Os Estudos de Literatura e Cinema são um ramo da área de investigação da Literatura e Outras Artes, área esta que, por seu turno, entronca num campo disciplinar mais vasto denominado Literatura Comparada. É na segunda metade do séc. XX, nomeadamente a partir da década de 60, que começam a surgir os primeiros trabalhos sobre análise fílmica e teoria do cinema, os quais iriam influenciar profundamente a aproximação entre este último e a literatura, pois, demonstraram que o cinema pode, se assim o desejar, privilegiar a narratividade e que muitas das estruturas narrativas têm idêntico funcionamento nos dois sistemas semióticos em questão, o cinematográfico e o literário.
A teoria sobre o cinema, independentemente do ponto de vista adoptado – semiológico (Christian Metz, Roger Odin, François Jost, etc.), estrutural (Raymond Bellour, Francis Vanoye, André Gaudreault, François Jost, etc.) ou narratológico (Seymour Chatman, Jacques Aumont, Michel Marie, Alain Bergala, Marc Vernet, etc.) –, muito cedo confirmou a possibilidade de aproximação entre o texto narrativo fílmico e o narrativo literário, em virtude da utilização idêntica que ambos fazem da veiculação de uma história através de um discurso peculiar a cada texto, discurso este manipulado por uma entidade narradora que combina personagens, as quais protagonizam acções, situando-se num determinado espaço e num dado momento na linha do tempo diegético.
Não interessará todo o cinema narrativo; poderá, eventualmente, ser mais interessante o cinema de natureza ficcional, de preferência aquele que mostra e patenteia o seu modo de veicular a narratividade, ou seja, o cinema expressivo, o qual coloca a tónica na forma como problematiza e exprime a realidade. Terão também maior interesse o cinema que com a literatura mantenha algum tipo de relação intertextual, bem como os textos de valor estético reconhecido e sancionado pelo cânone, ainda que esta última questão seja bastante polémica.
Além de características textuais semelhantes, há muito que o cinema e a literatura ensaiam relações de fascínio mútuo. Frequentemente o cinema se constrói sobre a literatura, adaptando vários géneros literários, provindos, sobretudo, das formas naturais da literatura narrativa e dramática. Para demonstrar o forte ascendente da literatura em relação ao cinema, e a título ilustrativo, talvez seja lícito evocar aqui uma teoria limite das relações entre estes dois últimos: a que defende a existência de uma essência do cinema, de um pré-cinema, de um cinema avant la lettre, incrustrado em determinados textos literários narrativos, anteriores à forma de expressão cinematográfica, e que teriam como especificidade o facto de os escritores ordenarem o relato em função da incidência do olhar do narrador, da sua ocularização da cena a narrar. Assim, para os defensores desta teoria, a essência do modo narrativo cinematográfico existiria já em potencial em determinados textos narrativos literários e a descoberta do cinema, na década de 90 do séc. XIX, mais não foi que a descoberta da tecnologia que permitiu concretizar o modo narrativo que enfatiza a visualização perceptiva da imagem de uma cena (cf. Jorge Urrutia, 1996). Uma das vertentes dos Estudos de Literatura e Cinema poderia analisar o interesse deste por aquela e apurar as razões sociológicas de tal preferência notória. Também está aqui subjacente uma questão de recepção do texto literário e as repercussões sobre a recepção posterior do texto fílmico, logo, esta problemática poderia ser encarada sob a perspectiva da estética da recepção.
Porém, é também provável que, por sua vez, o texto narrativo literário se tenha vindo a deixar contaminar por técnicas narrativas próprias do cinema, como tentaram demonstrar Claude-Edmonde Magny, em L’âge du roman américan, e Dorine Daisy de Cerqueira, em Neo-Realismo, a montagem cinematográfica no romance, e como deixa entrever Abílio Hernandez Cardoso no seu artigo “A letra e a imagem: o ensino da literatura e o cinema”. Poderia também resultar interessante a análise sociológica e ideológica dos motivos desta contaminação, provavelmente relacionados, por um lado, com o impacto visual de determinadas imagens e o seu poder sugestivo, por outro lado, com a facilidade comunicativa do cinema.
Além destas influências / preferências / contaminações mais ou menos indirectas, surgem, de quando em vez, intromissões explícitas do cinematográfico na literatura ou vice-versa, fazendo, por vezes, o cinema a sublimação declarada do ou de um escritor em particular e reflectindo, frequentemente, os escritores sobre o cinema ou sobre um filme nos seus textos. Seria, com certeza, produtivo apurar as razões deste indisfarçável fascínio mútuo.
Por último, é, ainda, premente pensar na singular situação gerada pela cooperação entre escritor (que substitui o argumentista) e realizador na co-criação do artefacto fílmico, como frequentemente acontece em certos filmes, sobretudo, do cinema europeu culto. Entre nós, esta cooperação é habitual no caso de Agustina Bessa-Luís e Manoel de Oliveira. A qualidade do texto literário parece, assim, inspirar e condicionar a qualidade estética do filme.
Quando se faz um filme, na maioria dos casos, o realizador parte para a sua realização tendo como base um argumento escrito original ou, muito frequentemente, adaptado de um texto literário – interessa, em particular, aos estudos comparados esta última categoria -, que contém as linhas gerais da história e os diálogos. Quando estamos perante uma adaptação de um texto literário, o produto final resulta da combinação peculiar que o realizador opera a vários níveis – em função da sua capacidade estética e do seu orçamento – desde a motivação da escolha e as opções que faz ao nível da adaptação, até ao tipo de realização e montagem, ao elenco de actores e à selecção da equipa técnica auxiliar. O filme resulta, assim, muitas vezes, da realização cinematográfica pessoal de um determinado texto literário que esteve na sua origem e é neste sentido que Michael Klein (1981: p.3) afirma:”A film of a novel, far from being a mechanical copy of the source, is a transposition or a translation from one set of conventions for representing the world to another.”. Esta simples constatação pode ser o suporte de toda uma metodologia de análise comparativa, pois, talvez se possam isolar formas peculiares de produção de sentido se se combinarem metodologias de análise textual e metodologias de análise fílmica, operando, só num primeiro estádio, a cisão entre o texto, que está na origem, e o filme, produto final, de modo a apurar modos próprios de modelização do real. Porque os dois sistemas de modelização em causa são completamente diferentes e quando o filme adapta o romance é toda uma metamorfose que se produz: “When a literary work is translated into a film, it is metamorphosized not only by the camera, the editing, the performances, the setting, and the music, but by distinct film codes and conventions, culturally signifying elements, and by the producer’s and director’s interpretations as well.” (Michael Klein, 1981: p.5). Consoante as especificidades de cada sistema semiótico (o literário e o cinematográfico) assim se poderão encontrar especificidades próprias na produção do sentido.
Nos estudos do texto literário é habitual a análise ter em conta uma, ou várias, das instâncias ou dimensões da literatura, a saber: o autor (como ser social, como doador do texto, como produtor do texto, como produtor de outros textos que formam a sua obra), o contexto (o papel do contexto na produção do texto: adesão do texto a… ou rejeição de… um período literário, um movimento, uma forma natural da literatura ou um género), o texto (temática, modos de articulação entre a temática e o discurso que a veicula, relações do texto com os outros textos que constituem o corpo da cultura) e o leitor (formas de equacionamento desta instância pelo próprio texto, papel do leitor na busca ou na produção do sentido, homogeneidade ou variabilidade sincrónica e diacrónica da recepção de um dado texto). Dada a possibilidade de estabelecer um paralelo, ainda que redutor, entre as instâncias do literário e do cinematográfico (realizador – contexto – texto/filme – espectador), parece resultar operacional um esquema de análise que contemple as duas vertentes do fílmico (o texto e o filme) e que equacione as possibilidades de funcionamento de todas estas instâncias. É com base nestes pressupostos que se propõe um conjunto de possibilidades de análise que possa servir, metodologicamente, como ponto de partida aos Estudos de Literatura e Cinema.
Para concluir, citar-se-á Michael Klein que, de uma forma sintética, resume as preocupações fundamentais dos estudiosos desta área: “Studies of the adaptation of novels into film generally focus upon several interrelated questions: Whether the film is a literal, critical, or relatively free adaptation of the literary source; whether significant cultural and ideological shifts occur when a novel that was written in a particular historical period is transposed into modern film; whether cinematic equivalents of the rhetoric and discourse of fiction extend the perspective of the literary source.” (1981: p.9).
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