A visão do autor como génio – diferente do comum dos mortais – é uma das pedras de toque do Romantismo. Através dela se justifica para o leitor a estética da expressão do eu autoral. Imaginemos que um autor romântico, desejando despertar o interesse do leitor, argumentasse que sua obra expressa os sentimentos, emoções e pensamentos dele, autor. O leitor, então, poderia contra-argumentar: ” – Esta obra deve ser muito interessante para seus parentes e amigos, que querem conhecê-lo…mas não para mim, que não tenho nenhuma relação com o senhor.” Então, como antídoto para este tipo de resposta do público, a figuração do autor como génio é perfeita: o leitor deve ler a obra, porque ela expressa um eu muito especial, cujos sentimentos, emoções e pensamentos são de qualidade superior. Por isso, a abundância de metáforas do autor como demiurgo, como responsável pela gênese absoluta daquilo que escreve – em outras palavras, como aquele que cria o texto do nada, assim como Deus criou o mundo. Trata-se de uma imagem que se refrata em várias outras, entre as quais: a) a do autor como aquele que tem uma espécie de Deus interior; b) a do autor como profeta – como aquele que enxerga mais longe que o comum dos mortais, e portanto pode ver melhor os caminhos do porvir ; c) a do autor como aquele que sempre produz um texto cuja origem absoluta está no próprio sujeito criador – daí a cobrança desta originalidade dos textos, e a condenação da imitação (Cf. JOBIM, J.L. O autor como sujeito. Rio de Janeiro: UERJ, 1995. Col. A teoria na prática ajuda.V.1)
Os românticos imaginaram o autor como a instância responsável pela gênese absoluta da obra, e valorizaram a irredutibilidade desta obra a qualquer instância precedente. Para o senso comum, a noção de autor parece auto- evidente: “…refere a individualidade empírica responsável, como causa criadora, por objetos com a rubrica de um nome próprio, índice de sua autenticidade e propriedade.” (HANSEN, João Adolfo. Autor. In: JOBIM, José Luís, org. Palavras da Crítica – Tendências e Conceitos no Estudo da Literatura. Rio de Janeiro, Imago, 1992. p. 11-44. p. 11.)
Embora hoje se tenha desenvolvido um certo questionamento em relação à validade universal e atemporal desta idéia, é difícil negar que a arte romântica deixou como uma de suas heranças a idéia do artista como génio, como aquele que cria a obra, tal qual Deus criou o mundo, ou, nas palavras de Schlegel, como aquele que deve criar “cada obra de arte do nada” (Apud BOWIE, A. Aesthetics and Subjectivity. Manchester, Manchester University Press, 1993. p. 54). As metáforas do criador/autor como sujeito privilegiado abundam, talvez porque uma poética que se imagina a expressão de um eu encontra uma melhor justificativa de sua própria existência, a partir do momento em que o idealiza, de maneira que aquilo expressado por este eu pareça possuir uma relevância toda especial para os outros :
Le poète en des jours impies
Vient préparer des jours meilleurs.
Il est l’homme des utopies,
Les pieds ici, les yeux ailleurs.
C’est lui qui sur toutes les têtes,
En tout temps, pareil aux prophètes,
Dans sa main, où tout peut tenir,
Doit, qu’on l’insulte ou qu’on le loue,
Comme une torche qu’il secoue
Faire flamboyer l’avenir!
(HUGO, Victor. Préface des Voix Intérieures)
A aproximação semântica de Deus à figura do autor certamente realça o sentido de potencial criativo ilimitado atribuído à subjetividade autoral, uma das pedras de toque da ideologia romântica, visível mesmo em autores considerados “secundários” no cânon literário estabelecido, como Domingos Gonçalves de Magalhães:
Um Deus existe, a natureza o atesta:
A voz do tempo sua glória entoa,
De seus prodígios se acumula o espaço;
E esse Deus, que criou milhões de mundos,
Mal queira, n’um minuto
Pode ainda criar mil mundos novos.
Os que nos leves ares esvoaçam,
Os que do vasto mar no fundo habitam,
Os que se arrastam sobre a dura terra,
E o homem que para o céu olhos eleva,
Todos humildes seu Autor adoram.
(Suspiros poéticos e saudades. 5. ed. Brasília, Ed. UNB/Minc/Pró-Memória/INL, 1986. p. 69.)
Ainda em 1759, nas Conjectures on Original Composition, de Edward Young, podemos ler que “genius, is that god within” (Apud ABRAMS, M. H. The mirror and the lamp – romantic theory and the critical tradition. Oxford, Oxford University Press, 1971) Hans-Georg Gadamer crê que o mito estético da imaginação livremente criativa, a qual transforma experiência em literatura, e o culto do génio – que pertence a este mito – provam somente que, no século XIX, não era mais auto-evidente a tradição da mímesis como fundamento das práticas artísticas. (Ibidem, p. 133.) Em outras palavras, a poética da imitatio e da emulatio, baseada na crença de que há modelos “clássicos” a serem imitados e/ou emulados deixa de ser um pressuposto geralmente compartilhado pelo artista e seu público.
A. Bowie. Aesthetics and Subjectivity (1993); .José Luís Jobim, org. Palavras da crítica – tendências e conceitos no estudo da literatura (1992); José Luís Jobim: A poética do fundamento – ensaios de teoria e história da literatura (1996); M. H. Abrams: The mirror and the lamp – romantic theory and the critical tradition (1971).
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