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Filosofia Portuguesa não é termo unívoco. Tanto pode designar, de forma genérica, a filosofia em Portugal como, de forma muito mais particular, um movimento filosófico específico, expresso em português e centrado no exigente diálogo acroamático de Álvaro Ribeiro (1905-1981) e José Marinho (1904-1975). Ambos foram discípulos de Leonardo Coimbra e de Teixeira Rego na primeira Faculdade de Letras do Porto – cujas portas foram compulsivamente encerradas pelo salazarismo em 1932 – e tal discipulato não foi, decerto , indiferente ao que depois ocorreu.

A primeira palavra do diálogo parece que coube a Álvaro Ribeiro que, em 1943, publica, dedicado a Marinho e pela mão amiga de Eduardo Salgueiro, O Problema da Filosofia Portuguesa, livro onde aparecem enunciados os tópicos que passaram, desde então, a articular a questão: a filosofia como ponto equidistante tanto do positivismo agnóstico como do catolicismo ortodoxo, a filosofia como expressão literária ou linguagem verbal, a filosofia como obra de livre pensamento, – tudo isto sem esquecer que, no seguimento do humanismo criacionista de Leonardo Coimbra, a filosofia não podia deixar de ser, em qualquer situação, uma obra de antropologia.

A José Marinho pertenceu, todavia, alguns anos depois, a melhor – porque irrefutável – fundamentação da expressão em causa afirmando, por meio de saborosa analogia com as laranjas de Setúbal, que a filosofia portuguesa, tal como ele e Álvaro Ribeiro a entendiam, não contradizia a universidalidade da filosofia, pois o facto de haver filosofia em Portugal não alterava a forma universal da filosofia, antes contribuía para ela, como, de resto, acontecera antes com a filosofia helénica ou a alemã.

O diálogo a dois evoluiu no fim da década de cinquenta e na década seguinte para uma tertúlia muito mais alargada, onde se sucederam as publicações periódicas de grupo e as tomadas colectivas de posição, e onde se notabilizaram as intervenções de António Quadros, António Telmo, Pinharanda Gomes, Afonso Botelho, Orlando Vitorino ou António Braz Teixeira (a que se poderia ainda acrescentar um João Bigotte Chorão). Depois da morte de Marinho e de Álvaro, o problema esgotou alguma da sua vitalidade, mas não parece ter morrido, não só porque permanecem vivos muitos daqueles que se juntaram, por volta de 1957, aos seus propositores para o discutir, mas porque outros, nascidos já depois dessa data, julgaram dever e poder prolongar o debate.

De todo o vasto acervo que constitui hoje o património de pensamento escrito da filosofia portuguesa uma parte considerável diz respeito às relações da filosofia com a filologia – vínculo que Álvaro Ribeiro julgava determinante quando se falava de filosofia situada – e com a teoria e a crítica literárias, cujos antecedentes eram, no domínio filosófico, muitíssimo mais do que estimáveis, sobretudo quando pensamos nas, a qualquer título, decisivas obras de Platão, Aristóteles, Kant ou Hegel dedicadas ao assunto.

José Marinho, por exemplo, fez crítica nas derradeiras séries da revista A Águia, onde resenceou o livro O Mistério da Poesia de João Gaspar Simões, e na revista Presença, onde se afirmou como a mais criativa e original revelação especulativa da revista coimbrã. Marinho deu, nesses e noutros textos, em particular nos dedicados a Oliveira Martins e a Sampaio Bruno, um inestimável contributo, ainda não superado, para uma definição de crítica, que ele desdobrava em judicativa e compreensiva, memorizando, pela pressa, a primeira e valorizando, pelo que carreava de paciente e sofrido esforço interpretativo, a segunda. Marinho aproximava, assim, o crítico literário do filósofo, afastando-o do juiz ou do advogado.

Nesse sentido, o de um aturado e perspicaz discernimento do papel da crítica, prestou ainda Marinho tributo categórico aos estudos poéticos quando se interessou pela dilucidação crítica dos conceitos literários de exegese e hermenêutica – ambos indispensáveis, segundo ele, ao trabalho de interpretação -, apontando para o primeiro uma fidelidade reconstrutiva do texto e o apagamento do leitor e para o segundo um excesso de criatividade transtextual e o consequente, mas em parte aparente, eclipse do texto. Os critérios absolutamente pessoais em que se inspirou para esta conceptualização, decorrentes de uma reflexão interpretativa que remontava ao ano de 1924, data em que se licenciou em Filologia Românica com uma teses sobre a poesia de Teixeira de Pascoaes, merecem-nos hoje a mais alta estética da recepção, quer ainda pela operacionalidade que apresentam.

Álvaro Ribeiro, por seu turno, postulando de princípio o carácter não dissolúvel do pensamento e da expressão, encarou a filosofia como um dos géneros da literatura, contribuindo extensamente para a sua teorização em livros como A Razão Animada (1957), onde nos deu, de par com uma curiosíssima reflexão sobre a literatura simbólica, uma das raras, se não a única, teoria dos géneros literários formulada em Portugal, Escritores Doutrinados (1965), onde perecebeu a literatura a partir de um excesso e desenvolveu, sem exigências ou preocupações de sistema, o predicado fundamental daquela que foi – ou poderia ter sido caso o autor a tivesse organizado num corpo mais vasto, o que nunca chegou a acontecer – a sua teoria da literatura, a saber a literatura como expressão do não-natural, do sobrenatural, do surreal ou do inconsciente.

Também alguns dos discípulos mais próximos de Marinho e de Álvaro deram, ou ainda estão dando, relevantes contributos no campo da crítica e da teoria literárias, António Quadros (1923-1993) deixou uma obra vastíssima e consagrada no domínio da avaliação das obras literárias, que, partindo da reflexão existencial ou existencialista, inflectiu depois, sem nunca perder a sua ligação matricial com os pontos de partida da filosofia portuguesa, para a mitocrítica, avizinhando-se, nesse momento, das obras de Mircea Eliade e Gilbert Durand. António Telmo, herdando de Álvaro Ribeiro o gosto pela linguagem verbal (a ponto de nos ter dado uma gramática da língua portuguesa) e desenvolvendo o sentido dramático da arte poética aristotélica, teceu uma subtil e muito nítida reflexão sobre a poesia, em que esta perde, e para sempre, o seu carácter de inerte objecto reflectido e aparece, numa proeza muito ambicionada mas raramente conseguida, como o verdadeiro orgão solar do pensamento.

{bibliografia}

Afonso Botelho, “António Patrício, Dramaturgo da Saudade”, in Da Saudade ao Saudosismo, 1990; “D. Duarte e o Leal Conselheiro”, in Saudade, Regresso à Origem, 1997; Álvaro Ribeiro, “Lógica e Metafísica”, in O Problema da Filosofia Portuguesa, 1944; “Linguística e Filologia”, in A Arte de Filosofar, 1955; A Razão Animada, 1957; “Teoria da Linguagem”, in Liceu Aristotélico, 1962; “Ontologia dos Valores Poéticos”, in Escritores Doutrinados, 1965; A Literatura de José Régio, 1969; “Fernando Pessoa, Poeta e Filósofo”, in As Portas do Conhecimento, 1987; António Cândido Franco, Teoria da Literatura na Obra de Álvaro Ribeiro, 1993; “A Teoria da Literatura em Álvaro Ribeiro”, in Álvaro Ribeiro e a Filosofia Portuguesa, 1995; António Quadros, A Existência Literária, 1959; Crítica e Verdade, 1964; O Espírito da Cultura Portuguesa, 1967; Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, 2 vols., 1982-1983; O Primeiro Modernismo Português, 1989; Memória das Origens, Saudades do Futuro (valores, mitos, arquétipos, ideias), 1992; Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa, 1992; António Telmo, Arte Poética, 1963 e 1993; Gramática Secreta da Língua Portuguesa, 1981; Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, 1982; Le Bateleur, 1992; José Fernando Tavares, “Contribuição para uma Paideia Portuguesa: Reflexão sobre o Pensamento Simbólico de António Quadros”, in A Letra do Espírito, 1996; José Marinho, “Sampaio Bruno”, in Perspectiva da Literatura Portuguesa do Século XIX, 1948; “Filosofia Portuguesa e Universalidade da Filosofia”, in Jornal 57, nº. 3-4, 1957 e nº. 5, 1958; “Filosofia da Saudade e Filosofia Profética”, in Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo, 1976; “Sobre Exegese e Hermenêutica”, in ‘Notas e Excursos’ de Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo, 1976; “Mitologia e Filomitia em Oliveira Martins”, in Estudos sobre o Pensamento Português Contemporâneo, 1981; “Recensões Bibliográficas”, in Obras de José Marinho (vol. II), 1995; “Sobre o Juízo Tácito”, in Obras de José Marinho (vol. III), 1997; Pinharanda Gomes, Dicionário de Filosofia Portuguesa (“Cabala”, “Poesia” e outros), 1987.