Select Page
A B C D É F G H Í J K L M N O P Q R S T Ü V W Z

Não será a poesia mais do que aquele momento em que a linguagem, roçando a verdadeira natureza do ser, nele descobre o silêncio e assim se auto‑destrói? É esta, no fundo, a questão que Maurice Blanchot coloca em Le livre à venir (1959) ao contemplar as reflexões de Antonin Artaud sobre a essência do ser. Blanchot detém‑se na tese central patente na Correspondance avec Jacques Rivière, colectânea epistolar que Artaud fizera publicar 1927, onde é expressa a sua incapacidade de pensar o pensamento. Tornara‑se evidente, segundo Blanchot, que o autor dos dois manifestos do «théatre de la cruauté» chegara a um ponto sem retorno no qual assistia impotente à desagregação do acto de pensar e, consequentemente, à desintegração do seu produto final: o texto. Reconhecia assim implicitamente que toda a literatura em geral, e a poesia em particular, falhavam como fenómeno comunicativo. Para Artaud, a escrita poética instituía‑se como locus privilegiado do impoder («impouvoir»), i. e., da impossibilidade de pensar, espaço onde a inscrição das palavras mais não seria do que um gesto guiado pela angustiosa descoberta de que nada há para exprimir.

O momento de criação poética não se tratava, portanto, de um breve instante em que imperava a ilusão de se poder tanger o vazio e o inefável por via da linguagem. Pelo contrário; nascia da dolorosa consciência de que era impossível construir sentidos ante a ausência do ser, centro de toda a existência humana. Como dirá Blanchot, “l’être, ce n’est pas l’être, c’est ce manque de l’être, manque vivant que rend la vie défaillante, insaisissable et inexprimable, sauf par le cri d’une féroce abstinence” (Blanchot, 1959: 55). Mesmo que eventualmente a poesia partisse de um ensejo de comunicar ao próximo algo que só ao poeta pertencia, o grau de entropia seria praticamente nulo, uma vez que a linguagem com que ele trabalha lhe é única e, por isso, inacessível aos demais. Além disso, a confrontação com o incomunicável e o inominável gera um processo de erosão do pensamento que inexoravelmente o remete para formas estéreis e desprovidas de significado, qual olhar de Medusa empedernecendo todo e qualquer gesto, toda e qualquer expressão. Nesse caso, com que objectivo escreve o poeta — como que arrebatado pela vertigem do aniquilamento da sua própria voz — senão para admitir que nada há para escrever? Ainda assim, ele persiste em residir na poesia porque crê que somente através dela é possível acalentar a esperança de se evadir da inanidade, de iludir a vacuidade.Artaud teria certamente dado uma resposta negativa à angustiosa pergunta que Samuel Beckett deixa em suspenso em The Unnamable, uma das suas mais inquietantes narrativas: “Strange task, which consists in speaking of oneself. Strange hope, turned towards silence and peace. Possessed of nothing but my voice, the voice, it may seem natural, once the idea has been swallowed, that I should interpret it as an obligation to say something. But is it possible?” (Beckett, 1959: 285)

{bibliografia}

A. Artaud: Correspondance avec Jacques Rivière (1927); M. Blanchot: L’espace littéraire (1955); M. Blanchot: Le livre à venir (1959); F. Collin: Maurice Blanchot et la question de l’écriture (1971); A. Schulte Nordholt: M. Blanchot: l’écriture comme expérience du dehors (1995); P. Thevenin: Antonin Artaud, ce désespere que vous parle: essais (1993); K. White: Le monde de Antonin Artaud, ou, Pour une culture cosmopoétique (1989).