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Termo precedente do latim inspirare que significa soprar, comunicar, e é utilizado tanto no campo da teologia como das artes para designar o tipo de motivação que leva um indivíduo a produzir uma obra de arte. Para além do sentido figurado, este termo pode também ser relacionado com a respiração como sendo o movimento do ar para dentro. No entanto, e sobretudo a partir do séc. XVI, onde surge nos escritos de Ambroise Paré, prevalecerá o seu sentido figurado como sinónimo de intuição estética, invocação, génio, criação e imaginação. No que diz respeito à teologia, a inspiração é um estado de espírito em que o profeta crê perceber e receber uma comunicação divina a qual transmitirá, infalivelmente, a mensagem religiosa. Será a inspiração divina, a atenção especial prestada por Deus aos autores dos livros sagrados ou ainda, como Santo Agostinho lhe chamava, «o estilo do Sto. Espírito». Desde o fim do séc. XIX ao limiar do Vaticano II, predominará esta doutrina, partilhada pelos católicos em geral através da catequese eclesial, consolidada depois de uma reflexão plurissecular teológica e da Tradição da Igreja, que entende a inspiração como a origem divina das Sagradas Escrituras. O vocábulo era, então, concebido como uma acção exercida pelo Espírito Santo nos escritores bíblicos, dispondo deles directa ou indirectamente como instrumentos seus com o objectivo de «conceberem rectamente com a inteligência e quererem escrever fielmente com a vontade tudo aquilo e só aquilo que o Espírito Santo lhes mandasse» (Providentíssimus , Leão XIII: EB, 110; cf. EB, 461).

O processo inspiracional baseava-se na inteligência, na vontade e nas faculdades executivas, uma vez que era Deus a causa principal e o «autor» dos livros sagrados. No entanto, chega-se à conclusão de que qualquer escritor profano contemporâneo recorrerá a um processo inspiracional idêntico explicado através de um esquema psicológico: à inteligência, vontade e faculdades executivas do profeta correspondem agora a concepção mental, a decisão de escrever e a execução do escrito. Por outro lado, este esquema falhava ao apresentar a inspiração como fenómeno pessoal e isolado entre os hagiógrafos e Deus, completamente à parte do contexto sócio-religioso da comunidade em que eles escreveram.

Tendo em conta uma análise histórico-crítica, os textos bíblicos foram ocasionais e funcionais de acordo com as necessidades pastorais, tentando dar resposta a questões práticas comunitárias locais com o intuito de educar e reforçar a fé. De modo algum se verifica um complexo processo de intervenção divina. A partir de Vaticano II, sente-se a necessidade de procurar outra explicação mais coerente e mais próxima da verdade de acordo com os dados fornecidos pelo próprio texto bíblico. Com o contributo da exegese bíblica, hoje é possível dar essa explicação relativa à natureza da inspiração divina das Escrituras, feita a partir da Bíblia e pela Bíblia. Uma vez que as Escrituras são fruto de um longo processo histórico-literário, para se entender o papel da inspiração é necessário situá-la no processo da sua formação. Logo, é uma doutrina que se interelaciona com toda uma série de problemas teológicos não sendo, de todo, autónoma como seria de esperar.

Integrada na linha teológica paulina, a inspiração é explicada como «dons gratuitos do espírito», como carismas «espirituais» da comunidade de Deus (1 cor, 12, 4- II. 27- 31), por meio dos quais acontecia, se conservava e se comunicava a Revelação. Deste ponto de vista teológico, encontrava-se uma justificação mais perfeita para o facto de os livros da Bíblia terem surgido por simples iniciativa humana dos seus autores e solucionavam-se os conflitos hermenêuticos consequentes do que se entendia por inspiração.

O termo inspiração compreende também o campo das artes, sendo concebido como um estado de exaltação emotiva que atinge o escritor e que o faz sentir como iluminado interiormente para encontrar a chave e os recursos expressivos da sua criação literária. Neste ponto surgem duas teorias: a primeira defende que a inspiração vem de fora do escritor e a segunda defende o contrário, isto é, que vem de dentro. No primeiro caso, a inspiração é, sobretudo, de origem divina; corresponde à acção de uma Musa (do latim in-spirare, soprar para dentro) que era frequentemente invocada, por exemplo por Homero na sua Odisseia, para soprar ao poeta as palavras do segredo. Este divinitus inspiratus, como lhe chamavam os latinos (ou divine afflatus), é também referido por Platão, para além de Aristóteles, no Ion, onde o poeta é possuído pelo daimon ou entheos, de onde lhe vem o furor divino que se propaga, como por um íman, ao rapsodo e aos que o escutam. Este será também o conceito, herdado dos clássicos, aceite durante o período renascentista e predominará até finais do séc. XVIII, altura em que se dará mais importância à segunda teoria: atribui-se a inspiração ao trabalho individual de génio. É também a partir deste momento que se verifica uma laicização progressiva do conceito de inspiração e será a poiesis artística o exemplo privilegiado da criação. Agora a principal fonte da actividade criativa, como explica a psicologia e teorias de psicanálise, é o inconsciente ou o subconsciente e a inspiração representa a forma nobre da alienação. É neste sentido que Jean Fretet, ao referir-se a Rimbaud, Mallarmé e Marcel Proust, fala de alienação como a voz do «Outro» à qual o poeta obedece e se submete, sendo esta voz ditada pelo seu corpo doente (Aliénation Poétique, 1946).

Kant (Crítica da Faculdade do Juízo, 1790), ao interrogar-se sobre a natureza do génio dirá que se trata de um talento para a arte e não para a ciência. O génio é concebido como o ingenium, ou seja, como «une certaine disposition de l’esprit».É uma faculdade nativa, um dom natural atribuído pela natureza a seres «especiais» que assim são «abençoados» pela imaginação e conhecimento. Por seu lado será a natureza a ditar as regras do jogo no que respeita à arte e à sua criação: são regras únicas, impossíveis de conceptualizar e de comunicar, e só o génio tem o privilégio de ser inspirado por elas. Também a este respeito, Michel Guérin diz que «le génie est la faculté de réaliser sans modéle», uma vez que ele detém esse poder (Le Génie du Philosophe, Édition du Seuil, Paris, 1979, p. 23). Por este motivo o génio move-se na esfera do concreto, isto é, da criação. A criação, por sua vez, supõe a relação inseparável entre o modelo e a realidade, a matéria e a forma, justificando-se, deste modo, o porquê da natureza como paradigma da criação.

Edmund Burke (A Philosophical Enquiry Into the Origins of Our Ideas of the Sublime and Beautiful, 1757) apresenta como definição de sublime uma força que transcende os limites do que é finito e mortal, e o indivíduo tem a sensação de ser ameaçado de destruição quando se depara com ela. O sentimento que advém da experiência do sublime é o deslumbre, um estado de alma onde todos os movimentos estão suspensos por uma força irresistível que antecipa quaisquer pensamentos. Outra fonte do sublime é o infinito e, consequentemente, o sublime encontra-se em tudo o que é terreno e que pode dar a impressão de infinito: nos fenómenos naturais, e nas construções humanas como é o caso da poesia onde se celebra o superhumano e o divino. O conceito de sublime dado por Burke relaciona-se, de certa forma, com a definição de imaginação dada por William Wordsworth quando diz que é um poder que transcende a natureza e os sentidos.

Todos os românticos ingleses do séc. XVIII, nomeadamente Blake, Coleridge, Wordsworth, Shelley e Keats, vão dar bastante importância à inspiração e à capacidade que acreditavam ter para criar mundos imaginários que lhes permitia serem poetas diferentes dos outros, os que sacrificavam esta capacidade em nome do bom-senso. Os românticos ingleses consideravam a imaginação fundamental e acreditavam que sem ela a poesia não seria possível, uma vez que o seu poder tinha origem no impulso criativo completamente livre, sem qualquer tipo de amarra ou pré-conceito.

E este processo tinha início quando os poetas «shaped fleeting visions into concrete forms and pursued wild thoughts until they captured and mastered them» (C. M. Bowra, The Romantic Imagination, Oxford University Press, 1969, p. 2).

A actividade mais importante da mente é a imaginação que é também a fonte da energia espiritual. O poder da imaginação é, por conseguinte, divino e os poetas que detêm este poder participam, de certo modo, da actividade de Deus. William Blake concebia a imaginação como o momento em que Deus operava na alma humana. Qualquer acto de criação com base na imaginação era um acto divino e era através da imaginação que a natureza espiritual do homem se completava e realizava. De todos os românticos, Blake era o mais rigoroso e apocalíptico no seu conceito de imaginação: «One Power alone makes a Poet: Imagination, The Divine Vision». Blake era um visionário e acreditava que vivia na imaginação, naquilo que via quando dava asas à sua imaginação criativa. A imaginação destapava a realidade que se mascarava de coisas visíveis. A sua atenção centrava-se no invisível e, como pintor que era, descrevia o invisível com a linguagem do visível, com base numa visão muito pessoal e profunda.

Coleridge tem uma visão mais simples do que é a imaginação. Como suporte ou motor da inspiração, este poeta procurava constantemente a unidade da personalidade e acreditava que a imaginação poética era um meio de a atingir. Na sua obra Biographia Literaria, escrita em 1815 e publicada em 1817, Coleridge dedica o cap. XIII à descrição do que é a imaginação e traça um paralelo entre a concepção vital da natureza e a visão da mente como criativa no conhecimento. Deste modo, também a mente humana impõe ordem e forma sobre a matéria-prima da sensação. Ao transpor esta teoria para a poesia, Coleridge diz que a mente humana cria o mundo que apreende e, como tal é possível, terá de haver uma reciprocidade entre o mundo da percepção e as faculdades da mente. Logo, a imaginação surge como o poder que nos possibilita relacionar dois mundos: o da mente  e o da natureza. Coleridge faz ainda a distinção entre a poesia de talento e a poesia de génio com base na sua definição de «fancy» e «imagination»: o primeiro é um processo de associação e o segundo é um processo de criação. E, tal como na percepção, a imaginação impõe ordem e forma sobre o material da sensação e cria parte do que apreende, também no caso da arte a imaginação trabalha sobre a matéria-prima da experiência, dando-lhe uma nova forma e feitio. A imaginação cria um novo mundo tal como o da percepção mas, desta feita, reorganizado e erguido a um nível mais alto da universalidade. Toda a inspiração poética advém daí.

Ainda relativamente à imaginação, Coleridge subdivide-a em dois géneros: imaginação primária que é a faculdade que modera entre a sensação e a percepção e a percepção e o  pensamento, e possibilita-nos não só a interpretação de objectos mas também a construção de conceitos e a penetração no pensamento discursivo; e a  imaginação secundária que está relacionada com a vontade consciente e, apesar de também ser um processo criativo, nem sempre atinge a unidade que procura assim como nen sempre sai vitoriosa da sua luta pela unidade. Coleridge mostrará preferência pela imaginação primária, aquela que define o verdadeiro poder da criação poética.

Os românticos acreditavam que quando a imaginação se processava via coisas que a inteligência não conseguia ver e que se relacionava com uma percepção ou intuição especiais. Sempre que o seu poder criador se manifestava, os poetas eram inspirados pelo seu sentido de mistério das coisas para as investigar com uma percepção especial e para moldar as suas descobertas em formas imaginativas. A sua preocupação especial relacionava-se com tudo o que dissesse respeito ao espírito e, através de uma imaginação e de uma percepção inspirada, acreditavam poder tanto compreendê-lo como apresentá-lo via poesia.

A natureza foi a primeira fonte de inspiração dos românticos, era através dela que encontravam os momentos de exaltação sempre que passavam da percepção para a visão e penetravam nos segredos do universo. Foi esta demanda por um mundo desconhecido que acordou a inspiração dos românticos e fez deles poetas.

Wordsworth concorda, em grande medida, com o conceito de imaginação dado por Coleridge. Segundo ele, a imaginação era o dom mais importante que um poeta podia ter, que conciliava e unia o poder criativo com uma intuição visionária especial. Contudo, Wordsworth difere um pouco dos restantes Românticos ao considerar a percepção inspirada como racional. E, ao contrário de Coleridge, defende que a imaginação deve submeter-se ao mundo externo porque o mundo está vivo e tem a sua própria alma o que é, tendo em conta o que conhecemos, distinta da alma do homem.

Shelley concebe a imaginação como a faculdade mais poderosa do homem e, através da qual, se dá conta dos seus poderes mais nobres. A poesia é a expressão da imaginação porque aí a diversidade das coisas é reunida em harmonia em vez de ser separada através da análise. Tanto no pensamento como no sentimento, no conhecimento como no espírito, Shelley encontrava realidade. A tarefa da imaginação era criar formas por onde esta realidade pudesse ser revelada.

Keats, tal como Blake, tinha a convicção que a realidade última e verdadeira se encontrava só na imaginação. E através dela, procurava uma realidade absoluta para a qual uma porta estava aberta pela sua apreciação da beleza através dos sentidos.

O termo inspiração surge ainda relacionado com o surrealismo, nomeadamente com a escrita automática, não como um processo sagrado, ou «preciosa faculdade» como diria Freud, mas como um mecanismo psicológico. André Breton, dentro do movimento surrealista, define a escrita automática como o «ditado do inconsciente», o «pensamento falado» e «inspirações verbais». Foi desta forma que ele e Philippe Soupault escreveram Les Champs magnétiques (1919), constituindo esta obra a primeira aplicação da descoberta, deixando falar o inconsciente, cujo discurso era apenas necessário prestar atenção para o poder registar em qualquer momento. A escrita automática era descrita como um momento ideal em que o homem era invadido por uma particular emoção e dominado por uma força invencível que o lançava, inevitavelmente, no imortal. Como consequência, defende-se a ideia de que o discurso consciente não passa de «uma máscara que dissimula o fluxo do pensamento mais íntimo e o reprime». No entanto, embora se admitisse que a primeira frase de um texto automático brotasse do inconsciente «puro», a sua audição e a sua transcrição colocam-na, imediatamente, ao nível do consciente e da percepção.

Breton contrapõe, por outro lado, as «inspirações verbais» ao «pretenso poder visionário do poeta», uma vez que este não via nem vivia, à priori, aquilo que descrevia, apenas tecia especulações. A escrita automática atinge, neste período, grande importância confirmada pela obra Premier manifeste (1924) de Breton, que a designa como a prática que define o surrealismo.

Bibliografia:

Aidan Day: Romanticism (1996); C. M. Bowra: The Romantic Imagination (1969); Charles Mauron: Introduction a la psychanalyse de Mallarmé (1963); Gérard Durozoi e Bernard Lecherbonnier: O Surrealismo (1972); Michel Guérin: Le Génie du philosophe (1979); R. L. Brett: Fancy and Imagination (1969); Yves Duplessis: O Surrealismo (1956).