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Uma primeira definição de imaginação, restringida à sua
referencialidade, pode dizer respeito à capacidade mental para
relacionar, criar, inventar ou construir imagens. Este processo
criativo pode intervir tanto em fantasias como na criatividade
artística e intelectual. O termo
é derivado do latim imaginatio, que por sua vez substitui
o grego phantasía.

Aristóteles, em De Anima (428a 1-4), deu-nos uma primeira
relexão teórica sobre o conceito de imaginação (phantasía)
que se refere apenas ao processo mental através do qual
concebemos uma imagem (phantasma). A mente humana,
segundo Aristóteles, não é capaz de pensar sem imagens. Este
procedimento mental faz parte da actividade de todas as formas
de pensamento e não se confunde com o que se virá a designar por
criatividade ou imaginação criativa. O conceito aristotélico de
phantasía/imaginação está ligado ao sensus communis,
isto é, àquela parte da mente (psyche) que é responsável
pela representação inteligível das coisas. De forma
simplificada, podemos dizer que o conceito de imaginação daqui
decorrente consiste no processo mental de representação das
coisas que não são imediatamente presentes aos sentidos. A
imaginação é uma forma de representação do que sentimos não
existir no nosso mundo próximo. Esta origem grega do conceito
mantém-se em alemão (Phantasie), sendo esta a forma que
os primeiros grandes teóricos do inconsciente, Freud e Jung,
sempre utilizaram. O alemão Phantasie reporta-se a
"imaginação", "aparição", "imagem mental" e é este qualquer caso
o sentido em que se deve tomar. Não se aplica ao termo alemão o
sentido filosófico de "imaginação" (Einbildungskraft),
uma vez que Phantasie diz respeito à actividade criativa.
Alguns psicanalistas (V. por exemplo S. Isaacs, "The nature and
function of phantasy", IJPA, vol.29, 1948) propuseram o
uso sistemático das duas formas para distinguir as fantasias
que são construções da consciência e as phantasias que
são construções do inconsciente. Mas a imaginação é uma espécie
de força criadora que tanto pode interferir na construção de uma
fantasia consciente como de uma fantasia inconsciente.

           
As palavras que têm a sua origem no grego phantasía e que
vieram a evoluir em direcções próximas, como fantasia,
fantasma
, ou fantástico, acabaram por conotar quase
invariavelmente tudo o que escapa à realidade, talvez de forma
mais insistente do que o conceito de imaginação. Os pensadores
medievais, que dispunham já das duas origens latina e grego do
termo imaginação, tentaram um compromisso falhado de
distinção entre imaginatio e phantasia. Com o
pensamento moderno e o abandono do conceito aristotélico de

phantasía, a imaginação será entendida como uma das
principais actividades da mente humana.

Os
filósofos do século XVIII repensaram o conceito de imaginação
para fundamentar um outro conceito que dominou na época: a
capacidade de sentir (sensibility). As explicações
divergem entre a imaginação como dependente da actividade dos
sentidos e a imaginação como força responsável por toda a
actividade sensorial. Outros preferem não considerar esta
ligação entre a sensibilidade e a imaginação, porque reconhecem
nesta uma capacidade criadora que não está directa ou
indirectamente ligada aos sentidos. Hobbes (1588-1679), Locke
(1632-1704), Berkeley (1685-1753) e Hume (1711-1776) não diferem
quanto à definição essencial da imaginação, que fazem depender
de simples formação de imagens. Hume faz corresponder, em vários
momentos do seu livro Enquiries Concerning the Human
Understanding and Concerning the Principles of Morals

(1777), o conceito de imaginação ao de mente (“mind”), que
considera apenas um conjunto de imagens, ou, por outras
palavras, a imaginação é apenas aquilo que acontece quando
relacionamos várias imagens. Este é um dos mais actos mais
livres do entendimento humano. Kant (1724-1804) tem uma proposta
diferente: considera que as nossas “impressões” (aquilo de que
tomamos conhecimento) já está estruturado pelos sentidos,
competindo à imaginação a síntese das experiências perceptíveis
ao construir imagens mentais para essas “impressões”.

O que a
literatura do século XVIII não deixou de realçar foi o poder
criador da imaginação, como uma actividade essencial da criação
artística. O exemplo seguinte é um exercício da imaginação
literária, que Laurence Sterne praticou em todas as suas obras,
onde podemos perceber a função dos sentimentos no
desenvolvimento quer da história narrada quer do próprio
desenvolvimento da psicologia da personagem Yorick:

 

The bird in his cage pursued me into my room; I sat down close
to my table, and leaning my head upon my hand, I begun to figure
to myself the miseries of confinement. I was in a right frame
for it, and so I gave full scope to my imagination.

I was going to begin with the millions of my fellow creatures
born to no inheritance but slavery; but finding, however
affecting the picture was, that I could not bring it near me,
and that the multitude of sad groups in it did but distract me.

I took a single captive, and having first shut him up in his
dungeon, I then look’d through the twilight of his grated door
to take his picture.

I beheld his body half wasted away with long expectation and
confinement, and felt what kind of sickness of the heart it was
which arises from hope deferr’d. Upon looking nearer I saw him
pale and feverish: in thirty years the western breeze had not
fan n’d his blood — he had seen no sun, no moon in all that time
— nor had the voice of a friend or kinsman breathed through the
lattice — his children —

— But here my heart began to bleed — and I was forced to go on
with another part of the portrait.

He was sitting upon the ground upon a little straw, in the
furthest corner of his dungeon, which was alternately his chair
and bed: a little calendar of small sticks were laid at the lead
notch’d all over with the dismal days and nights he had pass’d
there–he had one of these little sticks in his hand, and with a
rusty nail he was etching another day of misery to add to the
heap. As I darkened the little light he had, he lifted up a
hopeless eye to the door, then cast it down — shook his head,
and went on with his work of affliction. I heard his chains upon
his legs, as he turn’d his body to lay his little stick upon the
bundle — He gave a deep sigh — I saw the iron enter into his
soul — I burst into tears — I could not sustain the picture of
confinement which my fancy had drawn — I started up from my
chair, and calling La Fleur, I bid him bespeak me a remise,
and have it ready at the door of the hotel by nine in the
morning. 
(A
Sentimental Journey
, 1768, ed. por Ian Jack, Oxford UP, Nova
Iorque, 1984, pp.72-73).

 

Esta visão
imaginativa de um prisioneiro virtual da Bastilha mostra-nos
como o exercício da imaginação literária andou sempre a par de
certas formas de sentimento como a melancolia, a nostalgia, a
saudade, o medo e o tédio, por exemplo. Não se trata de uma
forma original de criação literária, porque não podemos esquecer
que os mais antigos mitos da civilização ocidental se formaram
por relação com o medo do desconhecido; por outro lado, não
podemos ignorar que desde o mito de Adão e Eva até à origem
babilónica da diversidade linguística, a imaginação é vista como
o resultado de uma falha humana, como a ignorância do temor que
é devido a uma divindade. Isto significa que imaginar é, para o
pensamento antigo,, uma forma de não compreensão do mundo,
porque está dependente dos sentimentos. Por esta razão, Platão
não reconhecia no acto da imaginação uma forma de alcançar o
conhecimento, porque a imaginação é apenas uma espécie de cópia
em segunda mão da realidade. Este argumento é, aliás, retomado
por Descartes (1596-1650) que conclui no seu Discurso do
Método
que “nem a imaginação nem os sentidos poderiam nunca
certificar-nos de qualquer cousa sem a intervenção do
entendimento” (IV Parte, 14ª ed., Livraria Sá da Costa, Lisboa,
1986, pp.31-32).

           
O romantismo europeu trabalhou o conceito de imaginação até à
exaustão, tornando-o quase um lugar comum nas propostas
estéticas que surgiram por todo o lado. Samuel Taylor Coleridge
(1772-1834) tentou formular uma nova teoria da imaginação,
inspirado largamente nas especulações de Kant e dos idealistas
alemães que o precederam. A imaginação é agora estimada como um
caminho privilegiado para o conhecimento. Se o conhecimento
racional é sem dúvida o mais rigoroso e o mais eficiente para a
vida prática, os artistas românticos insistiram no poder da
imaginação como alternativa subjectiva para alcançar outras
formas de conhecimento não necessariamente tão pragmático.
Coleridge distingue, assim, dois tipos de imaginação, num dos
mais comentados passos de Biographia Literaria,
estabelecendo uma distinção entre imaginação e fantasia que
conheceu amplo debate: “The imagination then I consider either
as primary, or secondary.

The primary imagination I hold to be the living Power and prime
Agent of all human Perception, and as a repetition in the finite
mind of the eternal act of  creation in the infinite I AM. The
secondary I consider as an echo of the former, co-existing with
the conscious will, yet still as identical with the primary in
the kind of its agency, and differing only in degree,
and in the mode of its operation. It dissolves, diffuses,
dissipates, in order to re-create; or where this process is
rendered impossible, yet still at all events it struggles to
idealize and to unify. It is essentially vital, even as
all objects (as objects) are essentially fixed and dead.
Fancy, on the contrary, has no other counters to play with, but
fixities and definites. The Fancy is indeed no other than a ode
of Memory emancipated from the order of time and space; and
blended with, and modified by that empirical phenomenon of the
will, which we express by the word choice. But equally
with the ordinary memory it must receive all its materials ready
made from the law of association.” (Biographia Literaria,
cap. XIII, in Samuel Taylor Coleridge, ed. por H.J.
Jackson, Oxford University Press, Oxford e Nova Iorque, 1985,
p.313).

Como a
mente humana não é passiva, românticos como Coleridge
acreditaram convictamente que a imaginação é capaz de produzir
imagens reais, que serão reproduzidas pelos poetas já em perda
de força significadora, porque só na imaginação é possível
experimentar toda vitalidade dos sentidos. A expressão máxima
desta convicção talvez esteja na crença de Coleridge que compara
o poder da imaginação ao poder criador de Deus. O filósofo
alemão Schlegel

(1772-1829) defendeu ideias semelhantes, atribuindo à imaginação
a capacidade de associação de imagens ao nível da consciência,
ao passo que a fantasia operaria com imagens surgidas na
fronteira com o inconsciente, portanto, não controláveis pela
razão.

           
O século XX conheceu algumas reflexões sobre a imaginação, que
podem ir dos manifestos futuristas aos gritos revolucionários
ouvidos na Primavera de 1968 em Paris, onde se reclamava: “A
imaginação ao poder!”. Dois filósofos em particular reflectiram
sobre a génese da imaginação: Husserl e Sartre.  O primeiro
tratou da consciência imaginante de forma dispersa nos seus
estudos; o segundo legou-nos L’Imagination (1936) e L’Imaginaire
(1943). A fenomenologia de Husserl ensina-nos que toda a
consciência é consciência de alguma coisa, logo tudo se há-de
relacionar intencionalmente com essa alguma coisa. Sartre segue
os mesmos passos da investigação de Husserl e conclui que as
imagens são formas de consciência de um objecto: “Não há, não
pode haver imagens dentro da consciência. Mas a imagem é
um certo tipo de consciência. A imagem é um acto e não
uma coisa. A imagem é consciência de alguma coisa.”,
escreve no remate de A Imaginação (Difel, Lisboa, s.d.,
p.132).  O século XX legou-nos mais resultados da imaginação
criadora do que grandes sistematizaçõe teóricas. A origem do
acto imaginado interessou menos do que o imaginado. O que
interessou artistas de todas as gerações e movimentos estéticos
foi sempre a exploração dos limites da imaginação confundindo o
mais possível o caminho que vai do real observado até ao real
imaginado. Mesmo em composições poéticas, onde a imaginação se
desprende mais da consciência, é sempre possível perceber que o
imaginado tem grande proximidade com as experiências pessoais.
Bernardo Soares metaforizou assim a imaginação: “Minha
imaginação é uma cidade no Oriente. Toda a sua composição de
realidade no espaço tem a voluptuosidade de superfície de um
tapete rico e mole. As tendas que multicoloram as suas ruas
destacam-se sobre não sei que fundo que não é o delas como
bordados de amarelo ou vermelho sobre cetim azul-claríssimo.
Toda a história progressa dessa cidade voa em torno à lâmpada do
meu sonho como uma borboleta apenas ouvida na penumbra do
quarto.” (Livro
do Desassossego por Bernardo Soares
.
Vol.II. Fernando Pessoa, recolha e transcrição dos textos de
Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha, prefácio e
organização de Jacinto do Prado Coelho, Ática, Lisboa, 1982). A
imaginação poética, que é também uma forma de auto-análise, pode
constituir-se como o espaço criativo da consciência, um lugar
dinâmico onde guardamos e arrumamos tudo aquilo que o nosso dedo
artístico consegue tocar.          

{bibliografia}

A. R. White. The Language of Imagination (1990); E.T.H. Brann: The World of the Imagination: Sum and Substance (1991); E.S. Casey: Imagining: A Phenomenological Study (1976); J. Engell: The Creative Imagination: Enlightenment to Romanticism (1981); Jeanne Bernis: A Imaginação: Do Sensualismo Epicurista à Psicanálise (Rio de Janeiro, 1987); J.M. Cocking Imagination: A Study in the History of Ideas (1991); K. Egan & D. Nadaner (eds.): Imagination and Education (1988); L.-M. Russow: "Some Recent Work on Imagination.", American Philosophical Quarterly, 15 (1978); M. Warnock. Imagination (1976); Paulo Alexandre e Castro: Metafísica da Imaginação (2006); R. Kearney: The Wake of Imagination: Ideas of Creativity in Western Culture (1988).

http://www.calstatela.edu/faculty/nthomas/i-lnks.htm

http://www.engl.virginia.edu/~enec981/dictionary/termpages/imagination.html

http://www.ensc.sfu.ca/people/grad/brassard/personal/THESIS/node63.html