Select Page
A B C D É F G H Í J K L M N O P Q R S T Ü V W Z

Também designado por “ponto de vista” (teóricos anglo-americanos), “foco narrativo” (em especial, no espaço brasileiro), “foco de narração” (C. Brooks e R. P. Warren), “visão” (J. Pouillon e T. Todorov, embora este também use “aspecto”), “ângulo visual” e “perspectiva narrativa”, consiste num dos modos de regulação da informação na ficção. O termo focalização foi proposto por Gérard Genette e a sua utilização generalizou-se pela operacionalidade demonstrada e pela sua mais óbvia vinculação à narratologia.

Não deverá confundir-se com a identidade da instância narrativa, cujas principais coordenadas são o nível narrativo (extra-, intra- ou metadiegético) e a relação com a história (hetero-, homo- ou autodiegética). Independente embora, combina-se com esses aspectos e com a distância narrativa na caracterização do narrador e do seu discurso e na configuração discursiva da ficção.

Na base da conceptualização deste fenómeno, está a perspectiva como metáfora do processo de conhecimento, metáfora que consagra o confronto cognoscente entre sujeito e objecto, isto é, o afastamento (não coincidência) entre sujeito e objecto e um posicionamento relativo de ambos que permita o exercício da observação. Nas artes plásticas, a formalização geométrica desse confronto no séc. XV evidenciou a atitude analítica do observador.

Estratégica no processo de representação ficcional, a perspectiva é, simultaneamente, factor de expansão do universo romanesco, porque o vai conformando, e operador do doseamento de informação, porque simula “filtrar” esse universo para o destinatário em função de um ponto óptico, lugar de onde o narrador percepciona o romanesco. Neste sentido, ela desenvolve a diegese entre dois lugares fantasmáticos sinalizados pela retórica discursiva e ficcional, o de origem e o de “destino”, lugares que redimensionam a ficção conferindo-lhe espectacularidade ou fazendo reconhecer nela natureza de encenação. Assim, a perspectiva potencia um jogo de dissimulação e de denúncia da instância autorial. Por outro lado, através do “ponto de fuga” que lhe corresponde, pode condicionar a leitura, inscrevendo no discurso ficcional a previsão do seu receptor ou chegando mesmo a conformá-lo ao longo dele.

Esse “ponto focal” através do qual o universo romanesco chega até nós, “centro de orientação “ (J. Lintvelt) susceptível de caracterização espacial, temporal, psicológico, etc., tem uma natureza eminentemente intelectiva, podendo modalizar-se no plano afectivo, ideológico, etc.. Rigorosamente, não coincide com o saber do narrador (a sua ciência), antes consistindo naquele que ele vai transmitindo, naquele que ele, em geral e/ou em cada momento, assume e simula. Em suma, a quantidade e qualidade de informação veiculada, podendo derivar lógica e naturalmente da identidade da instância narrativa (p. ex., a homodiegese legitima um campo de visão mais restrito), em último caso, dependerá da opção do narrador. Isso é duplamente revelador: da ficção como produto de manipulação informativa e do narrador como instância eminentemente manipuladora. Desta forma, a visão pode ser abrangente e totalizadora, dando conta, até, do íntimo das personagens e da consequencialidade ficcional (“focalização zero”, segundo G. Genette; “vision par derrière”, para Pouillon; “omnisciência” para a narratologia anglo-saxónica): na sua modalidade mais paradigmática, a instância narrativa tenderá a esbater tanto quanto possível a sua presença em benefício de um efeito de objectividade discursiva e de verosimilhança do mundo romanesco. Ou o narrador restringe o campo perceptivo e/ou informativo, quer por assumir uma visão exterior ao narrado (“focalização externa”, segundo G. Genette; “vision du dehors”, para Pouillon), incapaz de certezas relativamente ao íntimo das personagens e à sequência dos factos, quer por assumir a percepção de uma personagem, de cujos pensamentos eventualmente dará conta (“focalização interna”, segundo G. Genette; “vision avec”, para Pouillon), podendo manter-se fixa ou variar (“focalização interna” “variável” ou “múltipla”). O exemplo mais típico da “focalização interna” é o do monólogo interior, pelo qual acompanhamos a vida íntima da personagem em causa. Claro que a focalização interna de uma personagem implicará, nessa mesma altura, a externa relativamente às outras, relação entre “focalizador” e “focalizado” (M. BAL :1977: pp. 37/38). Em qualquer dos casos, mesmo quando alguma destas opções domina a narrativa ou segmentos alargados dela (fala-se de predominâncias, pois não há casos puros), pode haver infracções a ela com informação que a excede (“paralepse”, segundo G. Genette) ou por falta de informação que logicamente ela faculta (“paralipse” ou “omissão lateral”, ainda segundo G. Genette). Seja como for, da lógica perspectivante (modo como uma predomina ou como as diferentes se combinam) depende a coesão do universo romanesco: a coerência ou as contradições do jogo de focalização poderão denunciar, respectivamente, um “narrador digno de confiança” ou um outro “indigno de confiança”.

{bibliografia}

BAL, M. . Narratologie (Essais sur la signification narrative dans quatre romans modernes), Paris, Librairie Klincksieck, 1977;

BOOTH, Wayne C. . The Rhetoric of Fiction, London, Penguin Books, 1983; trad. port. A Retórica da Ficção, Lisboa, Arcádia, 1980;

GENETTE, G. . Figures III, Paris, Seuil, 1972, pp. 203 ss.;

idem . Nouveau discours du récit, Paris, Seuil, 1983, pp. 43/52;

LINTVELT, J. . Essai de typologie narrative. Le “point de vue” , Paris, José Corti, 1981.

VITOUX, P. . “Le jeu de la focalisation”, Poétique (51), Paris, Seuil, 1982, pp.359/368.