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No uso corrente, o termo ‘ficção’ é geralmente contraposto à verdade histórica e historiográfica; mas análogo sentido negativo se insinua na esfera literária, ainda quando a ficção adopta técnicas de imitação verista da natureza ou de formas documentais. Na linguagem comum, ‘ficção’ significa quase sempre invenção, obra da fantasia ou da imaginação, fabricação fabular, lenda ou mito. É, pois, uma palavra geralmente oposta a ‘facto/s’ e a ‘realidade’. Genericamente, o termo significa, em conformidade, afirmação sem fundameto, narrativa forjada, falsificação, dissimulação, fingimento; ou, mais especificamente, histórias, contos, novelas, romances da invenção de um escritor, de uma época, de uma literatura. Os adjectivos ‘fictivo’ ou ficcional’, aplicados a textos literários, sobretudo narrativos, não têm, contudo, a mesma carga pejorativa ainda hoje associada, por exemplo, ao termo ‘fictício’, na medida em que convenham na valoração estética desses textos.

No século XX, a arte ou ‘poética’ da ficção tem sido objecto de aturada elaboração teórica no âmbito da chamada narratologia e em articulação com a dilucidação de tópicos como intriga, construção de personagens, ponto de vista, estilo, voz, corrente de consciência e outros. Ao longo de décadas, importantes contributos têm sido dados para a análise da ficção narrativa ¾ desde os critérios destinados a aferir a respectiva validade ou falsidade, a analogia ou autonomia face ao mundo empírico, a capacidade de provocar ou organizar atitudes no leitor, as diferenças em relação ao discurso comum, até às suas possíveis articulações com a fala ‘natural’. Mas uma grande variedade de aspectos da ficção narrativa já em épocas muito anteriores atraíam frequente comentário crítico. Entre eles, conta-se, por exemplo, a definição ou indefinição da mundividência e da ideologia de um autor, nomeadamente como algo distinto das posições expressas por um narrador e personagens; a presença implícita ou ‘sugerida’ do autor ou do narrador; a interferência ou o apagamento autoral e a retórica de omnisciente objectividade. Também herdada de outras épocas é a exploração da própria ficção como assunto de obras ficcionais, bem visível em muitos autores influentes (cf. ‘metaficção’). Tal faceta reflecte, sem dúvida, uma gradual valorização de modernas formas ficcionais nos séculos XIX e XX, dois séculos depois da crise da ficção narrativa catalisada por Cervantes, e passando por certos períodos de menos prestígio, motivado, por exemplo, pelo grande número de produções romanescas marcadamente comerciais. Já nas épocas setecentista e oitocentista essa valorização foi procurada e eventualmente atingida graças, inclusive, a técnicas realistas e naturalistas de identificação verista, documental e cientifista. A ficção narrativa tem logrado em muitos casos a desejada valorização no conjunto dos géneros e subgénero fundamentais, embora a recorrente observação de que o romance, por exemplo, terá esgotado as suas possibilidades deixe perceber antiga desconfiança ¾ patente não só em Cervantes (o primeiro grande romancista moderno na Europa), mas também em inúmeras acusações posteriores: de inverosimilhança, verbosidade, inusitada extensão, pendor folhetinesco, indefinição de forma, conteúdo ou método, irrealismo romanesco, mercenarismo. Tais acusações, não raro, têm andado a par do reconhecimento das fantasias escapistas que uma indiscriminada dose de ficção mais popular serve como dieta diária a leitores (e espectadores) não apenas jovens mas de todas as idades. O que remete, de novo, para a carga pejorativa de que, principalmente no uso corrente, o termo ‘ficção’ é portador. No entanto e apesar de tudo, a grande tradição do romance e de outras formas narrativas modernas em muitos países vem evidenciando, desde o século XVIII, uma vasta realização de possibilidades que ultrapassa essa carga de sentido negativo.

Bibliografia:

C. Segre: “Ficção”, in Enciclopédia Einaudi, vol. 17: “Literatura/Texto” (Lisboa, 1989); Geoffrey N. Leech e Michael H. Short: Style in Fiction, A Linguistic Introduction to English Fictional Prose (1978); J.J.A. Mooij: Fictional Realities, The Uses of Literary Imagination (1993); Joan Rockwell: Fact in Fiction, The Use of Literature in the Systematic Study of Society (1974); Poetics Today, vol.1, 3: “Narratology I: Poetics of Fiction” (1980); Poetics Today, vol.4, 1: “Narratology III: Narrators and Voices in Fiction” (1983); R. Surfiction (1975); Robert Scholes: Elements of Fiction (1968); Wayne C. Booth: A Retórica da Ficção (1980).