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O termo foi definido no Dictionnaire (1872) de Emile Littré como “Traité des lettres, de l’alphabet, de la syllabation, de la lecture et de l’écriture”; e em 1952, o linguista Ignace J. Gelb propôs a criação de uma “ciência da escrita” a que chamou gramatologia (do gr. gramma, atos “carácter de escrita, letra, texto”). Hoje, o vocábulo mostra-se coberto de equivocidade, o que, por um lado, faz tropeçar leituras desprevenidas, mas, por outro, favorece o campo conceptual e técnico da linguística moderna.

A guinada foi dada em França pelo filósofo Jacques Derrida. Entre a gramatologia fundada por Gelb em A study of writing (1952) e o projecto derridiano de uma ciência gramatológica (J. Derrida 1967) não existe solução de continuidade na forma como o termo é usado. Nem por isso daqui se segue que, fora de Gelb ou do estudo tipológico dos sistemas de escrita, a gramatologia se torna uma “pseudo-science” (Auroux 1994: 160). É porém verdade que, no quadro da investigação linguística sobre a escrita, se reconhece o trilho aberto pela gramatologia de Gelb, concebida como estudo dos “principes généraux qui gouvernent l’emploi et l’évolution de l’écriture, et cela d’un point de vue comparatif et typologique” (1973: V). Comporta esta definição dois planos de análise paralelos. Por um lado, o estudo histórico de alfabetos e de outros sistemas de representação gráfica da língua falada, desenvolvidos por sociedades humanas: são aqui tarefas a identificação de propriedades dos diferentes tipos de sistemas e o exame da sua evolução, segundo leis que permitem traçar percursos de desenvolvimento (do pictograma ao alfabeto, passando pelo ideograma e silabário) desde a origem até à actualidade. Para além de descritivo, este estudo histórico é comparativo-tipológico, no sentido em que visa a classificação por categorias dos diversos sistemas de escrita. Mas há um outro plano da análise gramatológica: o da reflexão sobre a própria actividade de escrita no seio de outros sistemas semióticos, ao mesmo tempo que, uma vez concebida a escrita como um sistema gráfico de representação da língua falada, se definem princípios e técnicas gráficas de notação da linguagem.

Estas concepções não resistem à “descontrução” de Jacques Derrida. Ainda que se designem, por igual, com a mesma voz gramatologia, escrita –, os conceitos não apenas arrastam consigo uma pluralidade de interpretações literário-filosóficas, como se tornam discursivamente desobedientes à disciplina linguística por desmontagem e distorção (assumidas como atitude) dos postulados do estruturalismo saussuriano. Nesta estratégia de desconstrução, é todo o problema de uma terminologia científica ou secularmente dominante na cultura ocidental o que se levanta. Em Derrida, o conceito tutelar e histórico de gramatologia não é um projecto a desenvolver, nem tão-pouco assumido ou sequer pensado como tarefa, mas antes móbil para elaborar um pensamento sobre a escrita e as suas relações com a língua falada; pensamento que está com a ciência linguística e aquém dela. O vocábulo escrita, depois de servir para significar a transferência de uma substância fónica primária para uma substância gráfica secundária, é utilizado, sem solução de continuidade, para dizer sucessivamente arquiescrita/arquiescritura, logocentrismo, arquimarca, diferença, isto é, cai em excessiva utilização como se à procura do seu próprio sentido. Esta bulimia terminológica, por outro lado, representa a glória da escrita com a consequente subversão do primado do oral sobre o escrito na descrição linguística. Ora, a subsidiariedade dos sistemas escritos em relação à natureza primária dos sistemas orais era um postulado da tradição filosófica ocidental que o estruturalismo linguístico recuperara para o seu próprio desenvolvimento. Inverter esta secundariedade atinge portanto os alicerces do edifício linguístico e daí dificilmente poderiam deixar de resultar rotas de originalidade que desviaram a direcção dos estudos gramatológicos.

Outro rumo ainda têm prosseguido tais estudos nos nossos dias, mercê da própria investigação gramatológica. Estudos sobre “gramática e gramatologia”, “gramatologia grega”, “dicionarística e gramatologia luso-brasileira”, que se podem compulsar no âmbito dos estudos linguísticos, mostram que a gramatologia como “ciência da escrita” foi acumulando acepções que permitiram o trânsito fácil para “ciência da gramática”. É que o sistema da escrita alfabética (com raízes na escrita fenícia) foi decisivo para o desenvolvimento da investigação gramatical. À técnica de transcrição da língua oral por meio de sons (vogais e consoantes) seguiu-se a análise desse conjunto de unidades e das suas múltiplas combinações (domínios do léxico e da sintaxe) para regulamentar o comportamento linguístico dos falantes e fornecer-lhes normas da arte de bem escrever. Desta forma se reconhece a origem da criação gramatical, que não tinha realização para além ou para aquém da palavra escrita. Aos produtos desta criação se atém a actual gramatologia, enquanto reconstituição arqueológica de paradigmas científico-linguísticos e descrição crítica da análise linguística aí praticada. Gramática como conhecimento, predicada pela palavra ciência, é assim a acepção que autores nacionais do campo linguístico-filológico conferem aos seus estudos de gramatologia da língua, situando-os no campo da historiografia linguística ou história das ideias linguísticas.

Remanesce, porém, como factor de alguma perturbação, uma flutuação terminológica que é da responsabilidade da linguística. O notável desenvolvimento dos estudos de historiografia linguística (sobretudo em relação a línguas românicas e a línguas extra-europeias gramaticalizadas por missionários europeus) trouxe consigo a criação de largo número de neologismos que enriqueceram o campo da terminologia linguística. Manejados com desembaraço, tais termos permitem o trânsito para vários conteúdos cardeais. Ora, a gramatologia é frequentemente tomada por gramaticologia e mesmo gramaticografia, dois vocábulos que, na sua diversidade de composições (-logiadiscurso, ciência” e -grafia “escrita, descrição”), permitem correlativamente a alusão unívoca a “ciência da gramática”. Se a raiz grega -grafia remete os historiógrafos da linguística para uma sistemática arqueologia de textos, fontes e paradigmas precursores, verifica-se também que os seus pressupostos epistemológicos são da ordem da interpretação e do comentário crítico. Significa isto que a gramatologia/gramaticologia pode ser encarada como uma teoria da gramaticografia, em qualquer dos casos com o sentido de “ciência da gramática” e “gramática como ciência”, vale dizer, estudo da configuração de ideias e teorias linguísticas plasmadas em sucessivas descrições gramaticais.

{bibliografia}

Carlos Assunção: Gramática e gramatologia (1997); Ignace J. Gelb: A study of writing. The foundations of grammatology (1952) [trad. fr. Pour une théorie de l’écriture, 1973]; Jacques Derrida: De la Grammatologie (1967); Jean Greish: Herméneutique et grammatologie (1977); Sylvain Auroux: Histoire des idées linguistiques (1989) [1992, vol II; 2000, vol. III]; Id.: La révolution technologique de la grammatisation (1994).