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(EU POÉTICO, EU POEMÁTICO, SUJEITO LÍRICO, SUJEITO POÉTICO, EU ENUNCIADOR, VOZ LÍRICA)

O vocábulo “lírico” surge do latim lyricus, e encontra-se associado a um instrumento musical, a lira, cujo objeto foi muito utilizado pelos gregos no período clássico. Durante vários séculos a música (o som) e os textos (a palavra) foram indissociáveis, e por isso os escritos compostos em verso para as canções emitiam “lirismo”.Verifica-se, assim, que a poesia, na sua origem, se encontra estreitamente ligada à musicalidade. Todavia, a partir do século XV, iniciou-se uma distanciação entre ambas, e as formas versificadas passariam, mais constantemente, à escrita como prática da leitura (declamação) e forma de conservação da tradição oral. Desta forma, o “eu” que fala nos versos é “lírico”. Ou seja, é um termo que se refere, dentro do contexto da teoria da literatura, à análise de textos escritos em verso; pode ser entendido como a expressão de um “eu” do autor ou de um “eu” fictício, potencializando dinâmicas que conferem, naturalmente, duas avaliações influentes na análise literária. A distinção entre essas noções foi desenvolvida durante o movimento romântico, no qual a individualidade do autor, o seu estado afetivo e intelectual, expressariam naturalmente a sua personalidade, ou experiência individual, como assim defendeu Vítor Hugo (Shipley, 1908: 305). Kate Hamburger sublinha que há muito se discute, através da teoria da literatura, a problemática da identidade ou não-identidade do “eu” lírico com o “eu” do poeta. Refere a mesma estudiosa que Wellek e Warren foram os primeiros a formular a relação do “eu lírico” com o “eu fictício”, e menciona, ainda, a posição de Wolfgang Kaiser, o qual, mesmo questionando a linha moderna de pensamento e admitindo que existe um caráter subjetivo no discurso lírico, defende que o “eu” lírico, embora sendo uma construção textual, dirige, no entanto, a atenção sobre o sujeito real de quem fala. Hamburger afirma que não podemos inferir, ao lermos um poema de Goethe, que este “eu” corresponde ou não ao próprio Goethe, já que não temos um critério exato, nem lógico e nem estético que nos permita essa aproximação (1986: 196). Ou seja, o que a crítica conclui é a indefinibilidade da coincidência entre o “eu” lírico e o “eu” do poeta. O problema neste tipo de análise (encarar o que está dito nos versos como uma expressão verosímil do autor) reside quando a crítica utiliza o conceito de “eu” do autor/da autora para exprimir julgamentos que os delineiam psicologicamente e os comprometem, emitindo (des)valores que possam denegrir a sua imagem. Compreende-se que o mundo literário exterioriza, a partir de técnicas artísticas, a sua “irrealidade”, que enquanto “real” produz emoções. Mas é importante entender a função que o irreal exerce na realidade que lhe é extrínseca; essa “realidade irreal” proporciona ao sujeito poético um caráter de autonomia, visto que se erige a partir de um escritor que lhe conferiu emoções e traços que lhe darão autoridade enquanto sujeito artístico do enunciado, índices esses que podem, ou não, ser equivalentes à personalidade do autor da obra de arte. Carlos Reis chega a esta mesma conclusão afirmando que o sujeito poético, constituído no contexto do processo de interiorização, é uma entidade a não confundir com a personalidade do autor empírico; no entando, admite que o autor empírico pode projetar sinuosamente no mundo do texto experiências realmente por si vividas (p. ex: a vivência de uma determinada manhã, num certo mês de setembro), assim como também é certo que a voz que nesse texto nos fala pode ignorar (e também subverter, metaforizar, etc.) essas experiências (1995: 316).

{bibliografia}

Al. Sandulescu (coord.): Dictionar de Termem literari (1976); Carlos Reis: O Conhecimento da Literatura, Introdução aos Estudos Literários (1995); Joseph T. Shipley (ed.): Dictionary of world literature. Criticism, forms, technique (1908); Kate Hamburger, A lógica da criação literária (1986); René Wellek; Austin Warren: Teoria da Literatura (1942).