Reza a lenda que a palavra “Gestalt” surgiu, em 1523, em uma das muitas traduções da Bíblia, onde significava “o que é colocado diante dos olhos”. A partir dessa tradição, lendária ou não, o significante “Gestalt”, que circula, eruditamente, desde as duas primeiras do século passado, nos vários campos do saber do mundo inteiro, indica uma integração de partes, em oposição à soma, que resultaria num todo. Na canção “Como dois e dois”, o poeta, musicista e cantor (um aedo pós-moderno, sem dúvida) brasileiro Caetano Veloso inscreve, depois de um jogo insistente de oxímoros, este refrão: “tudo certo como dois e dois são cinco”, verso contundente que explicita, esteticamente, um conceito, deveras complexo.
Se toda tradução já constitui, per se, uma interpretação, o termo alemão “Gestalt” encontra, em português, estes correspondentes: “forma”, “estrutura”, “configuração”, que, em conjunto, dariam conta do significado daquele signo original. É como se o sentido do significante alemão resultasse de uma Gestalt, configurando, estruturando, enformando, ao fim e ao cabo, um jogo sígnico triádico, que tangenciaria uma espécie de aporia ou, então, uma tautologia. Um outro repertório de signos metaforiza a categoria “Gestalt”: fulguração, iluminação, centelha, relampejo, revelação – verbos que seriam a tradução de “eureka” e “insight”. No zen-budismo, fala-se de “satori” – 悟 -, palavra japonesa, que se traduziria, no vernáculo, por “entender”, e apresenta o fenômeno do “Despertar Repentino”, o lugar da distinção entre experimentador e experiência, sabedor e saber; significa, então, o momento mágico da percepção, que se manifesta, por exemplo, na composição de um haicai, forma poética coruscante.
Consolidando-se, ao longo do século XIX, como uma vertente filosófica, a psicologia estudava o comportamento, as emoções e a percepção, e vigorava o atomismo, corrente que buscava compreender o todo através do conhecimento das partes: uma imagem só seria percebida por meio dos seus elementos. Em oposição a esse processo, nasceu a Gestalttheorie (Teoria da Gestalt), voltada, principalmente, para a percepção visual em obras de arte. A Psicologia da Gestalt, ou Psicologia da Boa Forma, ou, ainda, Gestaltismo, Configuracionismo, foi protagonizada por Kurt Koffka (1886-1940), Wolfgang Köhler (1887-1967) e Max Werteimer (1880-1943), professores na Universidade de Frankfurt, que, baseados nos estudos da psicofísica, que articula a forma e a percepção, postularam não se poder conhecer o todo senão por suas partes e as partes serem conhecidas apenas por meio do conjunto; o ponto de partida reside, então, não mais no elemento, como queriam o associacionismo e o atomismo, mas na forma total e no fato da consciência, posto que esta forma nunca é reduzível a uma soma ou combinação de elementos; percebemos conjuntos de elementos ou forma, isto é, uma configuração, uma estrutura, uma organização.
Em seu imprescindível Diccionario de filosofía, J. Ferrater Mora (1912-1991), tratando da categoria “estrutura”, considera: “Uno de los más importantes e influyentes usos de dicha noción se encuentra en la psicología, dentro de la llamada Gestaltpscychologie, expresión que ha sido traducida a veces por ‘psicología de la estructura’ y a veces por ‘psicología de la forma’. El ‘gestaltismo’, como se lo llama asimismo, es una de las grandes manifestaciones del estructuralismo del siglo XX y ha contribuido al florecimiento de éste tanto por lo menos como las concepciones estructurales lingüísticas, a partir ya de Ferdinand de Saussure” (p. 1127). A forma, gestalticamente falando, possui duas características: as sensíveis, inerentes ao objeto, e as formais, que incluem as nossas impressões sobre a matéria, que se impregna de nossos ideais e de nossas visões de mundo. A união destas sensações gera a percepção: o conjunto é mais que a soma dos seus elementos; assim deve-se imaginar que um terceiro fator é gerado nesta síntese. Existe, por exemplo, grande possibilidade de se ver primeiro um cubo na figura abaixo, embora se trate de um desenho de uma série de linhas:
Essa figura é usada para exemplificar a lei de Prägnanz, segundo a qual a percepção de uma forma segue a melhor Gestalt possível, isto é, o mais harmônico, regular, ordenado e simples.
Voltando ao clássico exemplo da cama, apresentado por Platão, pode-se dizer, no código da Gestalt, que uma cama é muito mais do que quatro pés, um encosto e um lugar para se deitar, pois é uma idéia, distinta dos elementos que a compõem: uma cama é uma cama, podendo ser feita de madeira, acrílico, plástico, ferro ou de outra qualquer matéria-prima. No âmbito filosófico (a Gestalt chegou a ser considerada uma filosofia da forma), pode-se dizer que o ego cogito (eu penso) cartesiano cede lugar a um ego cogito cogitatum (eu penso o que é pensado), conforme Husserl (1859-1938), que foi, de fato, mestre de Koffka, um dos papas desta escola: “não há uma ruptura entre a consciência – ou sensação, no caso da escola da forma – e o mundo. O ‘resíduo’, a que se pode chegar por uma redução, uma dissecação do real – ou de uma forma – não é o ‘eu penso’, mas a correlação entre o eu penso e o objeto de pensamento ( cogitatum). Em suma, não existiria consciência enquanto tal, mas toda consciência seria consciência de”, consciência de algo consciente.
Observando-se o comportamento do cérebro durante o processo da percepção, chegaram os teóricos da Gestalt à elaboração de leis que regem a faculdade de conhecer os objetos. Estas normas podem ser resumidas como:
– Semelhança: Objetos semelhantes tendem a permanecer juntos, seja nas cores, nas texturas ou nas impressões de massa destes elementos. Esta característica pode ser usada como fator de harmonia ou de desarmonia visual.
– Proximidade: Partes mais próximas umas das outras, em um certo local, inclinam-se a ser vistas como um grupo.
– Boa Continuidade: Alinhamento harmônico das formas.
– Pregnância: Este é o postulado da simplicidade natural da percepção, para melhor assimilação da imagem. É praticamente a lei mais importante.
– Clausura: A boa forma encerra-se sobre si mesma, compondo uma figura que tem limites bem marcados.
– Experiência fechada: Esta lei está relacionada ao atomismo, pensamento anterior ao Gestaltismo. Se conhecermos anteriormente determinada forma, com certeza compreendê-la-emos melhor, por meio de associações do aqui e agora com uma vivência anterior.
Em sua aplicação ao campo estético, pode-se considerar a Gestalt ou boa forma como a “proporção áurea” dos geômetras e arquitetos gregos, ou seja, a razão entre a+b e a coincide com a razão entre a e b.
Em “O Homem Vitruviano” (1490), leitura mais célebre, feita por Leonardo da Vinci (1452-1519), da famosa passagem do arquiteto romano Marcus Vitruvius Pollio (século I a.C. ), na sua série de dez livros intitulados De Architectura (40 a. C.), um tratado em que, no terceiro livro, descreve as proporções do corpo humano; Leonardo aplica as idéias de proporção e simetria, tanto à anatomia humana quanto à concepção clássica da beleza humana: descreve e desenha uma figura masculina desnuda separada e simultaneamente em duas posições sobrepostas com os braços inscritos num círculo e num quadrado, onde a cabeça é calculada como sendo um oitavo da altura total; o desenho e o texto são chamados, também, de “Cânone das Proporções”. Já no caso da música, em uma melodia, cujas notas são aumentadas todas em um tom, o todo é a configuração de seus elementos, mas também difere de acordo com os elementos em si. Outra estruturação da Gestalt pode ser indiciada no trompe-l’oeil, técnica sedutora da pintura, sobretudo no muralismo, e da arquitetura, que exemplifica, maravilhosamente, a lei gestáltica da segregação de figura e fundo; com truques de perspectiva, cria-se uma ilusão ótica que faz aparecerem objetos ou formas que não existem realmente. A técnica do Trompe l’oeil , de que René Magritte (1898 -1967) é artista emblemático, produz imagens que têm a intenção de um duplo maravilhamento : primeiramente, o espectador pergunta-se se aquela imagem é irreal, pergunta-se o que é real; também o fruidor da obra admira a virtuosidade do artista em criar imagens tão falsamente fascinantes.
Como fantástica linguagem de arte, o cinema constitui um exemplo esplêndido de Gestalt, na medida em que se baseia numa ilusão ótica (oh doce mistério da linguagem cinematográfica!): composto por fotogramas com imagens estáticas, um filme provoca uma ilusão de ótica de movimento, causada pelo fenômeno da pós- imagem retiniana, dado que qualquer imagem que vemos tarda um pouco a se apagar em nossa retina. Sobrepondo-se na retina do espectador, esse percebe um movimento, quando o que, na realidade, se projeta na tela é uma seqüência de vinte e quatro slides por segundo.
Talvez um dos grandes significados da Teoria da Gestalt seja o de colocar um espelho face à consciência do ser humano, revelando-lhe o quanto de ilusório é todo conhecimento, seja auto-conhecimento, seja alter– conhecimento. A arte nossa de cada dia, em todas as suas formas e performances, faz eclodir a Gestalt, porque tudo é um jogo e o homo ludens (Huizinga) é parte e todo deste jogo, vital e estético, virtual e real, sensorial e metafísico.
ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual. Uma psicologia da visão criadora (1986). BLOCK, Ana Maria. Psicologias (1989). FERRATER MORA, J. Diccionario de filosofía (1994).
Comentários recentes