Em textualidade, pode indiciar três instâncias: 1) a vontade atribuída ao autor na produção de um texto; 2) o propósito do leitor na descodificação do texto; 3) o conjunto de inferências que relevam do próprio texto em relação a tudo o que pretende significar. Os chamados intencionalistas, isto é, aqueles que apenas aceitam a intenção do autor como determinante do sentido de um texto, seguem unicamente o primeiro princípio; os restantes são adoptados por todos aqueles anti-intencionalistas que preferem atribuir ao leitor e ao próprio texto a autoridade da determinação do sentido.
Hirsch defende em Validity in Interpretation: “Por uma necessidade interior, o estudo de ‘o que diz o texto’ tornou-se o estudo do que ele diz para um crítico individual.” (p.3). Se eu quiser determinar a intenção autoral do Monólogo do Vaqueiro de Gil Vicente, por exemplo, texto sobre o qual não temos nenhum registo da intenção do autor e que, portanto, nos obriga a extraí-la do próprio texto, não estarei também a estudar esse texto em função do que lee diz para mim próprio, individualmente colocado perante ele? E se o processo de extracção do sentido (como consequência da intenção autoral que se lhe sobrepõe) tem que ser reconcudizo ao texto, não fica nas mãos do leitor a determinação desse sentido? A expressão: a intenção do autor neste texto está sempre na jurisprudência do leitor.
Hirsch observa ainda: “Tornou-se moda falar da ‘leitura’ textual de um dado crítico.” (p.3). O estudo de o que diz o texto não se pode transferir para a jurisprudência do leitor sem contrapartidas, que se podem resumir ao princípio de garantia de que nenhum leitor saberá dizer tudo sobre o texto. Se tal leitor existir, não implica que o projecto intencionalista possa ser a alternativa, porque ambos se encontram nos pólos que se devem rejeitar em crítica literária. Defende-se Hirsch: “No que não se reparou nesse entusiasmo inicial para voltar a ‘o que o texto diz’ foi no facto de que o texto tinha que representar o sentido de alguém – se não do autor, então do crítico.” (Hirsch, p.3). Dizer o que o texto diz não é transferível para a assinatura do leitor. O crítico que identificou o sentido autónomo do texto não quer que tal sentido deixe de pertencer ao texto.A crítica de Hirsch adianta-se depois para os professores de literatura: “O professor de literatura que queira aderir à teoria de Eliot [- o sentido válido é não o do autor mas o que o poema significa para diferentes leitores sensíveis -] é também por ofício o conservador de uma herança e o transmissor de conhecimento. Em que é que se fundamenta para reclamar que a sua ‘leitura’ é mais válida do que a de qualquer dos seus alunos? Não tem fundamento.” (p.4). O facto de se transferir para o leitor a autoridade da leitura não exige que tal autoridade se feche sobre si mesma. Se é verdade que muitos professores de literatura são incapazes de abrir os seus horizontes críticos, isso não significa que sejam portadores de qualquer sophia. Simplesmente, um professor de literatura que queira hoje assumir uma atitude honesta para com o texto perante os seus alunos há-de dizer-lhes que apenas conhece uma forma de abrir o portão da verdade sobre esse texto. Tal conhecimento não lhe dará nunca o acesso total. Simplesmente, este professor dirá que a validade da sua leitura em relação com qualquer outra proposta é tão falível e instável como o próprio sistema de sentidos do texto. Qualquer proposição do tipo: a melhor leitura, o melhor texto não entra na discussão metafísica do Belo, que transcende a contingência dos sentidos do texto. E porque tal como a natureza do Belo platónico não pode ser apreendida nem pelos sentidos nem pela razão, assim a categoria de “melhor” não pode entrar numa discussão verdadeiramente teórico-crítica do texto (com a excepção conhecida da crítica dita impressionista). O “melhor sentido” também não pode ser o do autor porque a única Forma que ele nos legou é o texto. Só na esfera das discussões dialécticas se pode decidir o sentido de um texto ao mesmo tempo que rejeitamos a sua correspondência autoral.
A tese de Hirsch ironiza-se: “Se realmente acreditássemos que o sentido de um texto mudou para o seu autor, só pode então haver uma forma de o podermos saber: o autor teria que no-lo dizer.” (p.8). O argumento intencionalista é uma arma mortífera nas mãos de um autor vivo e os mortos protestariam por não se terem lembrado dela. Se um autor fosse assim legitimado por esta filosofia, não mais teria necessidade de respeitar as leituras críticas que dele quisessem fazer, ou então podia governar facilmente toda a hermenêutica futura da sua obra. Por exemplo: eu, sujeito hipotético, sou poeta, escrevo hoje um poema e publico-o amanhã em livro. Escrevo a um crítico amigo pedindo-lhe uma recensão a propósito e, entre linhas, declaro-lhe a minha intenção sobre esse poema. Daqui a dez anos, por alturas da segunda edição, farei exactamente o mesmo, porém declarando agora que afinal tive outra intenção ao escrever o poema. O processo pode ser repetido enquanto eu, autor, estiver vivo. Em nenhum momento o que mudou foi a minha relação como sentido original, mas sim a minha leitura desse mesmo sentido supostamente original, portanto, afectando directamente a construção significante do texto. (Podia inclusive, para complicar a questão e desafiar a autoridade do crítico, acrescentar um verso contraditório em cada reedição, para contrariar o sentido que antes havia sido assumido ser o original.) Se o exemplo parecer inverosímil, pergunte-se quantos poetas assumem como verdadeiro aquilo que versejam, porque a definição de um sentido original só faz sentido se o autor o assumir como verdadeiro.
E do fingimento ou mentira na criação da obra de arte? Responde Hirsch: “(Mentiras deliberadas são, naturalmente, outra coisa; não têm nenhum interesse teórico tal como acontece com os lapsos de memória.)” (p.9). Mas como é que é possível garantir a verdade numa interpretação textual? De Sólon (“Muito mentem os aedos…”) a Fernando Pessoa (“O poeta é um fingidor”) será possível identificar os fingimentos dos poetas como “mentiras”? Será possível que o fingimento artístico tenha o mesmo valor que um “lapso de memória”? Segundo Hirsch, “O sentido original do autor não pode mudar – mesmo para ele mesmo, embora possa ser realmente repudiado.” (p.9). Diz-nos Eça de Queirós: “Quando publiquei pela primeira vez O Crime do Padre Amaro, eu tinha um conhecimento incompleto da província portuguesa, da vida devota, dos motivos e dos modos eclesiásticos. Depois, por uma frequência demorada e metódica, tendo talvez observado melhor, eu refiz simplesmente o meu livro sobre estas novas bases de análise.” (Notas Contemporâneas, Círculo de Leitores, Lisboa, 1981, p.30). Quando um autor refaz um livro anteriormente publicado, altera o sentido original ou não? Para Eça, o segundo texto do romance mudou o sentido da primeira versão ou não? Para Hirsch, a obra é invariavelmente a mesma e o que Eça fez foi simplesmente “repudiar” o sentido original, embora não o tenha alterado. O facto é que tal sentido é profundamente alargado e revisto. E sabermos inclusive que da segunda para a terceira edições o sentido original é ainda retocado de forma mais radical. Aquilo a que Eça chamou a “luta pela expressão” diríamos nós hoje ser um processo sujeito às leis físicas do sentido: se na natureza nada se perde e tudo se transforma, em textualidade, nenhum sentido permanece necessariamente imutável e todo o sentido é passível de transformação; se no rio de Heráclito ninguém se pode banhar duas vezes na mesma água, em textualidade, ninguém pode garantir que um texto possa ser lido duas vezes da mesma forma.
É preferível aceitar que não deve interessar à literatura outra coisa que não seja o texto-objecto. A intenção original do autor de um determinado texto só é válida se servir para provar que o texto não diz essa intenção. Um princípio que aliás já está enunciado, entre nós, em 1931 por Fernando Pessoa em carta a João Gaspar Simões que não posso deixar de citar sempre que necessário. Em carta a um amigo, Pessoa deixou o seguinte aviso: um crítico só deve preocupar-se em: “estudar o artista exclusivamente como artista, e não fazendo entrar no estudo mais do homem do que seja rigorosamente necessário para explicar o artista.” O que significa Homero para aqueles que advogam que a crítica literária deve ocupar-se exclusivamente da descoberta da intenção do autor? Não impediria o facto de não podermos estar absolutamente seguros de Homero ser o autor da Ilíada e da Odisseia, qualquer estudo literário sobre esses textos, uma vez que o seu autor nunca pôde falar sobre eles? E se eu disser que o sentido da mitologia da Ilíada não corresponde a nenhuma experiência religiosa, visto que todos os deuses homéricos são produtos da imaginação do Poeta, estarei a traduzir a intenção de Homero ao introduzir tais deuses na Ilíada ou estarei a concluir pelo texto, em face da participação dinâmica e efectiva de tais seres na acção do Poema? Não estarei em ambos os casos a concluir por Homero? Quem mais a não ser Homero me pode garantir que os deuses da Ilíada são pura invenção e não correspondem a nenhum culto grego antigo perfeitamente localizado na época? Então ficará o leitor preso obrigatoriamente a esta dúvida irreversível e com isso ficar proibido, teoricamente, a ler o sentido do texto? Não será este um caso em que a única autoridade que nos foi legada seja inteiramente a autoridade do texto? Não fará, pois, sentido dizer que o que interessa é o que o texto nos diz e não o que o autor quis dizer? De resto, qualquer interpretação intencionalista da Ilíada ou da Odisseia, porque não pode ser confirmada na origem, seria, segundo as leis do próprio intencionalismo crítico, inválida.
O que o leitor deve assumir é que um texto pode trair a intenção original do autor. Não é rigorosamente o mesmo que dizer que, por regra, um texto significa sempre algo diferente do que o autor pretendeu que ele significasse. Também me parece ser este o ponto de partida da desconstrução, que, nesta matéria, tem sido interpretada erroneamente. Compete ao leitor investigar e demonstrar em que casos é que um texto diverge da intenção do autor e quais as consequências que daí advêm para o sentido do texto. Se este não supreender a autoridade intencional, não deve concluir-se daí que qualquer estatuto de menoridade literária, pois simplemente esse texto não interessa ao hermeneuta, que o considera morto. Um texto morto é um texto que nada revela para além da evidência do que o seu autor quis dizer. Não é o autor que está morto, mas a falta de complexidade do texto é que pode levar à morte do autor e do texto que produziu. Devemos tentar sempre validar ou invalidar a intenção autoral, conforme esta seja confirmada pelo texto ou não. Quando tal intenção é negada pelas contradições do texto, deixa de poder ser validada.
Quando T. S. Eliot ou Ezra Pound ou Fernando Pessoa reclamam um desvio da atenção do leitor para o texto, pondo de parte o autor, ao mesmo tempo que preconizam uma criação textual des-subjectivada, deixam esboçado um programa estético que em momento algum visa eliminar a integridade física do autor. Qualquer associação no triângulo crítico (autor/obra/leitor) é aberta e recíproca, apesar das diferenças que se desprendem de cada ângulo. A questão da “melhor poesia”, por exemplo, é uma questão pseudo-criacionista, isto é, nenhum poeta no seu perfeito juízo se senta a escrever “melhor poesia”, mas simplesmente poesia que o leitor que está dentro do autor pode sentir ser melhor do que, não só em relação à sua obra anterior como em relação à obra alheia que conhece. Seja como for, o juízo valorativo de superioridade “melhor” é sempre posterior ao acto de criação a que se refere. Durante o acto de criação, a escrita vive um momento único de originalidade, pois ainda não foi sujeita a qualquer leitura. Qualquer tipo de intenção se situa além do acto de criação textual, pelo que a questão da “melhor poesia” é necessariamente posterior ao autor e, por isso, não lhe pertence.
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