verdade, para o estruturalismo não há nenhuma questão de teoria literária que esteja para além da sua compreensão integral e ao mesmo tempo dialéctica – e é aqui que reside a sua unidade interna” (J. Mukarovský, in L. Matejka (org.), 1978: 456).

Nesta última passagem encontramos os embriões do que, por exemplo, irá ser a «descoberta» das posturas metodológicas goldmannianas dos anos Sessenta respeitantes ao seu «estruturalismo genético», ao seu conceito de «sujeito transindividual» e ao seu entendimento do carácter «estruturado» de todo o comportamento intelectual, afectivo ou prático desse sujeito –tal como também, aliás, os termos do conhecido debate entre R. Barthes e R. Picard no quadro da chamada «New Criticism». Mas é num texto de 1946 que Mukarovský particulariza a sua concepção de estrutura. Este autor começa por reconhecer que a teoria estruturalista está vinculada à linguística, designadamente através da fonologia. Terá sido o desenvolvimento desta disciplina que permitiu investigar os aspectos fónicos da obra literária, bem como o estudo das funções linguísticas. Este facto não só ofereceu novas possibilidades ao estudo da estilística da linguagem poética, mas também tornou manifesto o carácter semiológico da língua, possibilitando, ao mesmo tempo, a concepção da obra artística como signo. Seguidamente, Mukarovský expande ao longo do seu texto o conceito de estrutura nos estudos literários de um modo tão importante e produtivo que merecia uma longa transcrição integral. Na impossibilidade dessa transcrição apresento alguns remates mais significativos: “No conceito de estrutura artística destacamos um traço mais especial do que a mera correlação do conjunto e das partes.(…) Segundo a nossa concepção, só pode ser considerado como estrutura aquele conjunto de componentes cujo equilíbrio interno se altera e se remodela continuamente, e cuja unidade se manifesta como um conjunto de contradições dialécticas. (…) Tem um carácter de estrutura não só a obra artística particular e a evolução de cada arte como conjunto, mas também as relações mútuas entre as artes. Ao julgar tudo isto como estruturas (isto é, como um equilíbrio instável de relações) não estamos em contradição com a realidade nem tão pouco limitamos a variedade de possibilidades de investigação, mas ao contrário indicamos a sua variedade possível” (J. Mukarovský, 1977: 157-161).

As posições teóricas do Estruturalismo Checo, e muito particularmente as de Felix Vodicka e Jan Mukarovský, constituem ainda hoje instrumentos úteis para uma compreensão dinâmica do processo literário. Contudo, os textos mais relevantes de J. Mukarovský são os que datam das décadas de Trinta e Quarenta ou, conforme assinala René Wellek (R. Wellek, 1970), um outro ilustre teórico emergente do Estruturalismo Checo, os textos verdadeiramente produtivos são aqueles que foram escritos até 1948-1950, que é a data da cega “conversão” de Mukarovský a um Marxismo e a uma ortodoxia comunista que, infelizmente, a partir daí o tolheram e o paralisaram intelectualmente.

Bibliografia:

J.G.Merquior, From Prague to Paris, London, 1986; Jan Mukarovský, Escritos de Estética e Semiótica del Arte; Jordi Lovet (org.), Barcelona, 1977; Jean-Pierre Faye (org.), Prague, Poésie, Front Gauche, Change 10, Paris, 1972; Josef Vachek, (a) A Prague School Reader in Linguistics, Bloomington, 1964; (b) The Linguistic School of Prague: An Introduction to its Theory and Practice, Bloomington, 1966; Ladislav Matejka (org.), Sound, Sign and Meaning. Quinquagenary of the Prague Linguistic Circle, Ann Arbor, 1978; Ladislav Matejka & Irwin Titunik (orgs.), Semiotics of Art. Prague School Contributions, Cambridge (Mass.), 1977; Marta K. Johnson (org.), Recycling the Prague Linguistic Circle, Ann Arbor, 1978; Paul Garvin, A Prague School Reader on Esthetics, Literary Structure, and Style, Washington, 1964; Peter Steiner (org.), The Prague School. Selected Writings, 1929-1946, Austin, 1982; René Wellek: “The Literary Theory and Aesthetics of the Prague School”, in Discriminations: Further Concepts of Criticism, New Haven, 1970.