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Segundo Freud, o eu é uma das instâncias da teoria dita da 2ª tópica, com o issotradução em português do “es” alemão. “Id” para os ingleses, “ça” em francês, “ello” em espanhol, a Sociedade Portuguesa de Psicanálise optou por manter o “id” latim, como os ingleses embora traduza “ego” (“ich”) e “superego”(“uber-ich”) para “eu” e “supereu”. Nós preferimos, com os brasileiros, o termo “isso” –  e o supereu. No seu artigo “O eu e o isso”, Freud escreve: “Para nós, um indivíduo é um isso psíquico, desconhecido e inconsciente, à superfície do qual está pousado o eu que se desenvolveu a partir dele (…); o eu não envolve o isso completamente, mas apenas nos limites em que o pré-consciente constitui a sua
superfície. O eu não está separado nitidamente do isso, fusiona com ele na sua parte inferior.”Ao que Freud lembra que “a verdadeira diferença entre uma ideia inconsciente e uma ideia pré-consciente” (conceitos da 1ª tópica), “consiste em que o material da primeira permanece oculto enquanto que a segunda está enlaçada em representações verbais.(…)  Estas representações verbais são restos mnemésicos. Foram em dado momento percepções e podem, como todos os restos mnemésicos, voltar a ser conscientes”. Eis em germe o que a linguística trabalhará ao falar da relação significante/ significado e que Lacan retomará em psicanálise.

Freud anota ainda outro aspecto essencial do eu, o eu como eu-corpo: “O eu pode ser considerado como uma projecção mental da superfície do corpo e representa a superfície do aparelho mental.” Para Freud o único acesso que o indivíduo tem ao seu corpo passa pelo eu.  Será a este nível que serão desenvolvidos por Lacan os aspectos imaginários e de logro do eu.

Com efeito Lacan, ao longo do seu ensino, aponta para três dimensões do eu: o eu consciente – a língua francesa entre os pronomes pessoais da primeira pessoa distingue o “je” do “moi”; para não recorrer a formas derivadas como “mim”, adoptamos a tradução brasileira para os seminários de Lacan nos quais “je” aparece como “[eu]” e “moi” como “o eu”; neste verbete, assim como no relativo ao sujeito da enunciação se entenderá esta opção – ligado à dimensão do imaginário(v.); [eu], shifter, sujeito falante, ligado ao registo do simbólico; e [eu], sujeito do inconsciente e do desejo, que funciona no registo do real.

(De [eu] (“je”, sujeito) tratamos a propósito do sujeito da enunciação.) Com a introdução da fase do espelho – veja-se o verbete sobre o imaginário onde é apresentado esse conceito assim como a dimensão imaginária do eu que então se estrutura –  por Lacan, pode dizer-se que o eu é a imagem do espelho com a sua estrutura invertida. Este sujeito confunde-se com esta imagem que o forma e aliena primordialmente: é no outro que primeiro se vê e se referencia. O eu mantém desde então o gosto pelo espectáculo, a sedução, a parada, mas também o sado-masoquismo e o “voyeurismo”. Ou eu ou o outro. Se ele é, é tudo e eu não existo.

A psicanálise sublinha a quantidade de identificações e, logo, dos eu. Para Freud o eu é feito da série de identificações que representaram para cada qual uma referência essencial em cada momento da sua vida. Lacan, por sua vez, insiste sobretudo no carácter de logro, aparência, ilusão do eu e resume dizendo: “O eu (moi) é um outro”.

Que interesse pode ter o eu especular na literatura? É que relativamente a ele, a atitude do escritor é ambivalente. Como num sonho ou no devaneio da imaginação, o escritor ao escrever imagina, cria, fantasia o real, o seu real, identifica-se imagináriamente aos seus personagens, mascara o seu sujeito inconsciente sobre o qual, como qualquer um, “nada quer saber”. Mas ao trabalhar com a língua, ao nível do simbólico, essa realidade “inventada” ele conta-se sem o saber e sem saber o quê e cinge, cada vez mais perto, nas entrelinhas da ficção, o real do seu desejo.

“O que significa este quadro?”, perguntavam ao pintor. “Se eu soubesse, não pintava.” Quanto a Lacan responde assim a esta questão: “A intuição do eu, na medida em que se centra sobre uma experiência de consciência, mantém um carácter cativante de que é necessário libertar-se para aceder à nossa concepção de sujeito. Por isso tento afastar-vos da sua atracção para que possam entender onde se situa a realidade do sujeito segundo Freud. No inconsciente, excluído do sistema do eu, o sujeito fala”.

{bibliografia}

Sigmund Freud, Psicologia de las masas y analisis del yo (1921), Obras Completas, tomo III, Madrid, Biblioteca Nueva; O Ego e o Id (1923), in Textos Fundamentais da psicanálise, vol.III, Lisboa, Europa-América,1989. Jacques Lacan, O eu na teoria de Freud e na técnica da Psicanálise (Seminário II, 1954-55), Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1985 (1978); Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (Seminário XI, 1964), Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979 (1973).