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Há um debate em torno dos signos “homossexual” e “homoerotismo”, aquele remetendo, de acordo com o francês Michel Foucault e o brasileiro Jurandir Freire, ao preconceito homofóbico, vigente no século XIX, ao passo que o segundo recoloca a questão sem homofobia; outros setores críticos e de pesquisa, como, por exemplo, a ABEH (Associação Brasileira de Estudos Homossexuais) não considera a diferenciação exibida pela homofobia, empregando tanto um quanto outro termo para significar a relação amorosa entre pessoas do mesmo sexo. O psicanalista brasileiro ensina: “ Teoricamente, como procuro mostrar, homoerotismo é preferível a ‘homossexualidade ‘ ou ‘homossexualismo’ porque tais palavras remetem quem as emprega ao vocabulário do século XIX, que deu origem à idéia do ‘homossexual’. Isto significa, em breves palavras, que, toda vez que as empregamos, continuamos pensando, falando e agindo emocionalmente inspirados na crença de que existem uma sexualidade e um tipo humanos ‘homossexuais’, independentes do hábito lingüístico que os criou”.

Conforme o Prof. Dr. José Carlos Barcellos, o homoerotismo constitui prolífera linha de pesquisa, na medida em que é um “discurso que se articula a partir de inumeráveis práticas sociais e vivências pessoais, as quais – não obstante sua diversidade e irredutibilidade constitutivas – enquanto discurso, são passíveis de uma abordagem de conjunto produtiva, iluminadora e, eventualmente, libertadora”. Nesta linha de pensamento, “os estudos da homocultura não são uma disciplina nova, mas a abertura do conjunto das disciplinas e abordagens novas e a objetos novos”.

Uma maneira de se refletir sobre o homoerotismo é considerá-lo uma estética, uma pungente estética, aliás, que vem enformando, desde que a humanidade inventou a arte, as formas mais sublimes de arte, em suas diversas linguagens. Outrora – na virada do século XIX para o século XX – definido, precisamente no julgamento que condenou à prisão com trabalhos forçados o esteta irlandês Oscar Wilde como “o amor que não ousa dizer seu nome”, o homoerotismo ou forma de amor entre parceiros do mesmo sexo, tem sido julgado, praticado, teorizado, condenado. No tribunal, Wilde foi inquirido: “ O que é o amor que não ousa dizer seu nome?” O acusado de sodomia e condenado a dois anos de trabalhos forçados, respondeu peremptoriamente: “ O amor que não ousa dizer seu nome é o grande afeto de um homem mais velho por um jovem como aconteceu entre Davi e Jônatã, e aquele de que Platão fez a base de toda a sua filosofia, é aquele amor que se encontra nos sonetos de Michelangelo e de Shakespeare. É aquela profunda afeição que é tão pura quanto perfeita. Ele inspira e perpassa grandes obras de arte, como as de Shakespeare e Michelangelo (…). Neste nosso século é mal-compreendido, tão mal-compreendido que é descrito como o amor que não ousa dizer seu nome, e, por causa disso, estou aqui onde estou. Ele é belo, é refinado, é a mais nobre forma de afeto. Nele, nada há de anti-natural. É intelectual e sempre existiu entre um homem mais velho e um rapaz, quando o mais velho tem o intelecto e o mais jovem tem toda a alegria, esperança e charme da vida diante de si. Assim deveria ser, mas o mundo não compreende. O mundo zomba dele e algumas vezes põe por ele alguém no pelourinho”. E fulgura em obras de arte, que honram toda a humanidade; cumpre, todavia, observar-se que escrever sob o signo do homoerotismo não significa que o autor tenha a prática homossexual, o que corrobora uma crítica literária longe do mero biografismo e que situa e ressitua o texto no âmbito do ficcional, não necessariamente coincidente com a mímesis total e absoluta. Todo texto é representação, mediação e ficção. Tampouco a pesquisa homoerótica inclui, necessariamente, o investigador no rol dos praticantes do antigamente designado “amor grego”. No panteão da estética homoerótica, configurada em todos os períodos da história literária, cintilam: em Portugal : Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa, Antônio Botto (que morou e faleceu no Rio de Janeiro), Al Berto; no Brasil: Adolfo Caminha – autor, aliás, do primeiro romance homossexual na história da literatura ocidental, Bom-Crioulo (1895) -, Raul Pompéia, Álvares de Azevedo, Olavo Bilac, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Walmir Ayala, Lúcio Cardoso, Ana Cristina César (também chamada Ana C.), Antônio Carlos Villaça, Pedro Nava, Cazuza, Renato Russo, Francisco Igreja (nascido em Portugal), Caio Fernando Abreu, José Maria Tubino, Glauco Mattoso, João Silvério Trevisan, Leila Míccolis, Jurandir Freire Costa , Lygia Fagundes Telles, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque de Holanda, Ângela Rô Rô, Silviano Santiago; na Áustria, Robert Musil; na Alemanha: J. Winckelman, Thomas Mann (cuja mãe era brasileira, nascida em Angra dos Reis-RJ); na Argentina: Ricardo Piglia, Manuel Puig; na Bélgica, Marguerite Yourcenar (primeira mulher a ingressar na Académie Française de Lettres ); em Cuba: Alejo Carpentier, Reinaldo Arenas; na Espanha: García Lorca, Pedro Almodóvar; nos Estados Unidos da América do Norte: Walt Whitman, Elizabeth Bishops, Tenesse Williams, Cole Porter, James Baldwin, Truman Capote; na Inglaterra: Shakespeare, Christopher Marlowe, Horatio Pater, Virginia Woolf, E. M. Foster; na Irlanda: Oscar Wilde; na França: Arthur Rimbaud, Paul Verlaine, Henri de Montherland, Roger Peyreffitte, André Gide, Jean Genet, Marcel Proust, François Mauriac, Julien Green (nascido nos Estados Unidos da América do Norte), Michel Foucault, Roland Barthes; na Grécia: Platão, Safo, Kontantinos Kaváfis (nascido em Alexandria, no Egito); na Itália: Leonardo da Vinci, Michelangelo, Píer Paolo Pasolini; no Japão: Y. Mishima . Como este nosso Dicionário de termos literários, está em aberto a lista de escritores que lançaram e lançam mão do homoerotismo como estética revolucionária, transgressora, vanguardista em todas as épocas. Não se trata de traçar um inventário de obras homoeróticas, antes assinala-se que o homoerotismo, na qualidade de estética, estética, aliás, que transcende a “estética camp”, designada pela excelente crítica norte-americana Susan Sontag como algo sumamente afetado e kitsch, constitui-se num manancial de produção literária de excelente qualidade. Enquanto estética, o homoerotismo cumpre, com certeza e belamente, o preceito apregoado pela mesma Susan Sontag: “Em vez de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte”.

Eros, deu grego do amor, não tem sexo, ou melhor, sua representação é masculina. Cupido, deus romano do amor, tem formas de anjo andrógino. O erotismo é o desejo e o desejo não tem sexo. O desejo é sexo. O sexo é desejo. Os anjos não têm sexo, apesar de terem se desenvolvido longas discussões bizantinas sobre o assunto; na mitologia, os anjos são representados de uma forma andrógina. “Deus é menino e é menina”, canta Gilberto Gil, ecoando as religiões orientais e africanas. Também Jules Michelet faz coro com a perfeição: “Eu sou um homem completo, tendo os dois sexos do espírito”.

Eis alguns breves e rápidos versos emblemáticos da estética homoerótica: “(…) Contar àquele pobre rapaz/ Que me deu tantas horas tão felizes(…)/ Mesmo ele a quem eu tanto julguei amar”. “Soneto já antigo”, de Álvaro de Campos. “Eu, que tenho o piscar de olhos do moço do frete”. “Poema em linha reta”, de Álvaro de Campos. “Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isto”. “Ó grande bastardo de Apolo/ Amante impotente e fogoso(…)” “Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te”. “Pertenço à tua orgia báquica de sensações em liberdade”. “Grande pederasta, roçando-te contra a adversidade das coisas”. “Minha senha? Walt Whitman!”. “Saudação a Walt Whitman, de Álvaro de Campos. Nesses fulgurantes fragmentos de homoerotismo literário, elabora-se uma escritura em que o desejo pelo parceiro do mesmo sexo assume corpo no texto. Os exemplos são extraídos de Fernando Pessoa sob a máscara de Álvaro de Campos, um heterônimo sem papas na língua. O homoerotismo literário será, portanto, a inscrição do desejo, contrariamente àquele desejo, de que fala Peter Fry: “(…) (a) extraordinária eficiência das sociedades humanas em garantir que algo tão polimorfo e perverso como o desejo sexual acabe sendo constituído, na grande maioria dos indivíduos, de tal forma que acabem desejando o que é socialmente desejável”. O Prof. Dr. Denílson Lopes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, relata em seu livro O homem que amava rapazes: “Certa vez perguntaram ao poeta Sandro Penna por que ele só escrevia poemas sobre rapazes, quase como uma obsessão, como se o mundo não estivesse cheio de tantos temas, coisas e fatos. Ele simplesmente respondeu; ‘Ah, meu querido, o resto me entedia’“.

Não desejo encerrar a escritura deste verbete sem dar conta de uma pequena narrativa. Dia 8 de agosto de 2006, quando estava eu envolvido com as meditações sobre o homoerotismo, fui dormir e, subitamente, acordei; não conseguindo conciliar o sono, liguei a televisão e, por pura acaso, vi, na TVE (canal internacional da televisão espanhola) um dramático e trágico documentário sobre Reinaldo Arenas. Reinaldo Arenas nasceu em Holguín, Província de Oriente, em Cuba, a 16 de Julho de 1943 e suicidou-se em Nova York, a 7 de Dezembro de 1990). Poeta, escritor de contos e teatro, assumidamente homossexual, numa época em que o homossexualismo era crime em seu país, combateu, primeiramente o regime de Fulgencio Batista e, depois, a própria revolução, que apoiara, de Fidel Castro, marcadamente repressiva das minorias, nomeadamente sexuais. Por várias vezes, como conta na obra autobiográfica Antes que anochezca, foi perseguido, preso e torturado e forçado a abandonar diversos trabalhos..Durante a década de 70, tentou, por vários meios, abandonar, sem sucesso, sua ilha natal. Mais tarde, devido a uma autorização de saída de todos os homossexuais e de outras personae non gratae – prostitutas, deficientes psíquicos e físicos – (o homossexaulismo que fora seu algoz, agora seria seu salvador; mas por breve tempo) e depois de ter mudado de nome, Arenas pôde imigrar nos Estados Unidos da América do Norte, mais precisamente em Nova York, onde lhe diagnosticaram o vírus da Sida/Aids. Naquela época, escreveu sua autobiografia Antes que anoiteça Em 1990, terminada a obra, que foi publicada postumamente, em 1992, Arenas suicidou-se com uma dose excessiva de álcool e droga, deixando esta heróica mensagem:

Due to my delicate state of health and to the terrible depression it causes me not to be able to continue writing and struggling for the freedom of Cuba, I am ending my life. . . I want to encourage the Cuban people out of the country as well as on the Island to continue fighting for freedom. . . . Cuba will be free. I already am”.

No documentário, exibido pela televisão espanhola, sua irmã diz que toda a vida do poeta maldito foi um “maravilhoso suicídio”. Dez anos mais tarde, em 2000, realizou-se a versão cinematográfica da sua autobiografia, dirigida por Julian Schnabel, em que protagoniza Javier Bardem, premiado, no Festival de Veneza, como melhor ator; o filme, com título em inglês, When the night falls, concorreu, em 2001, ao Oscar de melhor filme.

Em minha vigília e em meu sono, Reinaldo Arenas ergue-se como o emblema do homoerotismo que – mais do que uma estética do desejo e do gozo, que atravessa estéticas e reconfigura uma forma talvez perversa de amar, uma relação amorosa transgressora, um sistema semiótico desconstrutor e anti-clichê – é uma ética, uma resistência, uma militância exercida através daquilo que Carlos Drummond de Andrade, no belíssimo poema “Rapto”, denomina, em verso decassílabo heróico, como “outra forma de amar no acerbo amor”.

{bibliografia}

Carlos Drummond de Andrade, Antologia poética, p. 179 (1999). Jurandir Freire Costa, A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo , p. 11 (2002.). José Carlos Barcellos, Literatura e homoerotismo em questão, p. 14 (2006). Susan Sontag, Contra a interpretação, p. 23 (1987). Fernando Pessoa, Obra poética, p. ( 19 ). Peter Fry, Prefácio, in Nestor Perolongher, O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo, p. 11 (1987). Denílson Lopes, O homem que amava rapazes e outros ensaios, p. 50 (2002).Latuf Isaias Mucci, “Pater e a febre do esteticismo” (2004). Latuf Isaias Mucci, “ Pater & Wilde: espelhos em abismo”, in COUTINHO, Luiz Edmundo e MUCCI, Latuf Isaias Mucci, Dândis, estetas e sibaritas (2006). Latuf Isaias Mucci, “O homoerotismo, segundo o evangelho apócrifo de Mário de Andrade”, in x Congresso Internacional da ABRALIC, “Lugares e discursos” (2006). Oscar Wilde, The works of Oscar Wilde ( 1948). Latuf Isaias Mucci, “Um poema homossexual de Carlos Drummond de Andrade”, in Suplemento Literário de Minas Gerais (1986).