Embora o imaginário tenha uma conotação precisa em literatura; embora a teoria freudiana lhe tenha dado a dimensão da fantasia ainda que abrindo para a noção de ilusório; é com Lacan que este conceito é elaborado com rigor como registo fundamental da estrutura mental a par do real e do simbólico, constituindo o registo da ilusão e da identificação.
Terceiro relativamente aos outros dois, segue o simbólico que se elabora na função significante como designando a perda. O desejo particularisa uma tentativa de acordo entre essa ordem significante simbólica que o sobredetermina e a experiência de apreensão de um objecto imagináriamente encarregue de representar o reencontro com o objecto primitivamente perdido.
Ao contrário de Lacan, que vimos que partiu do imaginário para recuar depois ao simbólico e enfim ao real na preeminência estruturante do psiquismo, Freud constata que partiu do real para o imaginário – no caso, da aceitação ainda ingénua da realidade pretensa da sedução histérica (mas que podemos verificar não ser destituida de fundamento se for elaborada no sentido de real em Lacan) à sua interpretação crítica enquanto fantasma ou fantasia do desejo.(1)
A importância do imaginário aparece logo na primeira abordagem que Lacan faz dele ao falar-nos de uma das suas contribuições originais, a fase do espelho. Fase que, estruturante do imaginário e do eu (mim) já mostra a complexidade das relações deste com o eu (je), sujeito do inconsciente e da fala.
A criança que por volta dos seis meses vive a sensação de um corpo fragmentado, certo dia enxerga sua imagem no espelho. Momento de júbilo incomparável face à sua imagem especular. Prematuramente a criança reconhece-se um todo na sua imagem. Prematuramente quer dizer: antes de ter acedido ao conhecimento do corpo inteiro, profundo, vindo de dentro, na sua espessura e no seu real em ligação progressiva com a fala que diz eu (je). Não é pois o corpo incogniscível nas suas forças internas, vivo que a criança reconhece e a que se vai identificar. Mas a uma imagem reflectindo e especulando um corpo vivo, imagem que é ela mesma uma linha de ficção irreductível para sempre por muito que, como sujeito, este tente reduzir as contradições entre ela e a sua realidade. Ficção porque não é do real que se trata mas de uma imagem, uma Gestalt, uma forma exterior em duas dimensões, invertida, nítida nos seus limites.
É a primeira identificação consciente da criança. (A identificação ao seio da mãe é inconsciente e de características diferentes). “Identificação no sentido pleno que a psicanálise dá a esse termo: a saber, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem”, diz Lacan. E ainda: “A fase do espelho é um drama cujo impulso interno se precipita da insuficiência à antecipação – e que, para o sujeito apanhado no logro da identificação espacial, trama os fantasmas (fantasias) que se sucedem de uma imagem fragmentada do corpo a uma forma que chamaríamos ortopédica da sua totalidade, – e à armação enfim assumida de uma identidade alienante, que, com a sua estrutura rígida, vai marcar todo o seu desenvolvimento mental. Assim a ruptura do círculo do Innenwelt ao Umwelt gera a quadratura inesgotável das recolagens do eu (mim)”.
Eu, cujo lugar já não será o inconsciente, mas a imagem especular de um corpo exterior “esvaziado, encolhido até ao limite da sua simplificação – sua mera aparência empírica.” (Mascarenhas) O lugar do sujeito deixa de situar-se numa língua, numa história, numa cultura para estar centrado no eu (mim), constantemente necessitado ou de utopias fusionais ou, no outro extremo, de liberdades egóticas, polos entre os quais se balança num recalcamento do eu (je) enquanto fala do corpo inconsciente.
O espelho anula a distância entre os corpos, tornando-a imaginária, geométricamante invertida, formal, superficial. O outro surge então persecutório, detentor da imagem especular na qual o sujeito se confunde e que, ao constitui-lo, o aliena inevitavelmente, o operador mágico da colagem e da unificação imaginária do seu corpo.A literatura procura, pela ficção e o imaginário, ao lado do mundo da fala, ir além dessa alienação especular e dar-nos, por vezes sem saber, a possibilidade de entrever por detrás do véu, o real “que ensurdece a terra com o seu ruido e a sua fúria”, ao ponto de não o ouvirmos. O escritor, nos melhores casos, passa do registo imaginário ao real passando pelo simbólico, ou seja, no trabalho sobre o significante, permite-se, enquanto sujeito desejante, sobrevir.
Não foi por acaso que foi sob a égide de um escritor que Lacan propôs essa sua invenção da fase do espelho: “Sou esse infeliz comparável aos espelhos/ que podem reflectir mas não podem ver/ Como eles o meu olho está vazio e como eles habitado/ pela ausência de ti que o torna cego.” (Aragon, “Louco por Elsa”).Mas Lacan vai ainda delimitar o estatuto do imaginário no interior de três sistemas de noções que aparelham o sujeito e o objecto às dimensões do imaginário com a sua consistência, do simbólico com a sua insistência e do real na sua ex-(s)istência, implicando os processos caraterísticos da denegação. No seminário sobre a relação de objecto e em ligação com as transformações operadas pelo complexo de Édipo, ele fala de frustração imaginária de um objecto real, de privação real de um objecto simbólico e de castração simbólica de um objecto imaginário.
Não podemos nunca esquecer que estes três registos só funcionam se enlaçados à maneira do nó borromeu, intricadamente.
Sigmund Freud, Analisis fragmentario de una histeria, e La negacion, Obras Completas, Madrid, Editorial Biblioteca Nueva, vol.II e III, 1948. Philipe Julien, Le retour à Freud de Jacques Lacan, Paris, Erès, 1985. Jacques Lacan, Le stade du miroir comme formateur de la fonctiondu Je, e L’agressivité en psychanalyse, in Écrits, Paris, Le Seuil, 1966; R.S.I., (Seminario XXII), Ornicar?, Paris, 1975. Eduardo Mascarenhas, A metáfora lacaniana do espelho, Lugar, nº8, 1976, Rio de Janeiro.
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