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Nome
fictício adoptado por um autor na assinatura de uma obra, como
no caso do bardo Ossian, figura literária criada pelo poeta
escocês MacPherson (1736-1796), com uma personalidade própria e
uma obra que o distingue do próprio criador, cujos trabalhos se
dizem ortónimos (do próprio autor), por oposição. Não deve ser
confundido com pseudónimo ou nome falso, distinção que o mais
célebre criador de heterónimos, Fernando Pessoa, fez questão de
estabelecer com rigor: "A obra pseudónima é do autor em sua
pessoa, salvo no nome que assina; a heterónima é do autor fora
da sua pessoa; é duma individualidade completa fabricada por
ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer
drama seu" (Tábua Bibliográfica, Presença, nº 17,
). Pessoa criou inúmeras personalidades literárias para além da
sua própria, destacando-se o engenheiro futurista e decadentista
Álvaro de Campos, o poeta metafísico Alberto Caeiro e o poeta
clássico Ricardo Reis. A origem destes heterónimos tem sido
objecto de muitas investigações, a partir do próprio testemunho
de Pessoa, que, em carta a outro poeta, Adolfo Casais Monteiro,
dirá: “a origem mental dos meus
heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a
despersonalização e para a simulação.” (Carta a Adolfo Casais
Monteiro, 13-1-1935, publicada na revista presença, nº
49, 1937). Esta explicação psicológica reduz injustamente a
natureza complexa da criação heteronímica, porque se trata tanto
de um processo de desdobramento premeditado da personalidade
como de um processo de criação literária de um novo autor, com
nova identidade estilística, ideológica, cultural, etc. George
Monteiro chama correctamente a atenção para o facto de a criação
heteronímica em Pessoa ter um predecessor imediato que não deve
ser ignorado. Trata-se do poeta victoriano Robert Browning, que
criou um género próprio para uma outra dimensão literária em si
próprio (o monólogo dramático), que se aproxima em tudo de uma
criação heteronímica. “Mas Pessoa, conclui George Monteiro, foi
um ponto mais além de Browning. Ele criou primeiro uma poesia em
que o drama existiu entre as pessoas por ele criadas — o que
elas pensaram e disseram entre si próprias — e qualquer acção
para o exterior de que tenham sido capazes, e criou então depois
o drama total de discípulos e, onde seja o caso, de amizade
entre a sua coterie de poetas imaginários e reais.” (1990,
p.285).

Um
heterónimo pode ser também uma criação colectiva, por exemplo a
personagem Fradique Mendes, sob cujo nome escreveram quase todos
os membros do grupo do Cenáculo, como Eça de Queirós, Oliveira
Martins, Batalha Reis ou Antero de Quental. Trata-se, neste caso
de uma criação meramente intelectual e literária, que se
aproxima da natureza de um mito. O
objectivo de Eça em escrever a Correspondência de Fradique
Mendes, heterónimo colectivo de um grupo de intelectuais, é não
o de descrever a obra do autor Fradique (porque o autor não
existe, a rigor), mas o de traçar "as feições desse
transcendente espírito", portanto, analisar tudo o que difere da
criação de uma figura fictícia e não propriamente do mundo
criado por essa figura. Não interessa a Eça que Fradique produza
uma obra, mas que seja antes o eterno potencial criador de uma
obra. Assim se constróem todos os mitos, que valem por aquilo
que vêm a ser potencialmente e não por aquilo que deixaram
criado. Um mito faz-se mito por ter agido de forma
extraordinária; nunca em mitologia se analisa o que um herói
mítico criou, mas sim o que essa figura fez e suas consequências.
O que interessa num mito não é o seu discurso mas a manifestação
da sua força em potência. É o caso do mito Fradique Mendes. Não
é por acidente que Eça se mostra mais interessado em reflectir
"sobre a natureza" da obra de Fradique, o que deve significar
acima de tudo que o romancista pretendia reflectir sobre as
potencialidades da existência verosímil de uma obra toda ela
construída nos limites da imaginação. É
curioso recordar a crítica radical que Sant’Anna Dionísio
dirigiu à criação ficcional de Eça nas figuras de Jacinto e
Fradique: «Se há, pois, figura absurda entre as muitas figuras
de tendência que Eça nos dá na sua obra, é essa, a de
Fradique. A atribuição do insucesso de uma inteligência superior
à carência do objecto digno de si própria é um dos parologismos
mais frustes que se pode cometer ao justificar a pequenez das
realizações espirituais de qualquer homem real ou possível.»
("Um parologismo do romancista: Jacinto e Fradique", in Livro
do Centenário de Eça de Queirós
, org. por Lúcia Miguel
Pereira e Câmara Reis, Edições Dois Mundos, Lisboa e Rio de
Janeiro, 1945, p.549-550). Esta crítica resulta da incompreensão
entre a função literária do autor e a função das suas criações
heteronímicas, que não têm que responder por nenhum padrão
realista.

{bibliografia}

Américo António Lindeza Diogo: Literatura & Heteronímia: sobre Fernando Pessoa (1992); Dionísio Vila Maior: Fernando Pessoa: Heteronímia e Dialogismo: O Contributo de Mikhail Bakhtine (1994); Enrique J. Nogueras: “Notes on the Concept of Heteronym”, in Actas do II Congresso Internacional de Estudos Pessoanos (1985); George Monteiro: “Pessoa: discípulo de Robert Browning”, in Actas do IV Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, I Vol. (1990); J. C. R. Green: Fernando Pessoa: The Genesis of the Heteronyms (1992); Luís Filipe B. Teixeira: O Nascimento do Homem em Pessoa: A Heteronímia como Jogo da Demiurgia Divina (1992); Taborda de Vasconcelos: Pseudónimos e Heterónimos na Literatura Portuguesa (1996).