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A palavra história apresenta uma dualidade referencial: designa tanto a realidade de uma determinada época (res gestae) como o discurso científico sobre o passado (historia rerum gestarum). Algumas línguas (entre as quais o português) apresentam um terceiro sentido: o de conto, narrativa imaginária, ficção. A fluidez polissemântica da palavra não é acidental. Assinala a ambiguidade da relação que mantém o discurso histórico com o seu objecto: pretendendo-se discurso verdadeiro sobre as res gestae, a historiografia “une o lado subjectivo com o lado objectivo e denota tanto a historia rerum gestarum como as próprias res gestae abarcando tanto o que aconteceu como a narração do que aconteceu”.

Na realidade a história decide do que é “histórico” ou seja, digno de ser preservado pela memória dos homens, e do que o não é, construindo um mapa cognitivo, um “plano do passado[1]”, que tende geralmente a substituir e apagar a própria realidade histórica. Por sua vez, a homonímia entre a história-ciência e a história-ficção chama a atenção para a estrutura comum aos dois géneros discursivos, postulando por um lado que a história é naturalmente narrativa e sugerindo pelo outro uma possível concorrência entre dois discursos que se disputam a mesma realidade.

Essa rivalidade potencial já estava presente nas distinções que Aristóteles estabeleceu entre o discurso histórico e a ficção. Para Aristóteles, tanto a história como a literatura representam uma mimèsis: “imitação” ou melhor, “representação” de uma acção temporal. As duas efectuam uma operação de arranjo/disposição de uma sequência de acontecimentos numa intriga. A diferença consiste no estatuto ontológico da sequência de acontecimentos narrados: a matéria da história é o factual, o vero (a história conta o que realmente tem acontecido) ao passo que o domínio da literatura é o possível, o verosímil, o simulacro da própria história ( a poesia conta o que teria podido acontecer). À narração real da história opõe-se a narração fingidamente real da literatura.

Com a constituição do campo simbólico literário no século XVIII e a aquisição do estatuto de ciência pela história no século XIX, entre os dois discursos abre-se uma verdadeira clivagem epistemológica que os demarcará durante muito tempo como duas formações discursivas rivais e antagónicas, pertencentes aos campos opostos da ciência e da arte. Definida desde os seus primórdios como o próprio paradigma da verdade: (“Quem ignora que a primeira lei da história é não dizer nada falso? E a segunda, ousar dizer toda a verdade?” perguntava Cícero no De Oratore, II, 15, 62), a história chegou a atribuir-se, no século XIX, com o historicismo, o domínio único e absoluto do real, considerando a escrita uma operação secundária, inerente à retórica da comunicação, mas sem repercussões sobre a constituição do objecto histórico.

O discurso histórico acaba assim por ignorar o seu carácter textual, apresentando-se seja como discurso puramente denotativo /literal/ seja como discurso que adopta uma forma literária por razões estratégicas, de comunicação. A discriminação clássica entre o vero e o verosímil desliza para uma oposição de categorias lógicas: vero/falso, verdade/mentira, aliás já defendida por Platão. Vista sob este ângulo, a história teria um contrato absoluto com a verdade objectiva, enquanto a literatura se situaria, por oposição, no domínio da invenção, que só obliquamente alude à verdade. Assim, a ficção acaba logicamente por cair no domínio da mentira e sobre ela pesará uma recorrente acusação de irresponsabilidade epistemológica, que a literatura tentará superar por vários meios. O romance histórico, na sua forma clássica, instituída por Walter Scott com o ciclo de Waverley, ambicionará completar o discurso histórico, trazendo à história erudita «a vida» que lhe faltava pelo recurso ao imaginário. O romance realista competirá com o discurso histórico no plano da história imediata, tentando como Balzac constituir mapas cognitivos completos e estruturados da sociedade sua contemporânea.

O corte entre a história e a literatura como géneros discursivos foi posto em causa pela teoria e pela arte contemporânea. Michel Foucault pergunta-se na Arqueologia do saber[2]" se é legítimo admitirmos como natural a distinção das grandes formações discursivas que opõem umas às outras a ciência, a literatura, a filosofia, a história, a ficção, como se de grandes individualidades históricas se tratasse. Longe de apresentar articulações naturais do campo discursivo, os cortes genéricos são "categorias reflexivas, princípios de classificação, regras normativas, tipos institucionalizados”, marcados pela historicidade, e que devem ser eles próprios submetidos à análise. Não possuem caracteres intrínsecos, autóctones e universalmente recognoscíveis". A História e a literatura são categorias recentes e a sua articulação não pode ser aplicada às culturas pertencentes ao passado a não ser através de "uma hipótese retrospectiva e um jogo de analogias formais ou de semelhanças semânticas[3]"

Convenções culturais e ideológicas, as tipologias discursivas são modalidades de organização “tão inevitáveis como derisórias", que, destinadas a ordenar o universo discursivo, não conseguem em última instância outra coisa senão torná-lo ainda mais confuso. ”Somos condenados a pensar uma mistura inextricável do mesmo e do outro, uma rede de relações permanentemente aberta[4].” Se aceitarmos, com Jean-Michel Adam[5] que:

“Discurso = Texto + contexto

Texto = Discurso – contexto”

então as diferenças entre a história e a ficção poderiam ser procuradas seja ao nível contextuai, propriamente discursivo, seja ao nível textual. Sabemos assim de que discurso se trata graças às várias marcas que nos informam sobre o estatuto oficial do texto e a sua pertença a uma instituição cultural: o pacto genérico garantido pelo título, o subtítulo ou o próprio autor, a presença ou a ausência do aparelho científico (notas, comentários, prefácios, posfácios). É de notar que esses traços definem os dois tipos discursivos como arquitextos[6], isto é, como elementos situados dentro de séries genéricas, o que permite várias transgressões. Os romancistas imitam vários tipos de paratextos específicos da história ou apelam para a forma ostensivamente intertextual das obras históricas, criadora de heterogeneidade e de variedade discursiva, a fim de simular a seriedade científica e conseguir seria ou parodicamente um efeito de real (tanto de re, como de dictu). Os historiadores por sua vez podem evitar ou ocultar o paratexto científico, deslocando as notas, como faz Georges Duby, para o fim do livro, a fim de aproximar o mais possível o seu texto do modo de apresentação de uma obra artística, entendendo que a escrita, longe de representar na história um aspecto superficial, de ordem redaccional, constitui pelo contrário um problema interno da disciplina. A história, diz Georges Duby, “ é acima de tudo uma arte, uma arte essencialmente literária. A história só existe pelo discurso. Para que seja boa, é preciso que o discurso seja bom[7].”

O estatuto oficial do texto pode modificar-se sem que o texto se modifique, pela simples mudança do contexto ou do protocolo de leitura. Podemos ler um texto histórico como um texto de ficção, optando pelo que Gerard Genette[8] chama "o regime condicional da literariedade" que "depende de uma apreciação estética subjectiva e sempre revogável" do texto. Uma série de textos pertencendo à literatura não-ficcional em prosa podem ser recuperados, em função das circunstâncias, como objectos de prazer estético[9], chegando até a constituir séries integráveis em domínios diferentes do original: é o que acontece, por exemplo, com as obras historiográficas de estatuto ambíguo ( as crónicas medievais) que tanto podem pertencer à série literária (Fernão Lopes é o primeiro monumento de prosa artística em português), como à série historiográfica (a sua obra é uma primeira amostra de metodologia científica, em sentido moderno). Uma obra de história pode assim sobreviver à sua função científica ou documental através de uma decisão individual ou colectiva que faz passar para o primeiro plano as suas qualidades estéticas. Pode ser lida como ficção e por motivos menos nobres, devido ao desconhecimento por parte do leitor da enciclopédia cultural subjacente ao texto e à impossibilidade da verificação do seu contracto com o real na ausência do universo referencial, o que induz uma leitura que privilegia os aspectos estéticos ou a fertilidade imaginária da obra.. A poética condicionalista responde à pergunta: "Em que condições ou em que circunstâncias pode um texto, sem nenhuma modificação interna, tornar-se obra[10]", que substitui a interrogação tradicional, essencialista: “O que é a arte?” por outra: “Quando é arte[11]”.

Além do nível da literariedade – circunstanciada e mutável, as diferenças entre a História e a ficção foram procuradas ao nível propriamente textual. Para alguns investigadores não existe nenhuma característica interna do texto que o pudesse situar categoricamente num ou noutro discurso na ausência do contexto. John Searle, por exemplo, contesta a existência de quaisquer "propriedades textuais, sintácticas ou semânticas que poderiam permitir a identificação de um texto enquanto obra de ficção[12]", enquanto para um historiador como Hayden White a diferença entre a história e uma representação ficcional da realidade é “uma questão de grau e não de tipo/espécie[13]”, as duas pertencendo “à mesma classe do ponto de vista da estrutura narrativa[14]".

A questão da narratividade foi um dos pontos mais debatidos pela teoria literária e historiográfica contemporânea. A narratologia dedicou-se a descobrir se a narrativa factual (de que a narração histórica é uma das espécies) e a narrativa ficcional se comportam de forma diferente em relação à história que relatam. Depois de aplicar às narrativas factuais o protocolo estabelecido no Discours du récit: ordem, velocidade, frequência, modo e voz, Gérard Genette conclui que deve ser fortemente “atenuada a hipótese de uma diferença a priori de regime narrativo entre ficção e não-ficção[15] Se considerarmos as práticas reais, devemos admitir que “os dois regimes não são tão distantes um do outro como pretendem, nem tão homogéneos como poderíamos supor[16]”, podendo haver mais diferenças entre duas narrativas de ficção do que entre uma ficcional e outra histórica.. As diferenças mais notáveis, que podem ser consideradas “traços distintivos da diferença entre os dois tipos de texto[17]”, parecem afectar essencialmente as estratégias subjectivizantes, características modais intimamente ligadas à “oposição entre o saber relativo, indirecto e parcial do historiador e a omnisciência elástica” de que usufrui o ficcionista.

“Internacional, trans-histórica, transcultural[18], segundo Roland Barthes, a narrativa “é um meta-código, um universal humano[19]. que pode ou não ser usado para a representação da realidade, em função do desígnio pragmático do sujeito da enunciação[20].” Olhada ao princípio com desconfiança pelos historiadores da Escola dos Anais que, vendo nela “o próprio paradigma de ideologização do passado[21]”, procuraram formas não-narrativas de fazer a história, a história-conto foi substituida pela história problema[22] e desdramatizada pela rejeição da história política e événementielle, voltando contudo nos anos mais recentes, sob formas mais romanescas[23], que tematizam o passado, encenando tanto as realia como os possíveis (ainda) não realizados da história.

“Literatura de viagem”, “ficção científica”, a história abre-se ao imaginário, criando “um espaço de possíveis a imaginar ou a pensar acerca de si mesmo”, e sugere “outras formas de existência”, que oferecem “saídas e uma linguagem objectiva a desejos prestes a partir para outros modos de relação, de trabalho, de festas[24].

Apesar de representar uma forma quase universal de organização do saber histórico, a narração não é contudo, como acreditava a historiografia tradicional, um determinismo imanente às res gestae: sendo geralmente narrativa, a história não tem no entanto “uma articulação natural[25]”. “Um conto – histórico ou não – é uma construção e, sob a sua aparência honesta e objectiva, procedeu a toda uma série de escolhas não explícitas[26].” Como o romance, a história é feita de intrigas, selecciona e articula os factos numa montagem narrativa em função de uma pergunta que o historiador dirige ao passado. A intriga histórica é uma das trajectórias possíveis no espaço do passado, cientificamente autorizada e caucionada. Um mesmo acontecimento tem um sentido diferente em função da intriga, do contexto em que está inserido. Segundo Collingwood, as intrigas históricas são geradas por certas “pre-generic plot structures”, mythoi culturalmente dados que brotam da imaginação construtiva do historiador[27].

De forma semelhante à literatura, embora em menor grau, a história realiza uma modelização do mundo empírico, pretendendo contudo manter uma correspondência rigorosa com o real. Esta modelização é, segundo Hayden White, tropológica: as narrativas históricas têm como estrutura profunda um dos quatro tropos fundamentais: metáfora, metonímia, sinédoque ou ironia[28].

Um objectivo fundamental da narração histórica é a procura das causas. Reconstruída a posteriori pelo historiador, a sequência causal é percebida pelos destinatários do discurso histórico não só como encadeamento cronológico, mas também lógico: daí o sentimento de “necessidade” ou de fatalidade histórica: o que é é porque devia ser. A historiografia do século XX reconheceu a importância epistemológica do “presente” a partir do qual o historiador procede á reconstrução do passado. Ao passo que a historiografia da época positivista acreditava poder falar de uma época do seu interior, explicando os acontecimentos em função do momento em que sucederam e ignorando e apagando tudo o que se passou depois, os historiadores convenceram-se a partir de Croce que “Toda a história é contemporânea[29]”, e que o passado só se torna inteligível a partir dos seus efeitos que retroactivamente recortam na confusão do passado um itinerário causal que os fundamenta e os justifica. Realçando certos elementos, descurando outros, a escrita histórica confere um certo relevo valórico ao passado, decidindo de modo sub-reptício do que vale a pena ser rememorado, do que é digno da história e do que o não é. Essas trajectórias pelo passado representam uma tópica (um sistema de perguntas) feitas a partir dos interesses do presente, que muitas vezes colide com a visão do passado sobre si próprio: o trabalho do historiador consiste então em grande medida numa luta contra a óptica imposta pelas fontes[30], tanto mais forte quanto estas se apresentarem sob a forma narrativa, i.e. como um relato ingénuo do encadeamento do que foi. Quando ao historiador faltam os elementos causais, ele recorre à retrodicção: aplica ao passado um modelo analógico deduzido a partir de outros encadeamentos semelhantes, suprindo o real pelo verosímil e preenchendo as lacunas da história com ficções[31].

Tal como num drama ou num romance, o historiador vê-se obrigado a fornecer uma explicação plausível sobre os motivos de certas acções decididas pelas suas “personagens”. Como porém, depois dos positivistas, já não se acredita na existências das leis na história, os historiadores recorrem a hipóteses comportamentais que são recolhidas no repositório das experiências comuns, coligidas sobretudo pela literatura. Esses truismos[32] psicológicos constituem muitas vezes “a base da explicação histórica”, abrindo uma nova brecha por onde se introduz no discurso histórico uma perspectiva determinada pela competência enciclopédica do historiador.

A pior acusação que pode ser feita a um historiador e que este receia acima de tudo é a de anacronismo. Sabendo que fala inevitavelmente a partir de um presente, do seu presente, o historiador deve combater não só a visão que o passado transmite de si próprio, mas também os preconceitos com que ele próprio está imbuído devido à sua pertença a um determinado contexto socio-cultural. Como diz expressivamente Arthur Danto[33]: “One does not go naked into the archives”. A objectividade absoluta é inatingível, apenas um horizonte que sempre se afasta, “uma ideia limite[34]”, mas é um ideal que a história se obstina a perseguir, um pouco tragicamente, tentando encontrar novas vias de acesso ao passado. Para diminuir, por exemplo, os efeitos da quase inevitável identificação inter-subjectiva com a humanidade de outras eras e a consequente redução do seu sistema de interacção com o mundo a um esquema conhecido (o da actualidade do historiador), recorre-se cada vez mais a ciências que se tornaram auxiliares da história como a antropologia, a sociologia ou os estudos estatísticos de quantificação.

Neste “reino do inexacto”, que é a história – segundo a expressão de Paul Ricoeur[35] -, o próprio facto histórico é uma construção marcada pelas escolhas subjectivas do historiador. A história não se contenta com seriar as realia numa intriga que lhes distorça o sentido de uma certa maneira (sendo mimesis é distorção[36]) mas também talha o facto histórico de modo a que este corroborasse a hipótese que serve de programa de investigação. “Os factos históricos são constituidos, isto é são seleccionados pelo historiador que lhes dá estatuto de dados/data/. Numa segunda etapa os dados/as data/ são constituídos uma segunda vez como elementos duma estrutura verbal que é sempre produzida com um desígnio(manifesto ou latente) específico. A História nunca é simples história, mas História-para, história escrita com um objectivo infracientífico[37]”.

O facto histórico não é portanto dado, ou encontrado tal e qual no passado, mas é, pelo contrário, o produto de uma elaboração. “Inventando e fabricado” (segundo a expressão de Lucien Febvre, usada na sessão inaugural no Collège de France a 13 de Dezembro de 1933) o facto histórico é uma “criação” do historiador. É também impossível precisar os limites do que seria um facto histórico elementar, uma unidade minimal dotada de pertinência e autonomia suficiente para abrir uma série histórica: é em vão que os historiadores procuram “átomos événementiels[38]”, “historemas[39]”. Os acontecimentos não são surpreendidos de modo directo, mas através dos vestígios que deixaram, restos do discurso que uma época elaborou sobre si própria. “Arte de tratar os restos[40]”, a história é por excelência intertextual e interdiscursiva. Transforma os documentos em monumentos (segundo a expressão de Foucault[41]), reconhecendo o seu carácter fabricado, produzido de forma não-inocente pelas instituições do passado encarregadas com a transmissão da memória. Identifica e denuncia neles os jogos do poder e as estratégias institucionalmente usadas para interpor entre o seu presente e o futuro a que se dirigem uma certa imagem-écran que tanto revela como oculta, tentando legitimar o status quo, com o seu sistema de distribuição do poder político e simbólico.

Por isso, a história não consiste numa travessia dos documentos até se encontrar um real, integralmente recuperável, suposto existir antes e debaixo dos textos, como acreditava a historiografia “realista” do século passado, mas, numa visão reconhecidamente nominalista, admite não haver outra realidade do passado além de uma interminável produção de discursos que o historiador deve deconstruir e desmontar antes de criar um novo patch-work discursivo, sempre provisório, sempre renovável.. O passado já não é descrito como se fosse percebido, mas torna-se presente apenas pela mediação da historio-grafia, como “artefacto literário[42]”. A história, sempre provisória, surge como um processo infinito de reescrita do passado, de rectificação, de releitura “plena de perdas e ressurreições, falhas de memória e revisões[43]

Reconhecendo-se múltipla e parcial, uma história em migalhas, uma história serial, uma história descontínua, a historiografia contemporânea rejeita a utopia de uma História global ou total, identificando nela o sonho totalitário de ordenar e normalizar o passado de acordo com a visão dos “vencedores”. Ela recorta no passado novos objectos históricos – a história dos povos vencidos, das classes ou categorias silenciadas. as mulheres, os jovens, os loucos, os marginais, as mentalidades populares, a opinião pública, o mito, o inconsciente, o corpo, as doenças- que, inscrevendo-se na duração longa como formas de resistência ao main stream imposto pelas classes dominantes, representam loci alternativos de construção identitária para a diversidade do público que, graças aos progressos da democracia, tem actualmente acesso ao saber histórico, procurando nele maneiras de legitimar a sua diferença.

Na época pós-moderna em que vivemos, nota-se, segundo Lyotard[44], uma desconfiança generalizada em relação às grandes narrativas meta-históricas: dispositivos narrativos de alcance universal que pretendem integrar e unificar domínios tão heterogéneos como a filosofia, a investigação e a arte num único jogo de linguagem de carácter normativo e prescriptivo que tem como objectivo fundamentar e legitimar um determinado status quo, inscrevendo-o na dinâmica finalista de um sentido único. Olhadas com desconfiança pela historiografia (Lucien Febvre: “Filosofar, significa… dito por um historiador o crime capital.[45]”), as historiosofias sobrevivem e prosperam no entanto na vulgata histórica difundida pelas instituições que se atribuem a missão de propagar e preservar a memória colectiva: a escola, os media, a literatura de vulgarização, o discurso político e o calendário comemorativo que organiza a dramaturgia de auto-representação do Estado. Longe de coincidir com a ciência histórica, esta vulgata representa um subproduto do discurso histórico na sua diacronia, um amalgama de discursos heterogéneos, mas ideologicamente orientados, que visam à perpetuação do status quo e à cimentação da identidade. Entre o discurso científico sobre a história e a doxa histórica existe a distinção que Maurice Halbwachs[46] fazia entre a memória-dialogo, representada pela história como prática cognitiva, e a memória-mensagem, que tende para a reificação ideológica do passado, excluindo todo o diálogo.

Sem obrigatoriamente falsificar os factos históricos, a doxa histórica articula-os de modo a criar ficções colectivas, imbuídas de violência simbólica, que visam a integrar o poder que celebram numa genealogia prestigiosa, “instituindo-o como o herdeiro legítimo de tudo o que de «bom», de »glorioso», de «racional» se tenha empreendido no passado[47]”. Estas ficções – as metanarrativas – supõem um labor de integração simbólica de acontecimentos históricos muitas vezes conflictuais, de memórias centrífugas, anómicas dentro de um projecto meta-histórico que mobiliza o passado histórico como fonte de um futuro épico de toda uma colectividade (segundo os casos, um grupo étnico ou religioso particular, uma nação específica, a humanidade no seu todo), assentando numa política da memória que é ao mesmo tempo uma política do esquecimento. Trata-se de um “gestão dos vestígios[48]”, uma “gestão da saga identitária[49]”, que transforma a história na “palavra dos pais”, segundo a expressão de Bakhtine[50], de que é preciso libertar-se. A libertação da história não consiste num simples acto de rejeitar ou ignorar a doxa histórica de que está saturada a nossa sociedade, mas numa interrogação individual das res gestae e da historia rerum gestarum, que se constitui afinal como uma variante entre outras do esforço de «mapear a totalidade» daquilo que Jameson[51] chama «o hiperespaço pósmoderno», caracterizado pela desorientação espacial e cognitiva.

{bibliografia}

AVV: Literary history & literary criticism : Acta of the ninth congress, International Federation for Modern Languages and Literature, held at New York University, August 25 to 31, 1963. (1965); AAVV: L’Histoire Littéraire (2001); Claudio Guillén: Teorías de la historia literaria (1989); Douwe W. Fokkema: Literary History, Modernism, and Postmodernism (1984); Hans Robert Jauss: Historia literária como desafio à ciência literária, trad. de Ferreira de Brito (Vila Nova de Gaia, 1974); Jacinto do Prado Coelho: Problemática da História Literária (1961); João Barrento (org.): História literária: problemas e perspectivas (1982); Oscar Tacco: La historia literaria (1968); René Wellek: Historia literaria (Barcelona, 1983); Românica, nº6: “História da Literatura” (Lisboa, 1997).

http://www.literaryhistory.com/index.htm

http://acd.ufrj.br/pacc/literaria/historialit.html