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O fragmento consiste, ao mesmo tempo, no que resta, aleatoriamente, de uma obra antiga, como no caso dos filósofos Pré-Socráticos, ou da parte extraída, voluntariamente, de um livro ou de um discurso, que, reeditando citações, alusões, intertextos, enfim,  constitui testemunho de algo que não se há de perder, ou, ainda, erige-se como forma privilegiada de texto, de que são  emblema a obra dos românticos alemães, como Novalis (1772-1829) e o grupo de Iena, principalmente August Schlegel (1767-1845) Friedrich Schlegel (1772-1829),  que recusam a totalização, bem como a escritura do filósofo Walter Benjamin (1892-1940),  resultado de montagens, onde  ficam evidentes a descontinuidade e o inacabamento (1985, p. 222-232).  A estética da desconstrução retoma a estética do fragmento, inseparável da deslocação do “eu” e dos jogos da intertextualidade, o que a estética, em sua sinuosa história, vem  reestruturando. Sob essa perspectiva, a obra fragmentária coloca-se sob a égide  do inacabado e da opera aperta, anunciada por Umberto Eco,  e de alguma incoerência apenas aparente, assimilando a escritura  e a leitura  ao não-acabado e à impossibilidade de reconhecer conjuntos formais ou ideológicos. Não abolindo o jogo da convergência, o texto fragmentário revaloriza o disparate como totalização, como o fazem, por exemplo, S/Z (1970), todo montado em “lexias” estelares,  os Fragmentos de um discurso amoroso (1977a), bem como o  Diário de luto – iniciado em  1978 e só  vindo a lume em 2009 -,  estruturado em fichas que fazem a elegia da mãe,   todos  livros  do semiólogo  Roland Barthes (1915-1980), e, nas modernas literaturas portuguesa e brasileira, a produção de Fernando Pessoa (1935-1988), sobretudo sob a máscara do semi-heterônimo Bernardo Soares, autor de O diário do desassossego (1982), e a criação de Mário de Andrade (1893-1945), cuja estética do inacabado enforma, supinamente,  o póstumo O banquete (1978). Ainda no âmbito da literatura contemporânea brasileira, cite-se o romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969), de Clarice Lispector (1920-1977), que, com uma ousadia literária e criatividade ímpar, inicia-se com uma vírgula e termina com dois pontos, considerando a narrativa a ser contada como um fragmento da vida dos dois personagens, uma mulher (Lóri) e um professor de filosofia (Ulisses); pode-se, também, ver, nessa estratégia discursiva, uma figuração de todo livro como fragmento do Livro: todo livro remete ao arquétipo do Livro. Por sua vez, o Livro é alegoria do Universo. Os fragmentos exibem-se como espetáculo das impressões  dos acontecimentos, dos testemunhos literários, da observação minuciosa, da história e da vida pessoal, transcrita, inscrita, reescrita em diários, em um “espaço autobiográfico”, de que fala Philippe Lejeune. A estética do fragmento  recria um “espaço literário”,  postulado por Maurice  Blanchot (1907-2003), em que cintilam, significam, reverberam resíduos, traços, marcas dos discursos do ser humano. Daí, resulta um relativismo estético e histórico, que amalgama o criador e o leitor, no desenho da rede escritural, onde bailam os objetos percebidos, os signos lidos, relidos e interpretados, reinterpretados.

Ficcionalizando-se e substituindo o “eu” narrativo pelo “ele” do discurso em Roland Barthes por Roland Barthes, o Autor pondera, na rubrica, precisamente intitulada “O círculo dos fragmentos”: “Escrever por fragmentos: os fragmentos são então pedras sobre  o contorno do círculo: espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?  Seu primeiro texto ou quase (1942) é feito de fragmentos; essa escolha justifica-se então à maneira de Gide ‘porque a incoerência é preferível à ordem que deforma’. Desde então, de fato, ele não cessa de praticar a escritura curta: quadrinhos das Mythologies e de L’empire des signes, artigos e prefácios dos Essais critiques, lexias de S/Z, parágrafos intitulados de Michelet, fragmentos do Sade II e do Plaisir du texte” (1977b, p. 101).

O leitmotif da estética do fragmento poderia ser o aforismo de  Paul Klee (1879-1940): “Levar uma linha para passear”; no texto fragmentário, a linha também sonha, medita, pensa, traçando um labirinto, de onde não se deseja sair, como ensina  o poeta mineiro  Murilo Mendes (1901-1975), para quem o importante não é sair do labirinto, mas entrar nele. No fragmento,  sobra tudo, exceto o essencial. Sob o signo do fragmento, não há tampouco sobras: o essencial resgata sobras e faz oferendas, primícias, primorosos frutos de uma linguagem-vida-linguagem.

Testemunha do passado, que ajuda a compreender e a reconstituir, extrato de um livro, de um discurso, índice de uma crise do gênero, da totalidade, da obra, do sujeito, do autor e do leitor,  espécie de gênero, que engendrou uma estética do fragmento, sem referência a uma organização globalizante, cunhado numa forma lapidar, como os provérbios,  e, muitas vezes, paradoxal e circular, reação  contra o estruturalismo, que privilegia os esquemas e sistemas, ou seja, objetos acabados e fechados,  recuperado no pós-estruturalismo, que elege o inacabado, o fragmento, mesmo com sua origem milenar, ressurge como signo de uma certa modernidade em busca de uma nova linguagem num mundo onde a unidade e a certeza não são, definitivamente, evidentes.e onde vigem a aporia, as contradições, a fluidez, inscritas, como modos de dispersão e justaposição, no texto.

No nosso mundo contemporâneo, a imprescindível ferramenta  da Internet veio, sobretudo nos blogs e nos twitters, a reforçar e a potencializar a escritura fragmentária, o gênero fragmentário, a estética do fragmento, a virtualidade do fragmento, o texto descontínuo, o texto estilhaçado, hipertextualmente aberto a leituras, releituras, significações e ressignificações, porque todo texto rima com ruptura, episódio, interstício, projeto, gérmen, disseminação.

De forma aforismática, Roland Barthes enuncia que “o texto (…) não é senão a lista aberta dos fogos da linguagem (esses fogos vivos, essas luzes intermitentes, esses traços vagabundos dispostos no texto como sementes e que substituem vantajosamente para nós as “semina aeternitatis”, os “zopyra”, as noções comuns, as assunções fundamentais da antiga filosofia)” (1996, p. 25). Extraído de O prazer do texto -opúsculo, ele mesmo, “borboleteante”, feito com “potente jato de palavras”, “com rajadas de linguagem”, com átomos -, esse fragmento revela que  o prazer é inconcluso, inacabado, descontínuo: o corpo erótico e o corpo do texto têm, sempre, a marca da lacuna.

 

{bibliografia}

ANDRADE, Mário. O banquete. 2.ed. São Paulo: Duas Cidades, 1989. BARTHES, Roland. S/Z. Paris: Seuil, 1970. BARTHES, Roland. Fragments d’un discours amoureux. Paris: Seuil, 1977a. BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1977b. BARTHES, Roland. Journal de deuil. Paris: Seuil, 2009. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. LACOUE-LABARTHE, Philippe et NANCY, Jean-Luc. L’absolu littéraire. Théorie de la littérature du romantisme allemand. Paris: Seuil, 1979. LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Sabiá,  1974.