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Na psicanálise de Jacques Lacan, corresponde à fase (termo preferível a “estádio”, segundo Lacan) da formação da identidade, que se dá entre os seis e os dezoito meses de idade, quando a criança encontra e reconhece a sua imagem especular. Considera-se esta fase como um primeiro esboço do que será o Eu do indivíduo. É num dos seus mais conhecidos ensaios, “Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je”, comunicação apresentada a um congresso internacional, em Zurique, em 1949, que Lacan procura pensar o chamado narcisismo primário e, ao mesmo tempo, fundar uma teoria da antropogénese do sujeito humano que deve compreender o estádio do espelho “comme une identification au sens plein que l’analyse donne à ce terme: à savoir la transformation produite chez le sujeit quand il assume une image”, (Écrits I, Points, Paris, 1966. p.90). O espelho é criador de múltiplas imagens, quase sempre ambíguas e reveladoras de aspectos mais interessantes dos que os reproduzidos por uma imagem dita fiel.

Em literatura, é frequente encontrarmos situações que descrevem a descoberta da identidade recorrendo à metáfora do espelho. Seja o exemplo de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós. Quando ainda só suspeita que Amélia devia gostar dele, Amaro olha-se ao espelho e descobre não só o desejo do corpo da mulher, mas em igual medida significativo, descobre o seu próprio corpo, toda a dimensão do seu próprio corpo que até aí estava dividido pelo fantasma da castração: “E passeava pelo quarto com passadas de côvado, estendendo os braços, desejando a posse imediata do seu corpo [de Amélia]; sentia um orgulho prodigioso: ia defronte do espelho altear a arca do peito, como se o mundo fosse um pedestal expresso que só o sustentasse a ele!” (O Crime do Padre Amaro, Círculo de Leitores, Lisboa, 1980, p.125). Primitivamente, a criança não tem a experiência do seu corpo como de uma totalidade unificadora, como Amaro não tem a experiência dos prazeres humanos e sociais porque a sua condição de clérigo o proíbe. Antes de se encontrar ao espelho, Amaro havia confessado a si mesmo o drama da castração: “O que ele gostava daquela maldita [de Amélia]! E era impossível obtê-la!” (p.118). Contudo, à angústia do corpo dividido da criança sucede, culminando uma longa conquista, o despertar da criança na dialéctica do ser e do aparecer por intermédio da imagem do corpo, que a constituirá como sujeito. Assim acontece simbolicamente com Amaro: no momento em que se olha ao espelho e sente “um orgulho prodigioso” pelo seu corpo, tal sentimento é a expressão da conquista da identidade do sujeito pela imagem total do corpo, mas também pela certeza de que a mais forte jouissance pulsa nele como em qualquer homem. Estamos perante um processo que nega todo o cartesianismo que se funda directamente no cogito, que é o pensamento do indivíduo isolado, mas agora, quer no sistema de Lacan quer no romance de Eça, é mais do que um «Conheço-me, logo existo.» para ser um: Reconheço-me, logo existo. Todas as identificações que Amaro produzirá no futuro serão condicionadas por esta identificação primitiva, que é, em termos mais directos, a descoberta única do desejo, no fundo, a lição principal que aprendemos no estádio do espelho. Se existir uma falha na dialéctica da constituição do sujeito, durante este estádio do espelho, tal constituição ficará inacabada ou sofrerá clivagens que ameaçam a destruição total do Eu. A relação com Deus que Amaro adopta no estádio do espelho constitui uma falha, embora, no momento do romance que citámos, ainda não apresentada como tal.

{bibliografia}

Bice Benvenuto e Roger Kennedey: “The Mirror Stage”, in The Works of Jacques Lacan: An Introduction (1986); Carlos Ceia: “A dialéctica do desejo n’ O Crime do Padre Amaro”, in Anais do III Encontro Internacional de Queirosianos (Universidade de São Paulo, 1997); Jacques Lacan: Écrits I (1966).