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A Imagologia Literária é um ramo dos Estudos Literários e Culturais que tem por objecto o estudo das formulações caracterizadoras de mentalidade e de identidade no texto literário. Oriunda do domínio da Literatura Comparada, a Imagologia Literária começou por atender à representação literária do outro, o estrangeiro, nas literaturas nacionais. Mais recente, a Imagologia Literária têm alargado o seu âmbito de análise à auto-representação literária da identidade nacional.

Constituindo-se como monumento humano por excelência, a Literatura inscreve-se no tempo. Assim, para além da tradicional perspectiva de fronteira, horizontal, relativa às geografias literárias comparativas, a Imagologia Literária propõe uma abordagem no interior das literaturas nacionais, verticalmente, no plano temporal, diacronicamente ou não, proporcionando leituras interpretativas integrais e amplas, diferentemente das que se podem obter pelo prisma específico da História da Literatura ou da História das Ideias. A Imagologia Literária mostra como se inscrevem no tempo histórico, e não apenas na dimensão territorial, as linhas de continuidade e fronteira entre culturas identitárias, considerando que um povo se pode olhar a si mesmo como outro na memória colectiva que guarda do passado, ou nas imagens forjadas ideologicamente desse passado visto à distância. Na verdade, como disse Leslie Poles Hartley, em The Go-Between, «The past is a foreign country: they do things differently there».

Compete à Imagologia Literária proceder à identificação e interpretação em contexto das representações mentais contidas nos enunciados de natureza literária. A dimensão temporal intrínseca faz da obra literária uma cápsula do tempo, repositório de memória e monumento. Eduardo Lourenço, debruçando-se sobre a questão da identidade portuguesa, estabelece uma ligação íntima entre identidade, destino e tempo, para mostrar que a identidade de um povo está directamente influenciada pela forma como vive essa dimensão da temporalidade e a relação que com ela desenvolve.

Mais especificamente, a Imagologia Literária procura identificar no texto literário os imagotipos, isto é, marcadores discursivos de configuração e de representação de identidade, mais concretamente, traços de identidade nacional. Os imagotipos são portadores de ideias, ideias-feitas, comportamentos, estereótipos representativos de mentalidade e identidade. Epistemologicamente, na Imagologia Literária, os mecanismos e processos de ordem especificamente literária que configuram os imagotipos, objecto material de estudo, são de certo modo instrumentais, na medida em que a sua função visa o estabelecimento e a configuração imagológica contida na obra literária.

A Imagologia Literária tem-se afirmado no âmbito dos Estudos Literários e Culturais numa perspectiva de interdisciplinaridade. Aliás, a obra literária é, para Imagologia Literária, um produto de confluência de multiplicidade, simultaneamente ponto de chegada e de partida para a compreensão e o estabelecimento das linhas dominantes da cultura e da cartografia identitária nacional. A análise multidisciplinar, a articulação com as Ciências da Cultura, a História das Ideias e das Mentalidades, Filosofia, Estética, Psicologia Social, designadamente, contribui para o enquadramento interpretativo dos enunciados literários em contexto. Como resultado, a Imagologia Literária proporciona uma panorâmica alargada do homem e das nações numa determinada situação histórica, de um modo que não parte apenas da matéria factual historiográfica, mas atende também à dimensão menos objectiva da sua existência humana individual e sociológica repleta de desejos, ambições, motivações, tensões, a que a Literatura dá guarida.

A História da Literatura estabelece traços definidores de representação e sobretudo de paradigma estético que permitem o estabelecimento da periodização literária. Por sua vez, a Imagologia Literária procura alargar o âmbito de análise e, tomando os enunciados discursivos, encontrar as relações de sintonia ou reacção no contexto específico da génese da obra literária. Cada tempo apresenta o seu léxico e sobretudo uma semântica particular. A Literatura plasma no discurso ficcional e cristaliza esteticamente uma determinada visão iluminadora do pensamento, do sentimento e da vivência num tempo. Como se sabe, o texto literário nunca é neutro; desde a sua concepção, motivações, intencionalidades ideológicas e estéticas, a sua estrutura e configuração, é o resultado de influências e opções que se urdem numa minuciosa e ampla tapeçaria sugestiva, aberta a leituras de nível diversificado. Nada do que constitui a estrutura do edifício literário está, portanto, destituído de valor de ordem imagológica, podendo-se, aliás, considerar, no âmbito da Imagologia Literária, uma imagologia do discurso, a par de uma imagologia do simbólico, da personagem, do espaço, etc.

Pela sua essencial propensão alegórica e recriadora, a Literatura constitui-se como um amplo e profundo repositório imagológico. Como diz, designadamente, Eduardo Lourenço, a Literatura, expressão superior de cultura, encerra a intimidade complexa, profunda e integral de um povo. Consequentemente, pela Literatura deve seguir quem procura indagar o pensamento e a vivência de uma sociedade humana ou proceder à sua psicanálise identitária, seus mitos, medos, obsessões, traumas, recalcamentos, desejos, sonhos e pesadelos, ilusões e vitórias.

No sentido da clareza e rigor terminológico, é necessário distinguir Imagologia Cultural de Imagologia Literária, não tanto pelo fim que ambas visam, mas principalmente atendendo ao específico objecto de estudo: no primeiro caso, mais geral, a Imagologia procura os elementos que permitem uma configuração imagológica a partir de produtos culturais diversificados e de diferentes domínios artísticos ou disciplinares, como por exemplo, o cinema, a pintura, a escultura, mas também a etnografia, a economia, etc. Por sua vez, a Imagologia Literária foca a sua análise nos processos de configuração contidos na tessitura da língua e das obras literárias e para-literárias, nomeadamente na relação com o paradigma estético-literário e motivação ideológica.

Internacionalmente, a Imagologia Literária deve a sua afirmação académica a Joep Leerssen e Manfred Beller, na continuidade da reflexão iniciada na década de 60 pelo belga Hugo Dyserinck. Na sequência dos estudos de Daniel-Henry Pageaux, divulgados entre nós por Álvaro Manuel Machado, Maria João Simões coordenou, com António Apolinário Lourenço, no Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra, entre 2008 e 2010, o grupo de investigação «Literatura Sem Fronteiras», cujos trabalhos foram reunidos numa publicação referencial, denominada Imagotipos Literários: Processos de (Des)configuração na Imagologia Literária (Coimbra, CLP, 2011).

Na concepção de Joep Leerssen e Manfred Beller, Imagologia é o estudo das percepções e imagens presentes no discurso literário: «the study of cross-national perceptions and images as expressed in literary discourse, has for many decades been one of the more challenging and promising branches of Comparative Literature and Cultural Studies. Its focus lies in the attitudes, stereotypes and prejudices about our own and others’ national characters; attitudes which govern our rhetoric, discursive representation, literary activity and – ultimately – international relations at large. To recognize “national characters” as textual (frequently literary) constructs necessitates a textual and historical analysis of heir typology, their discursive expression and dissemination, by historians and literary scholars».

O volume 13 da obra enciclopédica Studia Imagologica, editada conjuntamente por Hugo Dyserinck e pelo seu discípulo Joep Leerssen (Rodopi Publishers, 2007), tem por título Imagology: The cultural construction and literary representation of nacional characters, remetendo o domínio da Imagologia simultaneamente para o campo cultural e literário: os imagotipos como representações literárias de construções e concepções culturais identitárias. Manfred Beller considera, mais abertamente, que os estudos imagológicos se devem desenvolver a nível multidisciplinar de modo a poderem atender à multiculturalidade das culturas nacionais. Studia Imagologica, sendo resultado de um amplo trabalho colectivo internacional, corresponde a esta visão de Manfred Beller, sem deixar de ter como fundo argumentativo as literaturas nacionais e os mitos/imagens que elas transportam.