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Pode dizer-se que o lugar central que Freud e em seguida Lacan atribuem ao falo no funcionamento humano, é tudo o que resta das primeiras tentativas de Freud de cura através a catársis. Com efeito, na Antiguidade, o culto fálico era um dos ritos cujo espectáculo e falas mais contribuiam para a purificação do homem, mas também para desvelar o mistério.

Antes de entrar neste tema lembremos que a língua portuguesa é a única que mantém a forma incial desse parentesco que a psicanálise revela entre o falo, (eu) falo e fá-lo. No que revela também a pertinência da noção lacaniana de significante(v.).

Freud que começou por ter uma concepção da sexualidade que descrevia uma evolução por fases de que a última, – a fálica – se aproximaria da forma definitiva da vida sexual, mas sem uma síntese das pulsões parciais nem o primado da zona genital, corrige-se a partir de 1923. E diz: “Mesmo se a criança não chega a uma verdadeira síntese das pulsões parciais sob a primazia dos órgãos genitais, o interêsse por estes e a actividade genital adquirem no entanto uma importância dominante. A característica principal desta organização genital infantil é também o que a diferencia da organização genital definitiva do adulto. Reside no facto de que, para os dois sexos, só há um órgão genital que tem um papel, o orgão macho. Não há assim uma primazia genital, mas uma primazia do falo”.

Freud abre então o caminho que Lacan viria a desenvolver e escreve: “Não se pode apreciar com justeza a significação do complexo de castração se não se tiver em conta o surgimento da primazia do falo”. Freud mostra que falo e castração estão ligados pela curiosidade e a actividade de investigação infantil e que a referência ao gozo (já experimentado narcísicamente) é a verdadeira parada de todo este desenvolvimento.

É neste ponto que Lacan retoma a questão sob a noção da “significação do falo”: “O falo não é, na doutrina freudiana, uma fantasia(v.), no sentido de um efeito imaginário. Também não é como tal um objecto(v.) (parcial, interno, bom, mau,etc.) na medida em que esse termo tende a debruçar-se sobre a realidade implicada numa relação. Muito menos é o órgão, pénis ou clítoris, que no entanto simbolisa. Não foi por acaso que Freud foi buscar essa referência ao simulacro que ele era para os Antigos.

“Porque o falo é um significante, cuja função na economia intrasubjectiva da análise levanta um pouco o véu da função que ele tinha nos mistérios antigos. Porque é o significante destinado a designar no seu conjunto os efeitos de significado(v.) na medida em que o significante os condiciona pela sua presença como tal.”

Qual a significação desse significante? É na sua relação com o sujeito na sua dialéctica ao pedido e ao desejo que Lacan encontra resposta. Digamos que o sujeito falante (parlêtre)/desejante que diz eu falo pediria uma garantia de que no Outro, de onde falo, o meu pedido fosse recebido. Ora essa garantia nunca me será dada. O Outro é o lugar da minha fala, mas mais poder não tem. Nomeadamente a de me dar a garantia da alteridade do destinatário da minha mensagem, ou a garantia de que a satisfação do meu pedido me seja reenviada do lugar aonde a dirijo. A castração equivale assim à derrocada de qualquer garantia de obter o meu gozo do Outro enquanto Outro, ou seja, “a redução do meu gozo ao auto-erotismo”.

Aqui encontramos um primeiro aspecto central de qualquer obra literária: o que o escritor busca sem cessar é fazer as contas com a sua situação de sujeito submetido à castração simbólica, sujeito falante/desejante que na sua mensagem ao Outro só encontra a borda de um orifício e nenhuma garantia de que de onde ele fala alguém esteja para receber a mensagem. Mesmo que o seu texto, – que, uma vez publicado deixou de ser seu, se tornou, segundo a expressão de Lacan, lixo (poubellication) – seja alvo de prémio do SNI, Pessoa ou Nobel. Prémio sem dúvida gratificante, mas que não bastaria para sustentar o desejo que a continuação da obra designa. Mais tarde Lacan dirá: “A significação do falo é o único caso de genitivo plenamente equilibrado. Isto quer dizer que o falo, era o que explicava Jakobson, o falo é a significação, é aquilo através o quê a linguagem significa, só há uma “Bedeutung” (significação), é o falo.” “Não há Outro do Outro”.

O que lhe permite ao escritor escrever o segundo e todos os outros livros, é que “a relação sexual não cessa de não se escrever”.

Esta impossibilidade radical de escrever a relação sexual como tal, permitiu a Lacan, de língua francesa, ouvir falo (phallus) entre os termos “faillir” e “falloir”, entre a (ou o que) falta e o dever. É desse dever, dessa falta e disso que falta que nasce a arte do escritor.

Costuma dizer-se que a psicanálise cura o escritor da sua pulsão na escrita. A verdade é que a assumpção da castração simbólica e do seu destino de sujeito a que o trabalho analítico conduz, não retira ao escritor o gozo fálico, linguageiro, viril, ligado à fala, semiótico. Reconcilia-o, é verdade, com a certeza da separação de um gozo corporal, que é um gozo impossível do ser, da Coisa, anterior à fala, á significação do falo e à castração simbólica. Mas abre-lhe as portas de um outro gozo também do corpo, que não se perde pela castração, uma fruição do corpo que está além do falo, efeito da passagem pela linguagem, mas fora dela e que é o gozo místico, feminino, gozo identificado com o daquele (a) que ocupa o lugar do feminino. É o gozo do escritor enquanto tal, como o demonstram S.João da Cruz e Santa Teresa d’Ávila. Por isso Lacan o apelida de místico.

Eis o que é o falocentrismo, significante de que a língua portuguesa nos dá o pleno: a centralidade do (eu) falo na existência humana.

{bibliografia}

Sigmund Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, (1905),in Textos Essenciais da Psicanálise, vol.II, Lisboa, Europa-América, 1989; La vie sexuelle, (1923),Paris, P.U.F., 1969. Jacques Lacan, “La signification du phallus; Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient”(1958), Paris, Le Seuil, 1966; Mais, ainda, (Seminário XX, 1972-73), Rio de Janeiro, Zahar Editores, (1975).