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p class=”MsoBodyText” style=”margin-top: 0; margin-bottom: 0″> Em ciências sociais e humanas, o inquérito pode assumir diversas formas desde uma investigação para apurar dados objectivos sobre um problema concreto até à tentativa de descrição da opinião representativa de uma comunidade sobre um assunto de carácter científico ou apenas de interesse geral. O carácter de representatividade de um inquérito é fundamental para que seja reconhecida a sua validade técnica, o que significa que quanto maior for o universo de pessoas inquiridas maior será a possibilidade de aceitação das conclusões retiradas da leitura dos inquéritos. A forma como deve ser redigido um inquérito é igualmente fundamental. Cada ciência tem hoje em dia regras próprias bem definidas para a construção de um inquérito. Em geral, os objectivos têm que ser muito bem definidos à partida, as questões têm que ser claras, adequadas aos objectivos da investigação, e perfeitamente ajustadas ao tipo de dados que se procuram apurar.

Nos estudos literários, os inquéritos de opinião são hoje muito dirigidos para os problemas do gosto literário, para os níveis de literacia, para os hábitos de leitura, por exemplo, mais do que para as práticas da escrita. Uma forma diferente de entender a natureza do inquérito é aproximá-lo de uma verdadeira investigação de carácter dialéctico sobre um dado assunto que se estuda até aos limites do conhecimento individual. Se na filosofia essa é a principal configuração de um inquérito, também à literatura o tipo de inquérito que mais pode interessar é o de natureza especulativa e, neste sentido, qualquer investigação sobre uma obra de arte literária é um inquérito. É tão especulativa a investigação que John Dewey (1859-1952) fez sobre a natureza do conhecimento, que acreditava só ser possível de alcançar no contexto de uma “teoria do inquérito”, como a investigação de Margarida Vieira Mendes sobre A Oratória Barroca de Vieira (1989), sobre um autor literário que praticou na vida e na obra o próprio método do inquérito especulativo para melhor alcançar uma forma de conhecimento. O método do inquérito como investigação epistemológica é hoje, certamente, uma herança do método elênctico de Sócrates. Trata-se de um jogo de questões que ultrapassam a simples convicção de que uma qualquer habilidade retórica nos conduzirá a uma solução. O método do inquérito não exige obrigatoriamente um interlocutor, porque o próprio discurso é muitas vezes pergunta e resposta.

Um inquérito especulativo deve ser comandado pela pergunta "O que é?", que exige que cada resposta seja objecto de uma refutação (elenchos). O iniciado na investigação científica nos estudos literários encontra-se, em princípio, no mesmo estádio de aprendizagem do escravo de Ménon, que nada sabendo aprioristicamente de geometria, à custa de um diálogo orientado por um filósofo despretensioso, acaba por conseguir dar respostas correctas, sábias, às perguntas "sem nexo" do mestre Sócrates. Não se actua como o sofista que apenas discute pelo (f)acto de discutir sem o prazer de chegar perto da verdade. O inquiridor de discurso assertório é aquele que toma a literatura como facto consumado e diz pseudo-socraticamente: "Não vou investigar nem aquilo que sei nem aquilo que não sei, porque é inútil investigar sobre aquilo que já sei (definir "literatura") e é impossível fazê-lo se não souber que coisa ("literatura") investigar." O pseudo-socratismo deste inquiridor reside não no enunciado do paradoxo de Ménon mas naquilo que ele não consegue ver para além dele. Retomando as palavras de Sócrates, "é preciso não nos deixarmos persuadir por esse raciocínio erístico. Ele tornar-nos-ia preguiçosos e só seria agradável de ouvir a homens sem espinha dorsal. Este (o meu raciocínio) torna as pessoas trabalhadoras e agarradas ao estudo." (Ménon, 81d). O raciocínio de Sócrates é o dos juízos problemáticos, aqueles cuja afirmação ou refutação é considerada como possível. É esta metodologia de inquirição socrática que devia animar qualquer investigação pergunta em busca de uma resposta.

É preciso notar que a arte socrática não é tanto a de encontrar uma resposta para a pergunta "O que é?", não é tanto a arte de fazer definições, mas, de forma mais rigorosa, a arte de conduzir a uma definição. Do mesmo modo, devemos agir em relação à literatura: não dar definições apriorísticas mas levar de uma definição provisória do seu objecto a uma cada vez mais exacta e precisa definição, depois de passar por um inquérito científico que inclui a confrontação da definição inicial com o seu objecto tantas vezes quantas as necessárias e possíveis, de maneira que se lhe aplique exactamente. O inquiridor que busca uma definição absoluta de literatura a qualquer preço e exige que os seus leitores sejam cúmplices dessa busca, regra geral, não chega a estudar texto algum para deduzir essa definição. Pelo contrário, o caminho ideal será o de estudar e inquirir tantos textos quanto for possível e com o maior cuidado, ou seja, com atenção, precaução, cautela, diligência, desvelo, zelo, responsabilidade e mesmo inquietação de espírito, se por esta última entendermos o espírito que não se apoquenta em saber não só aquilo que já julga saber como aquilo que ainda não sabe.

{bibliografia}

John Dewey: Logic: The Theory of Inquiry, in John Dewey: The Later Works (1925-1953), vol. 12, 1938 (1986); J. Hintikka: “Questioning as a Philosophical Method”, in Principles of Philosophical Reasoning, ed. por J. H. Fetzer (1984); Rodolphe Ghiglione e Benjamin Matalon: O Inquérito: Teoria e Prática (3ª ed., 1997)