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Segundo a terminologia utilizada em manuais de gramática, a função gramatical (ou função sintáctica) designa o papel que uma palavra ou grupo de palavras desempenha na estrutura gramatical de uma frase e que decorre da relação estabelecida com os demais elementos da frase. Esta concepção é ainda tributária da tradição gramatical na distinção (nem sempre válida nos termos em que é feita) entre a natureza ou a categoria das palavras – substantivos, adjectivos, verbos, pronomes, etc. – e a função que adquirem em contexto sintáctico. Por discutível e ilusória que seja a classificação apriorística das palavras quanto à sua natureza, daqui se tira que o valor gramatical do conceito de função, que recebe em linguística múltiplas acepções, está adstrito a empregos sintácticos. É nestes termos que conceitos da gramática normativa como “sujeito”, “predicado”, “complemento directo”, “complemento indirecto”, etc. (cf. Terminologia Linguística para os Ensinos Básicos e Secundário, 2002, CD-ROM) fazem parte do inventário de funções gramaticais assumidas pelas mencionadas categorias de palavras no contexto de uma frase, sem que exista, porém, uma correspondência biunívoca entre tal inventário e o elenco de classes de palavras. No desenvolvimento que o conceito de função gramatical veio a ter na linguística moderna, mais do que a vinculação de classes a esquemas sintácticos da frase, tornou-se pertinente identificar as unidades capazes de ocuparem o espaço funcional dos chamados “sujeito”, “complemento directo”, “complemento indirecto”, em virtude das suas compatibilidades sintácticas (Martinet 1985). Antes de se chegar aí, porém, folheie-se rapidamente a história deste conceito de proveniência lógica.

Em vão se tentará encontrar a designação de ‘função gramatical’ em gramáticas dos séculos XVII e XVIII. A Encyclopédie de Diderot e D’Alembert (1751-1772) não acentua senão os empregos lógico e matemático do termo ‘função’. Quanto à célebre Grammaire générale et raisonnée de Port-Royal (A. Arnault e C. Lancelot, 1660), obra que mudou o rumo do pensamento gramatical europeu, é “rapport” o termo usado para, por um lado, exprimir factos atinentes às desinências casuais do latim, e, por outro, perspectivar o quadro sintáctico das línguas modernas donde saiu a actual terminologia de ‘função gramatical’. Simplificando o nível de descrição linguística, distinguir-se-ia: “rapport” no que toca às relações entre o verbo e todos os outros elementos da frase a ele ligados directa ou indirectamente, isto é, análise dos termos constitutivos da proposição (sujeito + verbo + atributo); “rapport” que se manifesta na relação de dependência entre o nome e o adjectivo, isto é, um facto de concordância sintáctica (“quand les mots doivent convenir ensemble”, A. Arnauld e C. Lancelot 1993: 157); e, finalmente, “rapport” na relação de complementaridade verbal, isto é, um tipo de regência descrito no capítulo do verbo (ainda não era tempo do conceito de complemento). No essencial, é o tema da ordem natural das palavras, bandeira assumida pelos gramáticos e lógicos dos séculos XVII e XVIII, que está na origem do estudo das funções ou conexão das palavras, estimulado pelas relações entre a lógica, a gramática e a retórica, sendo estas duas últimas disciplinas subsidiárias da primeira. A tese fundamental é a capacidade de a linguagem reflectir a estrutura lógica do pensamento ou, dito de outra forma, a coincidência entre a ordem das palavras na frase e a ordem dos pensamentos. Ora, atendendo a este paralelismo entre a linguagem e o pensamento – os enciclopedistas dirão “La parole doit peindre la pensée & en être l’image” (artigo “Inversion”, Encyclopédie, 1751-1772) – e atendendo a que as estruturas linguísticas devem explicar-se a partir de categorias lógicas universais e comuns a todos os homens, segue-se, como corolário, uma sintaxe gramatical que, em obediência à lógica da mente humana, postula que o ‘agente’ precede o ‘verbo’ e este precede o ‘paciente’. Para além desta terminologia de valor semântico, os gramáticos portroyalinos fizeram também uso da de valor lógico ao descreverem os três elementos de que se compõe o próprio julgamento: “toute proposition enferme nécessairement deux termes: l’un appelé sujet, qui est ce dont on affirme, comme terre; et l’autre appelé attribut, qui est ce qu’on affirme, comme ronde ; et de plus la liaison entre ces deux termes, est” (A. Arnauld e C. Lancelot 1993: 47).

Gramáticos portugueses do princípio do século XIX e já da segunda metade do anterior (como António José dos Reis Lobato, Manuel Dias de Sousa, António de Moraes Silva, João Crisóstomo do Couto e Melo, Jerónimo Soares Barbosa) serão porta-vozes deste esquema sintáctico lógico, que configura funções gramaticais de ‘sujeito’, ‘predicado’, ‘predicativo’, ‘objecto’. À abertura do século, Manuel Dias de Sousa divulgou amplamente esta terminologia gramatical (cf. Grammatica portugueza ordenada segundo a doutrina dos mais celebres grammaticos conhecidos, assim nacionaes como estrangeiros, Coimbra, 1804), até à data usada timidamente na subalternidade da nomenclatura do sistema casual latino (nominativo, acusativo, dativo, etc.); e na bem conhecida Grammatica philosophica da lingua portugueza (Lisboa, 1822), de Jerónimo Soares Barbosa, o emprego do termo “funcção” para exprimir o modo de se comportar de uma realidade constituída por relações, representa um passo adiante na distinção dos constituintes da frase em termos de papéis desempenhados no contexto, que não tanto em termos de substância. Mas o eclectismo dos pontos de vista lógico e semântico, nascido de factores conjunturais bem definidos (atracção pelos gramáticos e lógicos portroyalinos, prestígio da gramática latina e influência da tradição gramatical especificamente portuguesa), domina ainda a análise das funções gramaticais. Pode dizer-se que, em Portugal, só no último meio de Oitocentos, com a primeira geração de linguistas (destacando-se Francisco Adolfo Coelho e Epifânio da Silva Dias), é que tal análise passa a pautar-se por princípios descritivo-explicativos, quebrados os grilhões que prendiam o estudo gramatical à lógica e mediante o recurso a uma metodologia científica.

Esta metodologia confere com a hora da ciência linguística moderna; e o estudo gramatical das funções então empreendido, acerta também pelo cronómetro do desenvolvimento da glossemática de Louis Hjelmslev e do funcionalismo de André Martinet, duas escolas linguísticas ligadas ao ponto de vista funcional da linguagem humana. Para o que agora interessa, é de notar que, apresentando o enunciado ou a frase uma estrutura não linear, cuja forma, porém, é necessariamente linear, cada unidade estabelece, com o conjunto de que faz parte, relações diversas, que Hjelmslev sistematizou em três tipos – interdependência, determinação (ou subordinação) e constelação (ou coordenação), conforme a natureza do vínculo –, chamando-lhes “funções” (conceito de alargado espectro teórico na glossemática; cf. Hjelmslev 1984: 49-57). Na medida em que a classificação das unidades da frase, que é como quem diz, a identificação das funções gramaticais, depende destas relações (ou ligações ou conexões, consoante os autores), a relação em si mesma, que não pode ser pensada sem os elementos componentes, deve ser tida por elemento linguístico, nem mais nem menos abstracto do que as unidades actualizadas no enunciado. Mais ainda: tanto quanto estas, a relação é objecto de escolha por parte do locutor, em função da experiência a comunicar. Ao transmitir uma mensagem linguística, o falante escolhe determinadas unidades que, mantendo-se íntegras em funcionamentos diversos, têm a mais o valor relacional, também ele resultante de escolhas. As selecções são efectuadas, portanto, tanto ao nível de unidades significativas (por exemplo, Jorge, Paulo, ataca), como ao das relações entre as mesmas estabelecidas (Jorge ataca Paulo ou Paulo ataca Jorge) e cuja expressão, no caso realizada por meio das posições relativas ao lugar do verbo, permite identificar as funções gramaticais de sujeito e complemento directo. É neste sentido que Martinet define a função gramatical como “fenómeno linguístico correspondente à relação entre um elemento da experiência e a experiência global” (1985: 108), entendendo-se por experiência a vivência de algo anterior a qualquer reflexão ou predicação. Note-se, ente parêntesis, que qualquer obra literária mostra bem ser justamente este valor relacional que renova formas de expressão e altera estruturas linguísticas só pelo uso tornadas aparentemente fixas. São paradigmáticos exemplos da poesia de Mário de Sá-Carneiro (estudados por Jorge Morais Barbosa, “Fixou-se ou tem mudado a língua portuguesa? Aspectos linguísticos da obra de Mário de Sá-Carneiro”, no prelo): Serei, mas já não me sou; o Erro e a Sombra existem-me; logo me triunfo; existindo-as mais tarde; horas longes; longes se aglomeram/em torno aos meus sentidos, onde se atestam, ora relações entre verbos e complementos (casos de me e as) inteiramente inovadoras, ora usos nominais do advérbio longe em contextos hoje estranhos (funções gramaticais de atributo e sujeito), do que resulta a ilusória estabilidade do categorial.

Voltando ao início deste artigo, mais do que a individualização substantiva, são as funções gramaticais, isto é, a capacidade de as palavras exercerem uma função e ocuparem um lugar na frase, que conduzem à arrumação linguística das unidades em categorias de substantivos, adjectivos, verbos, advérbios, etc., sobrelevando também este critério sobre as classificações semânticas. As noções que se conhecem por agente, paciente, beneficiário, instrumento, etc., constituem funções semânticas que podem ser actualizadas por meio de várias funções gramaticais, sem que haja correspondência biunívoca entre umas e outras. Dir-se-ia apenas, com Guillermo Rojo, que as funções gramaticais “são a manifestação formal de um determinado significado” (1983: 52).

{bibliografia}

André Martinet: Elementos de linguística geral (1985 [1960]); Id.: “Les fonctions grammaticales”. La Linguistique 13/2, 3-14 (1977); Id.: Syntaxe générale (1985); Antoine Arnauld e Claude Lancelot: Grammaire générale et raisonnée de Port-Royal (1993 [1660]); Antoine Arnauld e Pierre Nicole: La logique ou l’art de penser (1970 [1662]); Diderot e D’Alembert: Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers [artigos “Construction”, “Inversion ”, “Syntaxe”] (1751-1772); Jean-Claude Chevalier: Histoire de la syntaxe (1968); Guillermo Rojo: Aspectos básicos de sintaxis funcional (1983); Louis Hjelmslev: Prolégomènes à une théorie du langage (1984 [1943]); Maria Helena Pessoa Santos: As ideias linguísticas portuguesas na centúria de Oitocentos (2005, UTAD, tese de doutoramento policopiada).