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À interpretação como restauração e confiança no sentido opõe-se, desde Nietzsche e Freud ,a ideia de interpretação concebida como desmistificação e redução de ilusões do passado. O impacto desta ideia crítica na cultura e filosofia ocidentais obriga, segundo P. Ricoeur, a repensar o sentido da própria Hermenêutica, uma vez que com Nietszche , Freud e Marx a atitude de crítica e suspeita contra a Filosofia e cultura tradicionais, baseadas na inocência do Cogito, aparece ligada à temática da interpretação-dissolução das grandes iusões da consciência humana . Pela primeira vez , o conceito de interpretação surge ligado a uma atitude de suspeita relativamente à linguagem falada pelos homens e falada aos homens. É fundamentalmente desconstrução. Remete para uma problemática nova que já nada tem a ver com o tradicional problema do mal-entendido ou mesmo com o do erro concebido em sentido epistemológico nem tão pouco com a problemática da mentira em sentido moral, mas sim com a temática da ilusão, do desvio e do desmascararamento como modo de ser do existir humano.

O conceito de interpretação alcança assim toda uma nova extensão.O seu novo núcleo é a relação consciência -ilusão .Assim sendo,o objecto da interpretação já não é apenas uma escrita ou texto que se oferece à compreensão mas todo o conjunto de signos capazes de serem considerados como um texto a decifrar pelo seu duplo sentido, sejam eles constituídos por um sonho , um sistema nevrótico, um rito , um mito, uma obra de arte ou pela própria crença.A ideia de texto aparece agora liberta da ideia de escrita .Freud, nomeadamente,fala da narrativa do sonho como de um texto inteligível ao qual a interpretação substitui um outro mais inteligível. Também para Nietszche a interpretação não tem já que ver com a intencionalidade da linguagem mas sim com a tarefa de uma destruição de todos os ídolos da consciência falsa .

Depois de Freud Nietzsche e Marx instala-se no Ocidente a dúvida quanto à consciência. Suspeita-se radicalmente da ideia tradicional segundo a qual o sentido e a consciência do sentido podem coincidir.Procurar o sentido não é já soletrar a consciência do sentido mas, implica, pelo contrário, todo um desfazer das cifras com que a consciência – agora uma instância epidérmica e derivada – tem envolvido a realidade.Para os três, a própria consciência não é o que acredita ser. Subjaz-lhe algo latente – o psiquismo inconsciente, a vontade de poder, o ser social – que deve ser decifrado e revelado por detrás de todas as manhas do sentido consciente.Uma nova relação entre o que é patente e o que está latente estrutura agora a consciência e todo o conjunto das suas manifestações simbólicas. A dimensão manifesta do sentido simula sempre algo de mais profundo que deve ser interpretado justamente a partir das suas traças ou expressões.

A genealogia da moral no sentido de Nietzsche , a teoria marxista das ideologias e a teoria freudiana dos ideais e ilusões são “três processos convergentes de desmistificação “ que criam “ com e contra os preconceitos da época uma ciência mediata do sentido irredutível à consciência imediata deste.A suspeita quanto às ilusões da consciência é agora o motor verdadeiro de toda a interpretação, que não pode já entender-se como uma recolecção do sentido.Pelo contrário, face à ilusão, à função efabuladora da consciência, a hermenêutica desmistificadora exige a rude disciplina da necessidade( DI,44).Contesta-se radicalmente a expectativa ou confiança no núcleo poético da linguagem própria da hermenêutica que acredita na dimensão intencional dos símbolos. À interpretação cabe apenas arrancar as máscaras e disfarces para chegar a um originário não linguístico nem poiético e já não desimplicar o sentido e o objecto referidos.

A Hermenêutica aparece assim como uma questão que não é pacífica. Muito pelo contrário é percorrida por linhas divergentes e até rivais. Segundo Ricoeur, é este um dos principais méritos da hermenêutica da suspeita: fazer-nos tomar consciência que não existe uma hermenêutica universal ; que não existe um canône universal para a interpretação, apenas linhas divergentes e até opostas( D.I. 35). E que esta tensão é a própria condição da interpretação, a expressão mais verídica da nossa Modernidade (36). Oscilamos hoje entre a vontade de escuta e a vontade de suspeita, entre o voto de rigor e o voto de obediência. Mas como também nos diz o autor “talvez o iconoclasmo mais extremo pertença à restauração do sentido” (36). A Hermenêutica da suspeita rasga assim todo um novo horizonte para o próprio problema hermenêutico da confiança: o de uma confiança já não ingénua mas fundamentalmente pós-crítica. Para Ricoeur ela é valiosa pelo seu voto de rigor , pela noção de símbolo que pressupõe (cf.símbolo) e pelo modo como obriga a Hermenêutica a integrar a temática do conflito das interpretações (cf.conflito). Deve, portanto, ser reintegrada pela atituda hermenêutica da confiança ,pois enquanto atitude de pura suspeita é nihilista , coisa que o não eram nem Freud, nem Nietzsche nem Marx.

{bibliografia}

P. RICOEUR, Le Conflit des Interprétations. Essais d´Herméneutique ,Paris, Seuil,1969; ID., De L´Interprétation. Essai sur Freud, Paris, Seuil, 1965; P.L. BOURGEOIS, Extension of Ricoeur‘s Hermeneutic,The Hague, Martinus Nijhoff, 1975; FRANÇOIS DOSSE, P.RICOEUR,Les Sens D´Une Vie, Paris, La Découverte,1997.